DIÁRIO DO GENOCÍDIO NO FECAMEPA – UMA: SABE
AQUELA... O EXTRA NO HORROR DE CADA DIA... Passos
errantes, de mil em mil, todo dia, conto nos dedos. Sigo na cidade a céu aberto
e gente de gelo por ruas e descampados nem sabem dos que morreram desde
anteontem, ou melhor, desde o outono, depois das festas do carnaval. As minhas
mãos são rios florestais, raios e trovoadas, auroras de mares boreais e
geografias inventadas ao deleite, porque a vida está difícil, quase impossível
respirar nessa hora de zoadas, indiferenças e aflições. Se colho frutas na
estrada, dos galhos não sei envenenados e insetos que nunca vi na fuligem negra
do asfalto, enquanto meus pés varrem o mundo na poeira dos ventos e na faixa de
pedestre o semáforo apita iminência, para Cora
Coralina avisar: O que
vale na vida não é o ponto de partida e sim a caminhada. Caminhando e semeando,
no fim terás o que colher. Desço a ladeira de
pedras e quebro a redoma, a cidade desaba do céu escuro, com todas as paisagens
dissolvidas, como se a amanhã fosse a tarde anoitecida e daí, não sei mais de
nada.
DE DOIS PARA MAIS DE MIL A CADA DIA (Imagem: The Last
Days of Mankind – A Visual Guide to Karl Kraus’ Great War Epic, Artwork
by Deborah Sengl). – Dois mundos saem do labirinto, e daí eu não sei qual
deles sobreviverá, talvez nenhum. Qual é. Sou esse trânsito louco engasgado na
encruzilhada, aos gritos e buzinas, ninguém se entende, estranhos com ofensas
mútuas de desumanos aos esparros, todos aos esculachos recíprocos, a nossa
barbárie, quantos selvagens, isso somos afinal, reduzidos a isso – a amígdala
cerebral encolhida, tão se encolhendo mais, num estalo, sumiu e não mais Homo sapiens ou faber ou ludens ou Deus de Harari, nem nada mais. O chão é
móvel e me leva para longe deles. Do zoadeiro da gente de gelo e dos
sorridentes de Arcimboldo, em cada
esquina uma medusa atônita com o Grito deMunch repete em eco de Décio Pignatari: Poesia é
a arte do anticonsumo, e ele, logo atrás me diz: O que me interessa hoje? Passar da
tecnologia para a sabedoria. E passam por mim, e
são muitos os vultos e envultados multicores e o riso de cada um deles é um
quebra-cabeça cheios de charadas, enigmas de não sei quando, ah esse mundo não
é mais o mesmo, eu sei; essa vida a qualquer hora vai parar, eu sei, o mundo já
parou e ninguém sabe é se haverá quem esteja vivo depois que tudo isso passar,
ou se a espécie humana se salvará da extinção daqui mais algumas décadas, não
sei, que o diga Karl Kraus: A guerra, a princípio, é a esperança de que a
gente vai se dar bem; em seguida, é a expectativa de que o outro vai se ferrar;
depois, a satisfação de ver que o outro não se deu bem; e finalmente, a
surpresa de ver que todo mundo se ferrou. Ele sorri e ironicamente
arremata: O progresso técnico deixará
apenas um problema: a fragilidade da natureza humana. Baixei os olhos
diante disso e ele se foi com ar de desencanto. Eu sei, quando não somos os carrascos de nós próprios, somos as vítimas
para todos nós. Coisas de humanos.
TRÊS IDAS & QUASE NENHUMA VOLTA – Diante da ameaça de extermínio que nos ronda
há tempos, me bate aquela sensação sentida ao ler as obras do fotógrafo e
microbiologista russo Roman Vishniac (1897-1990), famoso por filmar a
cultura judia antes do Holocausto: Estes são os rostos de
crianças que abracei, beijei e amei. Não posso imaginar que eles estejam
mortos, que ninguém sobreviveria... Um milhão e meio de crianças entre os seis
milhões... Mas isso eu sabia... Eu queria salvar seus rostos, não suas cinzas. Você
pode fazer alguma coisa com isso? Sim, você pode chorar. E chorei muito, tanto
até e Martha Medeiros sussurrou na
minha desolação: Faça o
que for necessário para ser feliz. Mas não se esqueça que a felicidade é um
sentimento simples, você pode encontrá-la e deixá-la ir embora por não perceber
sua simplicidade. Não é
a altura, nem o peso, nem os músculos que tornam uma pessoa grande, é a sua
sensibilidade sem tamanho. Sim, eu sei. E pude
abraçá-la para dizer sim e sou pau-brasil
solitário na devastação, em extinção e pronto. Celebro a vida sobre todos os
mortos do outono ao inverno, a vida deles para todos viverem. E os levo, pé na
estrada, cidade a céu aberto. Gente de gelo nas ruas ermas, passos errantes
conto nos dedos. Até mais ver.
ARGEMIRO PASCOAL
A arte
do dramaturgo Argemiro Pascoal
(1948-2012), criador do Teatro Amadores de Caruaru (TAC), em 1957, e do Teatro
Experimental de Arte (Arte), em 1962, criador e realizador do Festival de
Teatro Estudantil do Agreste (FETEAG), a partir de 1982, e é autor das peças O
testamento, Festa de casamento, O bordel, A epopeia do beato, Um canto de amor,
País de Caruaru. Veja mais aqui, aqui, aqui & aqui.