domingo, agosto 10, 2025

NEIGE SINNO, ARIEL SALLEH, MARÍA NEGRONI, JULIANA XUCURU & BRENDA MARQUES PENA

 

 Imagem: Acervo ArtLAM.

Não acredito que as poucas mulheres que alcançaram grandeza no trabalho criativo sejam exceção, mas acho que a vida tem sido difícil para as mulheres. Não lhes deu oportunidade, não as tornou convincentes. Uma mulher não tem sido considerada uma força de trabalho no mundo, e o trabalho que seu sexo e suas condições lhe impõem não foi ajustado a ponto de lhe dar um pouco mais de espaço para o desenvolvimento de sua melhor versão. Ela tem sido prejudicada e apenas algumas, por força das circunstâncias ou força inerente, conseguiram superar essa desvantagem. Não existe sexo e arte. Gênio é uma qualidade independente. A mulher do futuro, com sua perspectiva mais ampla e suas maiores oportunidades, irá longe, acredito, em trabalhos criativos de todos os tipos...

Pensamento da compositora e pianista francesa Cécile Chaminade (Cécile Louise Stéphanie Chaminade – 1857-1944), ao som do Concertino for Flute (Sanders Theater, Harvard University, Cambridge, Massachusetts, 2015 - Boston Philharmonic Youth Orchestra, Hayley Miller in flute, Benjamin Zander, conductor) e Suite Callirhoë, Op. 37 (Orquesta Juvenil Universitaria Eduardo Mata, Gustavo Rivero Weber, director Sala Nezahualcóyotl, CCU 2022). Veja mais aqui & aqui.

 

Entrevista com o sicário fantasma... - Na regra de uma, lá se vão duas, depois de três pra mais de quatro, das coisas quase sequer terem fim! Hehehe. Esse era o prefixo na chegada do Zé Puliça, ao largar do expediente noturno pro café matinal no pavilhão de Pedim do Padre. Chegava com seu ar de caboclo do pé de serra, criado na beira de rio ligeiro, atarracado no seu quase metro e meio de estatura, fala mansa de alerta, impávido quasímodo, com mastigado num palito de dentes pelo canto da boca e o olhar de soslaio pra todo mundo. Era naquela hora somente que se dava aos gracejos. No mais era inabalável, devagar do dizer, jeito imperturbável, quase silencioso, ladino. Na sua face a experiência de quem estreou na vida pelos canaviais, corte da cana. E se fez vaqueiro de aboiar lonjuras, de se danar pela Serra da Preguiça, atrás do Rabicho da Geralda, que bebia água no riacho Agudo, da Várzea do Cisco. Foi ele quem amansou o malvado turino Pintadinho, na lagoa das Mofadas. Depois meteu-se num remoinho agitado pra pegar de mão o indomável Jauaraicica. Foi peleja, viu? Depois dessa casou-se primeiro com uma burrinha de padre, achada no meio do caminho e, nos achegados, ela desencantou fogosa. Nem demorou muito e enviuvou. Solitário deu de engrossar as fileiras dos cabras de Lampião, arribando pariceiro do valente Rio Preto, a trocar loas com o topetudo André Tripa, nas farras com Cabeleira e Teodósio e, mais que azogado, viu os milagres da braúna de Conselheiro. Sua fama cresceu de mesmo no dia que um tal de Zé Branquelo, apelidado de Hulk Branco, terrível estuprador gigante escapulia da lei. Quanto me dá preu trazer a cabeça desse safado? Tudo acertado e dias depois lá estava ele: Eu dei voz de prisão, ele não quis se entregar; trouxe a fim da força, taí! E sacudiu a cabeça do libertino no birô do delegado. Susto da pêga, da autoridade quase cagar-se todo! Que é isso, rapaz, cadê as mãos dele? Ah, esqueci as chaves das algemas em casa, não queria perdê-las; mas as digitais do desgraçado estão aqui, tome! Pode conferir se é ele mesmo! E era. A partir disso, onde tivesse meliante odiado ou foragido com a cabeça a prêmio, lá estava ele na caça ao ganso - bastava suspeitar, nem estouvava, resolvia. Assim caçou Megalodon, Tiranossauro, resolveu o caso Taylor v. Taintor, desbaratou uma rede de camicases, enfrentou fera na Oração da Cabra Preta, numa encruzilhada para tirar tudo a limpo; desfeitou em pleno natal um cabuloso que queria lhe enrolar com chá de heléboro negro: Quer me envenenar, fidapeste? Cada uma, hem? Nunca trastejou da coragem diante de alças de mira, garras de bicho, encarou obstáculos, pegou malfeitores na curva do desvio, detonou de véspera um bocado de homem-bomba que apareceu. Só isso? Pra ele: Só poltronice! Ah, assim o senhor acaba com a humanidade! Comigo é assim: Corro pro perigo, cerro os punhos e o enfrento o sopapo! Por causa disso conheceu o Agente 114, caçador de bandidos, o tal do Jonah Hex, ocasião em que flertou e se ajeitou num caso íntimo com a gringa bonitona Domino Harvey. Quando ela partiu, ele foi pegar o dragão da Caverna dos Suspiros e tomou pra si os tesouros do Pirata. Ali viu de longe a Alamoa, na Porta do Pico, e com ela casou-se numa sexta-feira do Espinhaço do Cavalo. Mas tinha de voltar e ela não quis. Pegou a Nau Catarineta e foi dar na Cova da Serpente de Asas, no Serrote da Lapa. Lá tomou um guizo e uma pena da bicha ruim, além de ganhar uma carranca do alcoviteiro Caboclo D’Água, que arrumou pra ele um romance tórrido com a Siana Branca de Correntina. No meio da função descabelada, deu uma ventania repentina e ele se viu atracado com o devorador ciclope Labatut, tendo de pegá-lo na marra pela munheca e sair montado na Cabra Cabriola pra caçar o Carneiro de Ouro, lá na Furna dos Morcegos. Ao capturar o caprino apareceu logo uma jiboia e ele agarrou-se com ela de desencantá-la: era uma princesa frochosa, com quem juntou as catrevagens por um bom bocado de tempo. Tome trupé! E agora? Hoje vivo de apaziguar a noite deste fim de mundo! Acha pouco? Escreva aí: Fim de valentão é cadeia, bala quente e peixeira fria! “Pecador repara que há de morrer”. Há de valer confissão, senão num salva! Não vim praquí só pra contar hestória. Enfrentei quantos ariscos mandacarus de fogo, vali-me do Justo Juiz, não fosse minha devoção, já tinha emborcado faz tempo. Sou o verdadeiro de muitas cópias. Fiz poucos amigos porque não quiseram e também porque não quis. É preciso refazer a humanidade de outro modo: está tudo perdido. Somente parvos, quanta maluquice, Deus meu! Eu sou assim, o mundo assado. E era só vê-lo sentado no tamborete lá na frente da prefeitura, desavindo, com sua jaqueta puída, de relance no bolso o distintivo de detetive, assoprando uma música lúgubre no pente enrolado em papel de cigarro: uma balada de morte. Que bicho mora dentro de mim? Ainda outro dia soube dele agarrado num fuá da peste com a Mulher da Sombrinha. Coisa dele mesmo. Todo mundo tremia, de considerá-lo às escondidas um duende desumano, um sátiro impiedoso, o deslavado monstro do silêncio, um vilão inumano ou algo parecido. Deus me defenda! Culpa tinha? Mais diziam amiúde que ele vasculhava os escondidos só por perversão. Tornou-se agonia do povo, um pária. E ele: Não quero esse veneno, morro de fome; minhas muitas vidas valem cada uma das minhas tantas mortes: para cada medo uma coragem equivalente, não levo ignominia pra casa. Era seu desencanto na sua impiedosa careta só pra assustar: Não acredito em mais ninguém nem em nada. Tudo é tão crepuscular... Morreu por vontade própria, como quem foi cagar no mato a cochilar sonhando vigia dos vivos. Até mais ver.

 

Alice Walker: Ninguém é seu amigo se exige seu silêncio ou nega seu direito de crescer... A maneira mais comum de as pessoas desistirem do seu poder é pensar que não têm nenhum... O que a mente não entende, ela adora ou teme... Veja mais aqui, aqui, aqui, aqui & aqui.

Hilary Mantel: Se você ficar preso, afaste-se da sua mesa. Dê uma caminhada, tome um banho, vá dormir, faça uma caminhada, desenhe, ouça música, medite, faça exercícios; faça isso, não fique aí parado, olhando feio para o problema. Mas não faça ligações nem vá a festas; se fizer isso, as palavras de outras pessoas vão jorrar onde as suas palavras perdidas deveriam estar. Abra um espaço para elas, crie um espaço. Seja paciente... Veja mais aqui.

Katherine Mansfield: Estabeleça como regra de vida nunca se arrepender e nunca olhar para trás. O arrependimento é um terrível desperdício de energia; não se pode construir sobre ele; só serve para se afundar... Veja mais aqui, aqui & aqui.

 

A CULTURA DO PAÍS

Imagem: Acervo ArtLAM.

Alteridade \ esse medo \ que ficou \ escondido na infância \ rouba do que serão \ sensações remotas \ Pior que isso, ele come \ coisas \ que nem vê. \ late \ até não existir mais \ mas um espelho lascado \ onde minha vida ainda é \ feita e contemplada \ e então \ - se houvesse um depois - \ ergue um bastião de palavras \ entre uma língua estrangeira \ e a própria estranheza \ Não sei porque \ essa ferida não me atinge.

II - 0,0016 quilômetros de palavras \ confinadas em um poema \ maneira curiosa de dizer que \ um homem caminhou pela morte \ formas \ ligeiramente arrependidas cruzaram-no \ graduações \ do que ele não tinha \ o ar \ que \ o mundo inala a cada minuto \ cada vez que sente falta de si mesmo \ o resto \ era aritmética superior \ sabendo cair e não cair, evaporar \ como uma ferida transparente.

Poema da escritora e tradutora argentina María Negroni. Veja mais aqui, aqui & aqui.

 

TRISTE TIGRE - [...] É verdade que ninguém [...] tinha visto o que nós, as crianças e minha mãe, víamos em casa, onde ele se comportava como um tirano. E é isso que se destaca acima de tudo nessa personalidade: alguém que não suporta contradições, que precisa sempre ter controle sobre tudo, que decide, monitora, pune e que nunca compartilha o poder. [...] O que há de libertador na literatura é que ela nos oferece acesso a algo maior do que nós mesmos. Maior do que a nossa dor, maior do que a nossa experiência pessoal, maior do que a intensidade de que falei. Descobrir a literatura é como ter acesso a um mundo de risco extremo, de encontros com a enormidade da vida e da morte, mas em um plano diferente. Pode ser um consolo. Uma forma de consolo, mas nunca o suficiente para salvar uma pessoa. [...] Com uma criança, a porta está sempre escancarada. Uma criança não pode abrir ou fechar a porta do consentimento. Não consegue chegar à maçaneta. Simplesmente, não está ao seu alcance [...] Posso dizer que fiquei feliz, que nós ficamos felizes. Ninguém pode tirar a chuva de verão de nós. [...]. Trechos extraídos da obra Triste tigre (2023), da escritora francesa Neige Sinno, autora de obras como A Vida dos Ratos (2007) e Le Camion (2018).

 

ECOFEMINISMO MATERIALISTA - [...] Ecofeministas materialistas estão falando sobre condições econômicas-biológicas-biofísicas radicais da vida [...] Nos últimos anos, o capitalismo intensificou sua penetração em todos os aspectos da vida cotidiana, como a proeminência dos grandes bancos ou a tendência à digitalização. Os bancos estão comprando enormes quantidades de terras agrícolas ao redor do mundo para uso em tecnologias agrícolas experimentais, como sementes híbridas geneticamente modificadas. Mas a terra para o cultivo de alimentos é a base do sustento das pessoas. É claro que, se você olhar além do capitalismo, encontrará o patriarcado. No sistema patriarcal-colonial-capitalista, a forma originária e mais antiga de poder é a dominação dos homens sobre as mulheres. Em seguida, vem a colonização, invadindo a terra e se apropriando dos recursos de outros povos. Finalmente, a forma econômica capitalista emerge da colonização e é relativamente moderna, com apenas algumas centenas de anos. É importante ver esses três sistemas como sistemas concorrentes, emaranhados e que se reforçam mutuamente. O próprio capitalismo não funcionaria sem as energias patriarcais que o impulsionam. Essas energias são aprendidas e incorporadas nos homens e expressas em práticas sociais e econômicas. Observando os três sistemas, cada um tem vários níveis – do inconsciente às ações cotidianas, às estruturas políticas e à ideologia. [...] A natureza passa pelos corpos, que, uma vez mortos, retornam para fertilizar a Terra. Então, sim, foi uma alegria aprender sobre o sentido relacional de "corpo-território" das mulheres latino-americanas. [...] Um ecofeminismo materialista combina uma resposta feminista, descolonial e socialista ao colapso ecológico do século XXI. Buscamos um Pluriverso – como diz o movimento zapatista, um mundo onde muitas culturas autônomas coexistem. Já mencionei a agricultura comunitária de mulheres chinesas, e há iniciativas semelhantes de Rojava ao Equador. O Pluriverso descreve uma variedade de modelos para viver a sustentabilidade – e no final do livro há um convite para se tornar ativo e participar da Tapeçaria Global de Alternativas, algo que Ashish Kothari e colegas na Índia estão coordenando. Coisas boas estão acontecendo – só que o sistema-mundo do capitalismo colonial-patriarcal é tão agressivo e tão barulhento que nos falta tempo! [...]. Trechos da entrevista Materialist Ecofeminism (Capire, 2025), concedida pela socióloga australiana Ariel Salleh, que escreve sobre relações entre humanidade e natureza, ecologia política, movimentos de mudança social e ecofeminismo: A fotossíntese foliar à luz solar impulsiona o ciclo hidrológico da Terra enquanto retira carbono da atmosfera. Essa análise do clima é precisamente o oposto do que afirmam os agricultores industriais e os fabricantes de alimentos falsificados. Diferentemente da lógica dos aproveitadores e mecanófilos, a chave para curar "o metabolismo do clima" é a água – a corrente sanguínea do planeta. Uma ciência relacional reconhece a influência de múltiplos processos vitais na condução da circulação de resfriamento da Terra, dos ciclos hídricos locais e globais. Biosfera e atmosfera são uma só. Ela é autora dos estudos Ecofeminismo (2017), Ecofeminismo como sociologia (2019) e Teorias e lutas feministas marxistas hoje: escritos essenciais sobre interseccionalidade, trabalho e ecofeminismo (2019), entre outros. Veja mais aqui & aqui.

 

A ARTE DE JULIANA XUCURU

Na nossa infância indígena, a arte é fundamental e está presente desde cedo...

Pensamento da artista visual, ativista e pesquisadora indígena Juliana Xucuru, do povo Xukuru de Cimbres, com graduação e mestrado em Artes Visuais, pela UFPB e UFPE. Sua obra se insere a partir da virada decolonial, questionando referenciais hegemônicos eurocêntricos impostos pela invasão colonial sobre as terras indígenas de seu povo e outras etnias; principalmente do Nordeste do Brasil. Os modos de vida em interação com a natureza sagrada e os encantados de luz, princípios da cosmovisão indígena de seu povo Xukuru, e os deslocamentos forçados das mulheres indígenas, bem como as formas de trabalhos análogas à escravidão, são temas constantes em seus trabalhos artísticos. Com sua arte ela recupera referenciais artísticos tradicionais de seu povo, por meio de sua presença corpo- mulher- território Limolaygo Toype, em lugares ainda pouco ocupados pela presença das mulheres indígenas e seus saberes ancestrais. Veja mais aqui.

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CANTALICE E A CIDADE DAS LARANJAS DE BRENDA MAR(QUE)S PENA

Acontecerá no próximo dia 14 de setembro, na Terceira Feira: encontro de literaturas das margens do mundo, Diamantina – MG, o lançamento do romance Cantalice e a Cidade das Laranjas (Infame Ruído, 2025) da escritora ativista-imersiva-poeta-baterista-jornalista, Brenda Mar(que)s Pena, contando a história de uma mulher que luta pela liberdade e justiça em uma cidade provinciana, com memórias e encontros de coragem, resistência, na busca por um futuro melhor em meio à escuridão de um período de guerras e conflitos, relembrando da importância de abraçar a diversidade, valorizar o diálogo e trabalhar por um mundo mais justo. Veja mais aqui.

 

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segunda-feira, agosto 04, 2025

GLORIA FUERTES, SARAH DUNANT, SAMIRA MAKHMALBAF & JORNADAS DE PASTORIL

 

 Imagem: Acervo ArtLAM.

Ao som do álbum Lady on a Bike (Nonesuch Records Inc, 2025), da dupla pop cinematográfico eletrônico Ringdown, formada pela copmpositora, violinista e cantora estadunidense Caroline Shaw & pela compositora, cantora e multi-instrumentista estadunidense Danni Lee Parpan, celebrando as possibilidades do amor, de fazer música de novas maneiras, de criar conexão e comunidade em um mundo separatista. Veja mais aqui.

 

Tirar proveito pra se lascar depois... – Sabe aquela do... Ah, sem enrolação: Zé Vicário era infeliz de nascença e, ao seu próprio juízo, sua vida servia só pra mangação. E isso conta de sua vesgueira – Tá olhando pra onde, hem? E tanto de apelidá-lo Trêsóim -, razão pela qual usava um ridículo tapa olho para disfarçar. E não era só, outras mais não poupava o vulgo com diversidade de alcunhas, como as suas visíveis orelhas de abano desiguais – Oxe! Uma é maior que a outra? Além de prógnato, buchudo e coxo, avalie. Era tratado como um horrendo patinho feio que sequer poderia jamais ser um cisne ou ganso, nunca! Ocrídio, mesmo. Nem adolescia direito quando os pais morreram. Primeiro a mãe que sempre achava graça nas suas trapalhadas, sempre às gaitadas, e, um dia, com uma gargalhada estrondosa depois da refeição numa festa, viu-se tão insultado de desejá-la morta ali mesmo. Pronto: ela engasgou-se numa indigestão, de defuntar entalada na hora, carregando remorso pro resto da vida. Já o pai, pouco tempo depois, sucumbira atingido por um raio globular de restar cinzas aos ventos. Hem, hem. Sozinho se virou na vida e foi arrumando o que fazer, seguia os passos paternos: foi ajudante de pedreiro, depois cobrador de ônibus, derrubador de árvores frondosas, vendedor de chicletes na entrada do cinema, afora outros afazeres ocasionais levados no bico. Assim foi amadurecendo a misturar sonhos e desejos com o seu costumeiro repasto: arroz com carne seca e feijão, chovesse ou fizesse sol. E com um café quente e forte. Quando puxavam conversa contava uma nova versão da mesma história – Como foi mesmo, hem? -, agora verdadeira! E era uma diferente da outra, desdizendo-se, a ponto de ser acometido duma asfixia toda vez que se via contra a parede: Abre o jogo, vai! Coagido, cagava-se todo e caía na pinoia. E em cada aperto arriava todo esfolado pelas febres, cólicas, coceiras, convulsões, que redundavam em complicações respiratórias: Aperta a venta desse cara prele morrer logo, vai! Salvo pelo gongo, ele se perdia ruminando e era o que mais o consumia, porque se via inutilizado, pouco pra si, a dolorosa impotência odiosa que relutava, ocasião em que preferiria jactar-se com superpoderes e rechaçar suas vulnerabilidades, vingando-se de Deus e do mundo de tanta humilhação. Foi então o dia em que sonhou com o pai revelando uma botija embaixo do abacateiro do quintal. Tô cagado da sorte! Foi ver a casa onde nascera e estava mudada, não havia mais quintal nem nada, gente estranha e mal-encarada ocupando. Perdeu a viagem e, para não voltar arrastando as malas, achou melhor dar um passeio pelo pântano atrás do arruado, revivia a infância. Foi lá que mal sentou-se na beirada do alicerce, ficou matutando: um formigueiro acunhou nos seus guardados, dele sair levantando terra aos pinotes. Foi aí que viu umas coisas estranhas saltando nas suas pisadas. Amiudou a coisa: eram argolas, braceletes, brincos, abotoaduras, trancelins, pulseiras, gargantilhas, tiaras, tudo coisa fina ali catado brotando do chão: Ou tão nascendo assim ou é da botija de pai! Foi remexendo, pegando e empurrando nos bolsos tudo que pudesse e, carregado de não ter mais onde enfiar, olhou pros lados e partiu esquivo, na pontinha dos pés. Chegou na sua casa e jogou tudo sobre a cama, escondido. Surpreendeu-se com um anel. Ah! Era o sonho se tornando real, ele, conforme seu pai, o tal Giges da Lídia, um pastor do anel mágico numa caverna e, por meio dele, tornou-se invisível e ascendeu ao poder. Chegou minha hora! Era só colocá-lo no dedo e virar o aro para dentro, pronto! U-lalá! Meteu no anelar e foi virando, nada. E agora? Aí correu pro espelho: só a roupa aparecia, mais nada. Ficou nu e nem ele mesmo se via: era agora o Homem Invisível que sonhava tornar-se Garabombo. Finalmente vou lavar a jega! E saiu vingando-se de quem podia. Como tudo era vendável e tinha sempre um preço acima do seu poder aquisitivo, deu de levar pra casa o que via e queria. Mostrou-se arrojado, imbuído dum rancor de ultrajado e saiu revidando tudo que sofrera por toda existência. Aprontou das muitas até cansar. Quando deu fé havia perdido a identidade e a própria imagem. Quem sou eu? Viu-se envolto num vazio, a titubear, no meio de uma insônia medonha e com a insatisfação além dos limites. Aí perdeu a graça: foi o que sobrou de sua alvoroçada euforia. O anel falhou, parece, e viu-se desmascarado. E o pior: sem saber ele levantara uma gigantesca lebre envolvendo-se numa roleta russa, na qual se viu acossado por uma cilada armada por metralhadoras giratórias em que cada bala, de cada uma delas, vinham inexoráveis petardos de prepotentes agronegociadores, da gang fardada, do esquadrão da morte, do narcotráfico neopentec, de quadrilha de roubo de cargas, de sicários de aluguel, de milícias e de todas facções criminosas, sapecando-lhe raivoso bafo no espinhaço. Lasquei-me! Seu furtivo passeio foi aplacado por um brutamontes que agarrou seus culhões com um berro: - Teje preso, linguarudo! Sentindo o aperto tentou escapulir, quando, por trás, um cano frio e grosso escorregou pelo rego da bunda enfiando-se no seu fiofó arregaçado: - Foge não, cabra! Lá foi ele pendurado para uma ordália formada pelos mais asquerosos algozes. Era ele agora alvo das atrocidades do terror, no centro dum holofote, no meio de um interrogatório tomado pelo fumaceiro das vozes, com inquirições sobre isso e aquilo, disso e daquilo, coisas que nem sabia ou se soubesse fazia que não: Deus me livre, sei disso não! Sabia e todos sabiam, mas ali subjugado, aos apertões e cascudos, espremido, afolozado, torturaram-no de todo jeito: deram-lhe beliscões, fizeram-lhe cócegas, sacudiram-no de cabeça pra baixo, envergaram-no, puxaram, espicharam, esticaram, arrancaram o restinho de cabelos, deram-lhe murros no espinhaço, quebraram o pau da sua venta, arrancaram-lhe os dentes e as unhas, furaram os olhos, amputaram as orelhas, abriram o buraco do umbigo, cortaram os pulsos, toraram os braços, enfiaram-lhe troços protuberantes, rasgaram-lhe o procto, caparam e findou cotó. Já imprestável, jogaram-no pela janela. Ufa! Estava por uma peínha de nada quando um siroco aziago varreu as coisas no seu desassossego. Até isso? Nessa hora vulnerou indefeso, inepto, aos calafrios, morrinhento e a vida encardida. Teve náuseas de sua desgraça e, no meio de sombras secretas, aprendia a viver com a frustração, conformado por não ter o que lhe faltava. Ainda teve tempo de tentar enfrentá-los, crédulo de vencer o impossível. Aviou-se e era segunda feira, às últimas horas do primeiro dia da semana – Ou segundo? Sei lá, pensou. Alta hora da noite ele se debatia em defesa de si e, quase refestelado, foi acometido por um soluço inarredável, transido de frio, agonizava de véspera sem morrer, ansiando pelo extraordinário. A noite havia desabado, mas sonâmbulo eidético estava livre de tudo. Aí arrastou-se até a esquina do quarteirão e olvidou o clique de um gatilho disparado com silenciador na nuca, a reduzi-lo a um grito ensurdecedor na calmaria da noite que ninguém ouviu – quem ouviu fez que não viu, é a vida. Assim foi, até mais ver.

 


Meg Cabot: Guarde suas rejeições para que, mais tarde, quando você é famoso, possa mostrá-las às pessoas e rir... Veja mais aqui, aqui, aqui & aqui.

Rosa Montero: Desconfia daqueles que têm mais respostas do que perguntas. Daqueles que te oferecem a salvação como quem oferece uma maçã. Nosso destino é um mistério, e talvez o sentido da vida não seja mais do que a busca desse sentido... Quero dizer que nunca ninguém ganhou uma luta defendendo-se. Para vencer, é preciso atacar... A vida é uma doença terrível que eventualmente mata todos nós... Veja mais aqui, aqui, aqui, aqui & aqui.

Hitomi Kanehara: Quando um peixe fica sem comida, ele tem uma de duas opções: escapar ou morrer... Veja mais aqui.

 

EU ESCREVO POESIA, SENHORES!

Imagem: Acervo ArtLAM.

Eu escrevo poesia, senhores, eu escrevo poesia, \ mas, por favor, não me chamem de poetisa; \ eu bebo meu vinho como os pedreiros fazem \ e tenho uma assistente que fala sozinha. \ Este mundo é um lugar estranho; \ coisas acontecem, senhores, que eu não revelo; \ eles constroem casas, por exemplo, mas nunca constroem casas \ para os pobres que não podem pagar por elas. \ E solteironas estão sempre brigando com seus cachorros, \ homens casados com suas amantes, \ mas ninguém diz nada aos tiranos brutais. \ E nós lemos sobre as mortes e viramos as páginas, \ e as pessoas nos odeiam e nós dizemos: é a vida, \ e eles pisam em nossos pescoços e nós não nos levantamos. \ Tudo isso acontece, senhores, e devo dizê-lo.

Poema da escritora espanhola Gloria Fuertes García (1917–1998), defendendo em sua obra a igualdade entre homens e mulheres, o pacifismo e a luta pelo meio ambiente: Tenho medo de acreditar que o amor é apenas um poema que inventei... Embora eu seja treinada e sempre ressuscite, decidi nunca mais morrer... Devemos nos esforçar para curar as sementes, enfaixar os corações e escrever o poema que irá infectar a todos nós...

 

EM NOME DA FAMÍLIA - [...] Nascimento, união, morte. Quanto mais ela pensa nisso, mais lhe parece que é só isso: uma roda girando sem parar, movendo-se tão rápido que às vezes nem se consegue distinguir os raios. É um milagre que ainda haja espaço para a poesia. [...] À medida que os últimos sinos se extinguem, uma série de gritos masculinos contorcidos surge de algum lugar próximo; uma cópula tardia entre os lençóis ou algumas facadas matinais na barriga? Ele sorri. Esses são os sons de sua amada cidade [...] É a doença da juventude confundir velocidade com estratégia. Cascalho misturado com mel: o tom perfeito para proferir mentiras e ultimatos. A pobreza não traz dignidade aos homens. Pelo contrário, incentiva a inveja e o crime. O rosto de um diplomata deve ser tão ilegível quanto sua mente. Reinos caem pelo luxo. Cidades ascendem pela virtude. Nenhum diplomata que se preze deve dizer tudo o que pensa. Apesar de toda a pompa e exagero sobre as maravilhas de Roma, foi Valência que fez de Rodrigo Bórgia o que ele é: um clérigo apaixonado por mulheres, riqueza, flor de laranjeira e o sabor das sardinhas. Sonhos são o que os homens usam para se confortar quando não conseguem o que querem. Suponho que os grandes homens da história viveram sem dormir. [...] Às vezes é útil temer demais alguma coisa, pois isso torna a coisa real bastante suportável. [...], Trechos extraídos da obra In the Name of the Family (Random House, 2018), da escritora, jornalista, radialista e crítica britânica Sarah Dunant, autora de obras como Blood & Beauty (2013), Sacred Hearts (2008), In the Company of the Courtesan (2006) e Mapping The Edge (1999), expressando-se que: Mas qualquer um que tenha sido tão jovem sabe que a grande tristeza do amor é que seu corpo sente mais quando ele sabe menos. Veja mais aqui.

 

VIOLÊNCIA DO TERRORISMO - [...] O termo terrorista é um clichê. Eu o chamo de violência. Não há diferença entre as várias formas de violência. Seja em nome da religião, de um partido político ou por amor, a violência é a mesma. Quando damos nomes diferentes para a violência, estamos legitimando sua existência. Eu associo grupos como o Talibã à ignorância, à violência e ao fechamento de portas para os outros. […] Considero-me mais um ser humano do que uma mulher. Devo isso ao meu pai. Ser religioso é algo pessoal. Não precisa ser no âmbito da política ou do poder. Critico o islamismo porque nasci nele; pude observá-lo mais de perto. [...] Na corrida rumo à modernidade, o mundo frequentemente ignora os valores da civilização. A televisão está nos ensinando a pensar de maneira muito clichê. A TV está tentando fazer do mundo uma única imagem/voz. Está tentando fazer de toda a humanidade uma única pessoa, perdendo assim o caráter de ser humano. [...]. Trechos da entrevista Por que eu crítico o Islã? A TV está tentando fazer do mundo uma única imagem (NewAgeIslam, 2009), concedida pela cineasta e roteirista iraniana Samira Makhmalbaf.

 

JORNADAS DE PASTORIL

[...] As políticas públicas, apesar dos avanços na sistematização de instrumentos adequados à promoção e proteção das manifestações artísticas populares, necessitam de aprofundamento nos níveis de acessibilidade, igualdade de possibilidades e processos formativos eficientes e suficientes, para atender aos objetivos de uma sociedade mais respeitosa, capaz de reconhecer-se na sua amplitude cultural. Um aspecto relevante para o fortalecimento das culturas brasileiras e a construção da cidadania, é a integração educação-cultura, a priori, indissociáveis. [...].

Trechos extraídos da obra Jornadas de pastoril (Fundaj/Massagana, 2012), da professora, pesquisadora e musicista Dinara Helena Pessoa, que desde a sua infância está ligada à cultura popular, manifestando-se que: Quando pequena, dancei mais de 50 vezes o pastoril... Deixei de ser brincante para ser uma entusiasta do folguedo.... Veja mais aqui, aqui, aqui & aqui.

&

VIVA PERNAMBUCO: PALMARES

A partir de 04 até 15 de agosto de 2025, acontecerá o projeto Viva Pernambuco: Patrimônio, Cultura e Memória, com a exposição Palmares, Terra de Cultura e de Grandeza. O evento ocorrerá das 8 às 17h, no Teatro Cinema Apolo, destacando o patrimônio histórico de casarões antigos, a estação ferroviária, além de personagens e instituições que marcaram a cultura local. O projeto é desenvolvido pelo Instituto dos Palmares, com o apoio cultural Redes dos Institutos Históricos de Pernambuco, do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), Ministério da Cultura e do Governo Federal, através do Instrumento nº 959776 da emenda parlamentar da senadora Teresa Leitão (PT). Veja mais aqui.

 

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NEIGE SINNO, ARIEL SALLEH, MARÍA NEGRONI, JULIANA XUCURU & BRENDA MARQUES PENA

    Imagem: Acervo ArtLAM . Não acredito que as poucas mulheres que alcançaram grandeza no trabalho criativo sejam exceção, mas acho que a...