TRÍPTICO DQP – Aporias
entre o céu e a terra... - Ao som de Music
for 18 Musicians (2011), do compositor estadunidense Steve
Reich - Com o tempo dei de
adormecer e, ao despertar, não saber em que espaço ou tempo esteja. Ou estou
elouquecendo, tomara. Quem sabe, começando a caducar, pudera. Desta feita, não adiantou
solfejar canção que fosse, estava como se tivesse envolvido na pele da trama de
Oleanna (1992), do dramaturgo
estadunidense David Mamet, e a sua
filha Clara – face inspiradora nos lábios obscenos e voluptuosos - era a Carol
a me seduzir na cena, como se fosse possível a duas pessoas estranhas
conviverem juntas, avalie. E ela estivava nua numa cena escura do palco e se
parecesse inteiramente com a atriz francesa Sophie Marceau, aquela mesma que povoava meus sonhos recorrentes e
a nos engalfinhar nas onze histórias d’O
vampiro e a polanquinha (1992) de Dalton Trevisan. Eu me levantei da poltrona, pisei o assoalho solitário por fragmentos
de devaneios que surgiam do nada para orbitar minha existência insistentemente e
me levasse a sucumbir no delírio onírico que se transformara em um filme, era
só na minha cabeça e eu, um professor, ela minha aluna insinuante e linda,
bálsamo para minha alma. Era teatro em toda parte com câmaras ligadas para
qualquer projeção em que ela me acusava de assédio sexual, com suas frustrações
por não entender o assunto dado em sala de aula e todos os dias ela lá. A
desgraça é finalmente a dizer da tentativa de estupro e perco a cabeça. Depositei
o que restava de mim sobre os braços à mesa, ela silenciosa, tocou-me e abri os
olhos de repente e vi-a cantatriz encantadora, a me dizer Kierkegaard: Aquele que não se torna só consigo mesmo,
ainda que mantenha silêncio, não o terá. O silêncio só é possível para aquele
que, em verdade, torna-se só consigo mesmo. Olhei-a profunda e
demoradamente, aquela tentação poderosa e eu me continha com todas as forças. Levantei-me,
dei-lhe as costas e me distanciei o máximo que pude. Entre as coxias o filósofo
alemão Paul Tilich
(1886-1965), a me dizer que a solitude: é
a glória de estar sozinho. Parei diante dele para ouvi-lo: O primeiro dever do amor é ouvir. A vida é
dura... e nem sempre é justa. Mas isso não quer dizer que ela não possa ser
boa, gratificante e prazerosa. Ainda há muitas razões para dizer sim à vida.
Refleti um pouco e me conduzi para a saída do prédio, parturejar ideias no meio
de demofóbicos, misóginos, quando não antrófobos com seus estressados bichinhos
de estimação. Dei vazão às minhas bricolagens aporéticas. Ela seguia-me e era
como se fosse a primeira promessa e o que não deu certo, o alivio da
incolumidade. Não olhei para trás e segui: para quem vem ou vai: aporias entre
o céu e a terra. Semáforos de sempre, vida adiante.
Mil dias depois da esculhambação... - Os tempos
mudaram e tudo ficou muito assustador. Passou uma severa turbulência, a ponto
de desnortear de sequer perceber janeiro com a posse “decente” e proclamadora do
Coisonário, que se dizia Caminho da
Prosperidade. Sabia que não era nada disso, nem foi, nem será; tudo fora muito
bem manipulado nos últimos cinco anos, para consolidar o que já desconfiava. Do
primeiro dia, entre o risível e o trágico, passou-se a vigir que se podia
peidar à vontade, cagar só dia sim dia não, porque o ambiente ficou inflamável
e encolheu a escola para pouquíssimos e começou o pipocado da festa dos
ruralistas e assemelhados do Agro pop de agrotóxicos e pesticidas sem ambiente
dos grandes da fraude piramidal e bleque-fridei, talkei? Com elas, outras determinações:
não atrapalhe nem amole o professor ou o motorista que investiram no dólar e
preferiram vender vacina com os pastores e a mãe num negócio da China,
apadrinhado pelo Centrão nas relações exteriores e que não se teria mais shiTrump
para pedir penico pro golpe no sonho do capitólio daqui. Também não se procurasse
saber onde estivesse porque era frio de lascar de repente e um calor da peste, desabando
com a prevaricação na fivela da Lava Jato e o juiz nem era herói e vazou e o
racismo virou praga com sufocamento em Manaus e se o rio secou pro apagão da QAnon,
era a vez da pandemia e uma quarentena interminável tomou conta de vez. Aí a
coisa empenou: deu de tudo com homenagens sinistras de torturadores e
milicianos, ofertas com embalagens de luxo e que não era uma novela, e que se
saiba de antemão: os deuses surdos também se tornaram cegos e premiaram o
primeiro baba-ovo. Aí avacalhou tudo pra passar a boiada geral, no atacado e no
varejo: rachadinha, Bebiano, deseducação, Queiroz, brasileiros canibais
viajando, Kassio Nunes, goldemshauer, nazismo comunista e KGB, Tonho da Lua, foro
mais privilegiado de sempre, Goebbels, drones, inflação pro império milionário,
inauguração de trecho de rodovia, troca-troca nos ministérios, recondução do
Aras feito guenzo da cristomania e todas as sequelas no asfalto com a
tempestade de poeira e a gasolina nas alturas da Prevent e se tudo ficou caro de
uma hora para outra, era que uma savana emergia n o voto impresso e no pega pra
capar findou na fronteira dos USA, como se Maia segurasse tudo, de chorar com o
rabo de arraia do Lira que levou o hospital numa banda metaleira feito plano
hap de saúde hip de vida hop e quem hup não se fez por amigo da primeira-dama,
juntou caixa de papelão no quintal quando deveria ter uma goiabeira pra
Jesuisis & Doidamares – e o Doro
que coisou e tem andado um bocado arrependido quer encará-la: Ela dá cloro e
pano! E partiu arretado para arregaçar nos guardados dela. E daí? Do zero-um
pro dois, três, até o quatro lavando a jega e mais se enfeiou no torrão com o lixo
nas calçadas, folhas, flores, frutos, o tráfico nos condomínios e favelas, carros
e casas sujas, a fumaça do bueiro da usina, a catinga pútrida e a brutalidade
de gente com suas pseudofamílias nas arengas e estupros coletivos, crucifixo no
pescoço, rezas altas e aos gritos pelos sete pecados capitais, pelos dez
mandamentos, quando tudo era inferno, nenhuma humanidade, a sociedade doente, uma
escória feita de vermes - quem não em estado de choque nos sete de setembro e o
desfavorável porque ficou inviável com o Agro que é pop ou pqp e teve Dia D
para tocar fogo, aproveitando para o perdão das dívidas evangélicas,
regulamentação da agiotagem, leilão com liquidação de tudo na maior promoção,
as comunidades terapêuticas no comando do golpe para namorar a Cloroquina toda
tarada e, na cara dela, se agarrar com Ivermectina safada para duas de
quinhentos com nota de duzentos falsa – quem viu, não sei porque se passou por
mito e quem não pagou mico de guardar a mamadeira de piroca, as controvérsias das
fardas do que fizeram das forças armadas tão desarmadas e das milícias neonazifascistas
que sobraram dos trezentos e não sei quantos milhões de cem reais que são na
gripezinha e no mimimi da entubação dos influenciadores que não querem ninguém
em casa para sair furtivo como cosplei de rato com pizza no bico. Eita! E daí,
meu? Presse desgoverno, qual legado? O bizarro delírio das conspirações e
feiquenios, tragicômico Brasil que não foi nem nunca será para coisonários que
batem cabeça demais: são feito couro de pica e mentem que o cu apita. No fim da
festa, mil dias de uma voz que se apagou de nenhuma saudade na barbárie da tevê
desumana com o horror extra dos rugidos da covardia e sacanagem, com o que engana de
zap-zap e o que resta das promessas e do tédio: a falsificação como originalidade.
Outras aporias, tudo muito imperdoável. E persigo sobrecarregado de ocorrências
e interrogações no meio da nossa segregação, driblando o certo e o errado e
vice-versa, as pessoas obtusas viraram pragas e quase ninguém consegue ver a
realidade encoberta por um punhado substancial de velhas mitologias de agora,
um inferno para lá de dantesco.
Inclusão, enfim, ah!... - Minha
vida braços abertos: nenhuma fórmula, nem tendência ou convenção. Experimentos
e incertezas, a impermanência. E sou a minha língua e voz, modulações obscuras
e à deriva, nenhuma mensagem nem sentido, despsicologizado entre o insulto e o
inusitado, como se o prazer no fundo do oceano para que ninguém veja ou ouça ou
sinta. Se não tenho para onde ir no meio dessa sensaboria, vou pra biblioteca. E
lá, cedinho, de um dos livros que saquei numa das estantes, escapou a cena e eu
espanquei o pobre de Baudelaire: Só é igual a outro aquele que disso dá
prova, e só é digno da liberdade aquele que sabe conquistá-la. Na surpresa
do fato, o agradável ficou por conta de chegada da professora Roselene Santos com o projeto Inclusão e Espaços Publicos, e alunos
das escolas CAIC-José do Rego Maciel, Aloisio Sebastião e Lar Heleninha. Ela e
a professora Rosielma Santos trouxeram
duas deficientes visuais que leram meu cordel em braile e eu fiquei maravilhado com uma menina solta a tagarelar altiva
na dinâmica com Thayná Mikaele, Thays Leandro, Tamires Milena e Rayane da
Silva, todas acompanhadas dos pais Adilson Leandro e Josenilda Maria. E rolou
poesia, cantoria e dinâmicas; cá comigo era Paulo Freire: A inclusão
acontece quando se aprende com as diferenças e não com as igualdades. E Boaventura de Souza Santos: Temos direito de ser diferentes quando a
igualdade nos descaracteriza. O universalismo que queremos hoje é aquele que
tenha como ponto em comum a dignidade humana. A partir daí, surgem muitas
diferenças que devem ser respeitadas. E era Carlos Drummond de Andrade: Ninguém
é igual a ninguém. Todo ser humano é um estranho ímpar. E era Emma Thompson: Ser deficiente não deve significar ser desqualificado de ter acesso a
todos os aspectos da vida. E era Salvador Allende: Não basta que todos sejam
iguais perante a lei. É preciso que a lei seja igual perante todos. E era José Saramago: Há que deixar as pessoas serem como são. Vivendo em suas diferenças e a
partir de seus próprios pressupostos culturais. E nisso, a até então tímida
assistente social Chiara Santos se
mostrou esfuziante aos meus olhos fascinados com a conversa encetada, enquanto
a encantadora Sil Neves conversava
com Zé Ripe sobre a Academia. Ah,
que bom! Assim o mimético ali e a minha diegese. E é só o começo, quem frágil e
excluído, afinal. Do lado de fora outros adultos embotados seguiam catatônicos na
sua normose, além da memória porque duas mulheres falavam de suas dores, talvez
Medeia, uma delas – tudo é possível e
a se repetir ao infinito no meio de um cruel vodu eternamente implacável e a
iminência da queda: uma vaca mugiu pelas ruas, um pai foi nocauteado pelas
dívidas, um vira-lata latiu com criaturas invisíveis e era outra temporada, o
isolamento e o solipsismo pelas frestas das coisas decadentes, os oitenta tiros
em Evaldo Pereira e a comemoração tímida de Marta artilheira de todas as copas.
Eu preciso sonhar para não sucumbir ao descartável, quantos embates e
discordâncias, desenquadrado e contra a corrente. Como assim? Não é nenhuma fábula
pinçada do cotidiano às portas fechadas. Sou corpo estranho, talvez, ainda tenho
o futuro nas mangas, posso sacá-lo e ainda rir do mundo: apenas celebrar a
vida. Até mais ver.
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