[...] a questão-chave investigada nesta pesquisa
diz respeito a desconstruções estéticas vocais - com foco na movimentação da
Vanguarda Paulista - e como isso pode estar associado ao feminino. [...] buscou contribuir para uma extensa gama de
pesquisas que relacionam música a questões de gênero, além de apontar a
coexistência colaborativa entre diversos métodos para a análise de canção das
mídias. [...].
Trechos
extraídos da dissertação de mestrado sob a temática Se a obra é a soma das penas: um estudo
feminista sobre as cantoras da Vanguarda Paulista (USP, 2018) e ao som do álbum Mulher Bomba (2022), da compositora, pianista,
cantora, professora, preparadora vocal e ativista Luísa Toller (Luisa Nemésio Toller), em parceria com a escritora, atriz e slammer Luiza
Romão.
Heptamerão: até que a morte os separe... - No primeiro
dia era janeiro nos olhos estivais de Suzanilza, a sonhar Egipcíaca de Bandeira, como se fosse a rainha de maio da Vita de Sofrônio.
Entretida com o que se tornara seu Heptameron de Navarre, mais se
embalava com as leituras dos versos adorados da Soror Juana Inés,
alentando-se com outras de tantas preces, quando empinava os seios para madurar
nas estrelas, no afã de que de lá refletissem aos olhos do bem-amado longínquo,
sabia ela não tardaria a chegar. Era o chamado do amor numa espera de séculos e
por todas as suas tardes e noites suspirantes. No segundo dia do seu devaneio
profundo, o espetáculo do crepúsculo outonal: lá estava ele vencendo as
distâncias mais remotas para ancorar seu Pavão Mysterioso na varanda do
quarto dela. Iluminada pela recepção, mais se fez bonita lua decotada, pronta pro
seu senhor desejado. Ele abraçou-a com suas mãos de Proteu, dela se deixar à
mercê de suas investidas por entre saia, a desabotoar seu corpo virginal
castiço, com ginga pro rastapé, bate-coxa, um galope à beira-mar. Ele descobria
o labirinto da intimidade dela e a cada instante reiniciava e, por azo, fruía
do seu inebriante perfume arrebentando o tempo, agitando por dentro para que
ela se fizesse dilúvio com seus belos adornos ao seu dispor. E mais se gabava porque
o vento trazia a tormenta e tanto lhe foi dado atiçando a lareira dela, para
que ela crescesse vultosa e não mais donzela, ocupando-a a instigá-la, de
perder as vestes todas e ser só dele, a se queimar com o seu fogo ardente. Ela astuciosa
serviu-lhe fagueira, a boca entreaberta e suas águas escorriam. Um talho recíproco
em seus polegares selou definitivamente o pacto de sangue. A alvura dela
imaculada o fazia claudicar extasiado diante do enlace dos nubentes. E naqueles
lábios escarlates ele se lambuzou com o gosto do batom, saboreava nela tantos
quantos deliciosos bem-casados. Dali talvez dias mais, ela noivava esponsal de Getulídio, um aplicado bancário de somas e contas, agora
dono de seu coração e um calendário repleto de brindes e libações. No terceiro
dia de quantos meses a lua de mel se prolongou com a ascensão primaveral no
ramalhete diário de bem-aventurados e os dois se engalfinhavam pelos lençóis do
tempo e até as horas cúmplices se estiravam pelos colchões de nuvens
migratórias, impressionando-o com o Olho de Hórus no trancelim dela. Logo os filhos
vieram. O primeiro a nascer foi Ínvio, um primogênito na empáfia de todas as satisfações.
Um ano depois, a filha, Maria Lua, coroando o casal. E viviam para si de quase olvidar
o crescimento do filho a olhos vistos, enquanto a filha engatinhava sonhos que
serviam de folguedos para sua felicidade imorredoura. Definia-se a
descendência, de quase não conseguirem segurar o trupé do coração. E um sobressalto
repentino, a família e, o que era cor-de-rosa, agora singrava as obrigações e
cuidados imprevisíveis com o espelho quase se espatifando inadvertido,
trincando o vidro dos festejos. No quarto dia a invernada súbita e a dança dos
erros com a morrinha, o grande não, os desacertos, quantos percalços fizeram a
barra mais pesada pra eles, a poeira do deserto, puxa vida! Amargurados, sequer
notaram os filhos crescidos e tomando o rumo das suas ventas. Um dia ao
despertar com a braguilha pelo avesso: um brinco na orelha do filho. Como é? O
alarme soava: o rapaz descobriu-se outra que não a sua, era agora Tyrésias.
Com o escândalo Maria Lua minguou fazendo coro, não mais aquela porque outro
era o seu teimar, João Sol – Maria Joãozinho para íntimas de sua
sororidade solidária, luz própria, próprio mando e firmeza de fé. Clamores
exacerbados: O que foi que eu fiz, meu Deus? Era o caos nos olhos descabelados
em todas as direções: uma heresia nos seus bíblicos poréns, como se não
poupasse sua condenação - Maldita androginia! O ridículo, a posteridade, a
reputação, tudo revirado aos relâmpagos e trovões. Uma sentença secreta
mostrando os dentes na aflição paterna. No quinto dia ensolarado, o verão era
enorme como um dia de fome, lágrima alguma evaporava, não havia perdão e era o
que mais punia. A notícia da tentativa de suicídio do filho liquidava de vez as
forças maternas restantes e não havia como ela resistir. Na sua agonia
estertorava com a ameaça de que a filha fugira de casa na madrugada. O pai se
vingou: ia enxotá-los de qualquer jeito. Suzanilza estava cônscia que ia
morrer, esgotada pelas demandas: era quase uma Fênix deplorada e que se fez
cinzas para jamais ressuscitar - uma estrela perdida nas constelações infindas.
Quando ele a viu quase uma estátua de pedra, sabia que seria nunca mais: a
viuvez, os cravos de cemitérios, os choramingos, nada havia como abrandar a sua
dor. O riso preso pela alegria que se fora com o teto que desabou apagando a
memória, lugares e palavras. Entre as mãos escondia a face, a morte adiantava a
sua parte e não moveu um dedo sequer: ela viva jamais o deixaria morrer. Agora,
não mais. Era o sexto dia pluvioso, a desmemória e não podia ignorar o álbum de
fotografias. Foi-se a esperança e o que ficou para trás. Naquele momento todos
as memórias se esvaíram na escuridão. Tentou reabilitar-se no penúltimo degrau
da escada para destruir o sinaxário, como se caçasse quem roubou o segredo de
Deus e raptou para si a palavra perdida. Ali sentia e era incapaz de entender
seu próprio sentimento. Muitas noites naquela longa travessia soturna com a
herança apenas de cada vez contar a sua história e a sensação reiterada de
nunca mais. Enfim, no sétimo era dia branco e não sabia. Passou a vida a limpo,
lamentou tantas vezes terem se estranhado por coisa de pouca monta, as cenas de
ciúmes, ausências punitivas, o descanso, o silêncio valetudinário, esgotava-se.
E uma luz nas suas trevas: Quem é ela? Vinha calma, cândida, vestida com seu
manto branco reluzente, cocar de penas brancas e, ao peito, a insígnia com um
punhal branco afiado e lâmina para baixo. Quem é ela? Vinha carregando o seu
bastão celeste feito de pau-brasil banhado pelos raios de Tupã, à cintura o
cordão de Iara e o sorriso confortador: Sou Catxuréu:
O fim será sempre o início de um novo começo... Não ouvia, nem falava.
Sabia apenas que ela viera da primeira morte do mundo para levá-lo pela ponte
dos que se perderam, livrando-o de Luison – o deus da morte ruim. E o
acompanhou até a sua última gota de vida, era 1º de abril. Até mais ver.
Nazik Al-Malaika: A noite pergunta quem eu sou. Eu sou sua intimidade insone, profunda e escura. Eu sou sua voz rebelde... Veja mais aqui, aqui, aqui, aqui, aqui & aqui.
Annie Proulx: Somos todos estranhos por dentro.
Aprendemos a disfarçar nossas diferenças à medida que crescemos... Veja mais
aqui, aqui & aqui.
Martha Medeiros: Viver tem que ser perturbador, é preciso
que nossos anjos e demônios sejam despertados, e com eles sua raiva, seu
orgulho, seu asco, sua adoração ou seu desprezo... O que não faz você mover um
músculo, o que não faz você estremecer, suar, desatinar, não merece fazer parte
da sua biografia... Veja mais aqui, aqui, aqui, aqui, aqui & aqui.
DOIS POEMAS
ESCOTOMAS - Espumante:
\ Esta área cega do campo visual \ é uma série de \ flashes de luz em
movimento. \ O fato de saber \ coisas \ só porque \ o fato de imaginá-los \ a
mente vê \ o que quer ver \ claramente. \ A cama. \ A cicatriz.
REENCARNAR - O
luto é uma questão de excesso de ordem. \ Luto é a mesma coisa que tristeza? \ Certamente
ela já teria se perguntado isso antes. \ Não sei o que ele poderia ter
perguntado a si mesmo. \ Se em vez de irem a uma festa \ tivessem ficado
sozinhos em casa, sem dúvida teriam chorado. \ Sem dúvida: essa frase me
assusta. \ É possível que o homem e a mulher tenham ficado em silêncio em
cômodos diferentes da mesma casa. \ Casas grandes acomodam a solidão de seus
habitantes. \ Uma frase completa é como uma sala onde uma mulher ou um homem
chora sem perceber. \ O céu nunca esteve tão azul. \ A tristeza é
frequentemente expressada através do choro. \ Também é comum que a tristeza
seja inexprimível. \ Tristeza é a mesma coisa que pesar?
Poemas da premiada
escritora, tradutora e crítica mexicana Cristina Rivera Garza, autora de
Autobiografía del algodón (2020), El invencible verano de Liliana
(2021) e a sua coletânea completa de poesias, Me llamo cuerpo que no está
(2023).
BRANCO QUEBRADO -
[…] E o vento alísio
da tarde trouxe o ar do mar. "Como está a cozinha?", ela disse:
"Vai demorar um pouco para tudo ficar bem macio." Um aceno da avó e
ela correu para a cozinha para colocar tudo em fogo baixo e finalmente começar
a lavar roupa. A avó entrou na cozinha, como se fosse direto para o banheiro.
Parou quando ouviu a máquina de lavar funcionando e olhou para ela com
curiosidade. [...] Ela continuou
convencida de que havia nascido na família errada, no país errado, na época
errada. E, no entanto, eles conseguiam ficar lado a lado e recuperar o fôlego
na foz do Rio Suriname. [...].
Trechos da obra Gebroken wit (Prometheus, 2019), da escritora e professora
surinamesa-holandesa Astrid Roemer (Astrid Heligonda Roemer), no qual
conta sobre três gerações de surinameses, a avó Bee, sua filha Louise e seus
cinco netos, tentando encontrar seu caminho no mundo, no Suriname e na Holanda,
enquanto segredos obscuros de família estão em jogo. Em uma
entrevista concedida (Center For The Art Of Translation, 2023), ela expressa
que: [...] é um romance que te toca
profundamente. É um livro físico. Comer e preparar refeições, beber, pensar e
se envolver com a sexualidade são atividades físicas. Esse é o paradigma desses
romances, que formarão uma trilogia. [...] Fundamentalmente,
eu nunca tinha ido embora. Por volta da virada do século, depois da minha
trilogia de 1.000 páginas, Impossible Motherland, a então
respeitada revista feminista Opzij chegou a me nomear uma das três
mulheres mais importantes dos últimos anos. Eu queria dar ao meu trabalho a
chance de se conectar com a sociedade holandesa e alcançar uma geração mais
jovem. E enquanto minha carreira estava voando alto em público, eu estava
lutando com constantes arrombamentos em meu endereço residencial e com
telefonemas ameaçadores de estranhos. Eu havia me libertado de certos laços
íntimos. Eu estava pronta para escrever romances como Off-White e
Dealer's Daughter, junto com novos poemas que expressariam minha
visão de mundo cosmológica. Eu sentia um desejo intenso por um habitat de
língua inglesa. Eu me estabeleci na Escócia e em Skye, de onde alguns dos meus
ancestrais haviam partido para o Suriname. Eu era tão feliz lá, só eu e minha
gata Steffi. Agora estou redescobrindo o lado estadunidense dos meus primeiros
anos em antigas canções de amor. [...]. É também autora de On a Woman's
Madness (1982).
A LINGUAGEM DO
FANATISMO - [...] as palavras são o
meio pelo qual os sistemas de crenças são fabricados, nutridos e reforçados;
seu fanatismo fundamentalmente não poderia existir sem elas. [...] a
linguagem não funciona para manipular as pessoas a acreditarem em coisas que
não querem acreditar; em vez disso, ela lhes dá a liberdade de acreditar em
ideias às quais já estão abertas. A linguagem — tanto literal quanto figurada,
bem-intencionada e mal-intencionada, politicamente correta e politicamente
incorreta — remodela a realidade de uma pessoa somente se ela estiver em um
lugar ideológico onde essa remodelação seja bem-vinda. [...]. Trechos extraídos da obra Cultish:
The Language of Fanaticism (Harper, 2021), da escritora e linguista
estadunidense Amanda Montell, que noutro livro Wordslut: A Feminist
Guide to Taking Back the English Language (Harper, 2019), ela expressou
que: […] Um dos conselhos menos úteis da nossa cultura é que as mulheres precisam
mudar a maneira como falam para soar menos "como mulheres" (ou que
pessoas queer precisam soar mais heterossexuais, ou que pessoas de cor precisam
soar mais brancas). A maneira como qualquer uma dessas pessoas fala não é
inerentemente mais ou menos digna de respeito. Só soa assim porque reflete uma
suposição subjacente sobre quem detém mais poder em nossa cultura. [...] Uma
das formas mais sorrateiras pelas quais esses preconceitos se manifestam é que,
na nossa linguagem, na nossa cultura, a masculinidade é vista como o padrão.
[...] Se você quer insultar uma mulher, chame-a de prostituta. Se você quer
insultar um homem, chame-o de mulher. [...] Também vivemos numa época em
que vemos veículos de comunicação respeitados e figuras públicas circulando
críticas à voz feminina – como a de que elas falam com muita fricção vocal,
usam palavras como "literalmente" e "literalmente" em
excesso e pedem desculpas em excesso. Eles rotulam julgamentos como esses como
conselhos pseudofeministas, visando ajudar as mulheres a falar com "mais
autoridade" para que possam ser "levadas mais a sério". O que
eles parecem não perceber é que, na verdade, estão mantendo as mulheres em um
estado constante de autoquestionamento – mantendo-as quietas – sem nenhuma
razão objetivamente lógica, a não ser o fato de que elas não soam como homens
brancos de meia-idade. [...].
MINHA CUMADI FULOZINHA, DE GIVA SILVA
Somos filhos da Mãe da Mata e tivemos com ela, cada qual, as suas experiências. Justamente por isso mesmo: desde a mais tenra idade a Cumadi Fulozinha faz parte das nossas vidas. E há quem, como eu e o autor desta obra, tenha vivenciado muito e tanto, a ponto de, em si, manter sagrada as marcas ancestrais vivas em sua espiritualidade. Afinal, confesso: até hoje ela vive comigo. Além do mais, outras coisas contadas e cantadas: somos causas e consequências de histórias - todas emergentes a cada dia, a cada ano vivido, em cada momento do presente que passou agorinha mesmo. Eita! Foi. Inventamos estórias por vivermos dos porquês, fatos, fantasias, devires. Vivemos do que vem de dentro: o que é e será sempre. Enfim, somos todos hestórias (LAM).
Texto escrito por mim para a publicação do livro Cumadi Fulozinha
(2025), do educador, comunicador e militante indígena Giva Silva (Givanildo
M. da Silva), que é o idealizador e coordenador da Tv Imbaú. O livro que se encontra em pré-venda é memorialístico e
onírico, mergulhando nas lembranças de um menino guiado pelo avô num universo
de descobertas infinitas. No centro dessa jornada, como objeto de fascínio e
curiosidade, está uma das figuras mais enigmáticas e fundamentais da cultura
indígena e popular do Nordeste: a protetora das matas, Cumadi Fulozinha. Com
uma narrativa que oscila entre o real e o imaginário, o texto evoca não apenas
as memórias afetivas da infância, mas também a força mítica dessa entidade
guardiã, cuja presença transcende as histórias sobre ela para se tornar um
símbolo de resistência e mistério. O avô, como narrador e guia, conduz o menino
(e o leitor) por um mundo, no qual os limites entre a realidade e o sonho se
dissolvem, revelando a profunda conexão entre a cultura ancestral e a formação
de um imaginário pessoal. Assim, a obra comemora a tradição oral, o afeto
familiar e o poder das histórias que moldam quem somos—ou quem desejamos ser.
Veja mais aqui, aqui & aqui.
&
ARTE NA ESCOLA
Arte dos alunos da Escola Municipal Ivonete Ferreira Lins & do Ginásio
Municipal Fernando Augusto Pinto Ribeiro, de Palmares – PE. Confira aqui e
aqui.
ITINERARTE –
COLETIVO ARTEVISTA MULTIDESBRAVADOR:
Acontecerá entre
os dias 18 e 22 de agosto, na Biblioteca Pública Municipal Fenelon Barreto, em
Palmares, a 18ª Semana do Patrimônio Cultural de Pernambuco, com a
temática Palmares de todos os saberes: cultura popular na voz do povo. Dentro
da programação, no dia 19 de agosto, nos turnos da tarde e noite, realizarei a
palestra Cordel, contos & causos de Palmares: Narrativas da Mata Sul
pernambucana.
Veja mais sobre
MJ Produções, Gabinete de Arte & Amigos da Biblioteca aqui.