O FUTURO É AGORA
- Imagem O Beijo (1923), do pintor e caricaturista brasileiro Di
Cavalcanti (1897-1976). - Dei por conta de mim: olhei pra trás e tudo era
infinitamente distante, como se um filme de desagradáveis e tortuosas cenas
tivessem que repassar constantemente como um caleidoscópio, na minha travessia entre
meus vivos indiferentes e os mortos que sequer esqueci, de tão vivos se
parecerem nos meus horrores e risadas. Lá na frente tudo o que não sei, vou
sempre adiante, mesmo que não saiba se é mesmo adiante ou se estou andando em
círculos ou me perdendo entre esquinas, curvas e acenos. Ao meu lado não há
ninguém, isso eu sei há tempos, é que nunca segui procissões nem fui pra plateia
dos palcos da prestidigitação, das promoções do mercado, do glamour da moda e
da perda de tempo que é seguir porque outros seguem por puro prazer. É que me
dei conta da fração de segundos entre o que é a vida e o que é a morte, e do
meu tamanho ínfimo perante o universo. Há tempos deixei de esperar e mesmo que
malogre porque nada é pra já, faço acontecer ao meu modo, já quantas aflições
pelos segundos que duraram uma eternidade quando precisava e era de imediato,
sobrevivendo sob o truque da imaturidade: o medo de tudo, a ameaça constante. Tantas
vivências de expectativa pelo amanhã: tudo podia acontecer da espera à agonia
pra ansiedade: o que será, nunca se sabia. O tempo parecia parar naquela hora, como
sempre tudo passava e o que se desejava nem aparecia na esquina nem lá longe,
nem adiantava apurar a vista ou ficar pra lá e pra cá, tonto de requerência.
Inquietações assomavam e a balança aparentemente equilibrada não deixava
visualizar se ia ou não, quem merece. A lentidão levava ao afobamento corroendo
vísceras e unhas e por que não, se estava prestes a ser feliz e o que era a
felicidade dava as costas escorrendo pelas minhas mãos e sumindo no triz da
primeira piscada de olhos. Uma escolha e quantas consequências: o peso da
resolução. Ao decidir eu construía o meu caminho. O que sou hoje é resultado de
tudo que fiz e fui ontem. E eu havia me esquecido disso. Cada passo, cada sim,
nãos, acenos, dobradas de esquina, relutâncias, teimosias, atalhos e
subterfúgios, cansaço, aperreios, suspenses e arrepios. Hoje sou porque sinto:
já deplorei minguando na solidão noites intermináveis e sofri pelo que não
tinha, e morri pelo que até nem mesmo merecia. Tive que cuidar dos meus
sentimentos, torná-los melhores para não quedar desamparado. Hoje sou porque
penso: já sucumbi pelo mergulho de mirabolantes ideias, elegendo algozes e
enfrentando os meus próprios moinhos de vento. Eu sequer me compreendia, só
sentia e pensava. Tive que cuidar dos meus pensamentos e meus sonhos se
tornaram factíveis sem que precisassem ser naquele instante porque são reais
demais para serem ansiados ou preteridos conforme o capricho do querer. Hoje
sou porque percebo: quão sutis são as coisas verdadeiras e nem precisei dos
olhos bem abertos para tanto, bastou cerrar as pálpebras e hoje sinto, penso e
percebo porque sei que não há destino, porque o passado construiu o meu
presente e o futuro é agora. Tomei tento. Há uma razão para tudo, o acaso não
existe. Faço agora porque sei amanhã: o futuro às minhas mãos. © Luiz
Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais aqui.
DITOS & DESDITOS:
[...] A porta do
helicóptero abriu-se, saindo um rapaz louro de rosto vermelho; depois com um
calção de belbutina verde, uma blusa branca e, na cabeça, um boné de jóquei,
apareceu uma moça. À vista da jovem, o Selvagem estremeceu, recuou, empalideceu.
A moça ficou de pé, sorrindo para ele - um sorriso hesitante, púplice, quase
abjeto. Passaram-se alguns segundos. Seus lábios moveram-se - ela dizia qualquer
coisa; mas sua voz foi abafada pelo estribilho forte e repetido dos curiosos;
"Nós-queremos-o-chicote! Nós-queremos-o-chicote!" A jovem apoiou as
duas mãos no coração, e no seu rosto corado como um pêssego, lindo como o de
uma boneca, apareceu uma expressão estranhamente incôngrua de aflição anelante.
Seus olhos azuis pareceram dilatar-se, tornar-se mais brilhantes; e,
subitamente, duas lágrimas rolaram-lhe pelas faces. Em voz inaudível, falou outra
vez; depois, com um gesto vivo e apaixonado, estendeu os braços para o Selvagem
e deu um passo à frente. "Nós-queremos-o-chicote! Nós-queremos..." E,
de repente, eles tiveram o que pediam. - Cortesã! - O Selvagem avançou para ela
como um louco. - Fuinha! – Como um louco, pôs-se a vergastá-la com seu chicotede
cordas finas. Aterrorizada, ela virou-se para fugir, tropeçou e caiu no meio
das urzes. - Henry! Henry! - gritou. Mas seu rubicundo companheiro correra a
abrigar-se do perigo atrás do helicóptero. Com um bramido de excitacão
deliciada, a linha rompeu-se. Houve uma corrida convergente para aquele centro
de atração magnética. A dor era um horror que fascinava. - Ferve, luxúria,
ferve! - Com frenesi, o Selvagem vergastou-a outra vez. Avidamente os curiosos
os rodearam, empurrando-se e atropelando-se como porcos em redor do cocho. -
Oh! A carne!, - O Selvagem rangeu os dentes. Dessa vez foi sobre seus próprios
ombros que se abateu o chicote. - Mata! Mata! Atraídos pela fascinação do
horror do sofrimento e, interiormente, impelidos pelo hábito da ação em comum,
pelo desejo de unanimidade e comunhão, que o condicionamento neles implantara
de forma tão indelével, os curiosos puseram-se a imitar o frenesi dos gestos do
Selvagem, batendo uns nos outros, enquanto ele fustigava sua própria carne rebelde,
ou aquela encarnação roliça da torpeza que se contorcia nas urzes a seus pés. -
Mata, mata, mata... - continuava gritando o Selvagem. Depois, subitamente,
alguém começou a cantar: "Orgião-espadão!" Num instante, todos
repetiram o estribilho, e, cantando, puseram-se a dançar. Orgião-espadão,
girando, girando, girando em círculo, batendo uns nos outros, em compasso de
seis-oito. Orgião-espadão... Passava da meia-noite quando o último helicóptero
levantou vôo. Entorpecido pelo soma e esgotado por um prolongado frenesi de
sensualidade, o Selvagem jazia adormecido sobre as urzes. O sol já ia alto no
céu quando ele acordou. Ficou imóvel um momento, os olhos piscando à luz, numa incompreensão
de mocho; depois, repentinamente, lembrou-se de tudo. -Oh! Meu Deus, meu Deus!
- cobriu os olhos com as mãos. Naquela tarde, o enxame de helicópteros que
vinham zumbindo por sobre a crista de Hog's Back era uma nuvem escura de dez quilômetros
de comprimento. A descrição da orgia de comunhão da noite anterior fora
publicada em todos os jornais. - Selvagem! - gritaram os primeiros a chegar,
enquanto desciam dos aparelhos. - Sr. Selvagem! Não tiveram resposta. A porta
do farol estava entreaberta. Empurraram-na e entraram numa penumbra de janelas
fechadas. Por um arco na outra extremidade da peça viam-se os primeiros degraus
da escada que levava aos andares superiores. Exatamente sob o fecho do arco
pendiam dois pés. - Sr. Selvagem! Lentamente, muito lentamente, como duas
agulhas de bússola sem pressa, os pés voltaram-se para a direita: norte,
nordeste, leste, sudeste, sul, sul-sudoeste; depois detiveram-se e, passados
alguns segundos, recomeçaram a girar, com a mesma lentidão, para a esquerda.
Sul-sudoeste, sul, sudeste, leste...
Trecho
extraído do capítulo final da obra Admirável
mundo novo (Globo, 1979), do escritor inglês Aldous Huxley (1894-1963). Veja mais aqui, aqui, aqui e aqui.
A ARTE DE DI CAVALCANTI
AGENDA
&
&
Mandando ver no canto, Geoffrey Chaucer & Pier Paolo Pasolini, Maryse
Condé, Altinho & Nelson Barbalho, Exaltação de Albertina Bertha, Fernando Lúcio, Mostra de Cinema &
Direitos Humano do IFPE-Palmares, Chick Corea, Joyce Moreno, Edson
Cordeiro & Teodora Dimitrova aqui.
RÁDIO TATARITARITATÁ:
Eu sou atlantica dor plantada no lado do sul
de um planeta que vê e que é visto azul
Mas essa primeira impressão, esse planeta blue
não é a visão mais real além de cor, 'blue' é também muito triste
pode ser o lado nu, o lado pra lá de cru, o lado escuro do azul
Eu sou um homem comum, eu sou um homem do sol
eu sou um 'african man' um 'south american man'
A fome continental miséria que o norte traz
a fome que a morte vem, a fome não vem da paz
O ódio que o ódio tem se espalha bem mais veloz
que a água que a chuva traz que o grito da nossa voz
Eu sou um homem qualquer estou querendo saber
se dá pra gente viver, se dá pra sobreviver
Quero saber de coração se nossa humanidade
e este planeta vão poder prosseguir
Quem sabe a terra segue o seu destino
bola de menino pra sempre azul
Quem sabe o homem mata o lobo homem
e olha o olhar do homem que é seu igual
Quem sabe a festa chega à floresta
e o homem aceita a mata e o animal
Quem sabe a riqueza? E toda a beleza estará nas mesas da terra do sul
Eu sou atlantica dor plantada no lado do sul
(Planeta
blue, música de Milton Nascimento & Fernando Brant)
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Tataritaritatá a
música do cantor e compositor Milton Nascimento: Uma travessia 50 anos ao vivo,
Pietá ao vivo, Crooner ao vivo & Milagre dos Peixes ao vivo & muito
mais nos mais de 2 milhões & 700 mil acessos ao blog & nos 35 Anos
de Arte Cidadã. Para conferir é só ligar o som e curtir. Veja
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