ENFRENTANDO A BRONCA – Imagem: arte da escritora, professora e artista Teresinha Soares. - Antes de Alagoinhanduba
sumir do mapa, conheci um homem de bem, daqueles da gente admirar pela altivez,
sinceridade e presteza. Era o Galdinácio uma figura: direito a toda prova,
honesto até dizer basta. Achar um defeito nesse homem era difícil, esbanjava
virtude e hospitalidade. Era viúvo, pai de três filhos – dois deles, Deus os
tenham: um que foi recolhido na calçada por um possante veículo desgovernado
nas ruas de São Paulo, de restar espremido e emburacado nos escombros duma
loja, provocado pelo acidente; o outro, nadava com uma turma na praia do
litoral, veio um jetsky ineivado e acabou com a graça na hora: boiava sem vida
nas ondas -, só agora convivendo com a lindíssima filha, Galdinita. Vivia dali
praqui, sorrindo, acenando, amigo das horas difíceis. Não fosse isso, havia
educado todos na linha da retidão, uns meninos de ouro, diziam, dela ser
cobiçada por toda marmanjada, coisa que o povo gabava mesmo. Ocorre que o filho
do ricaço Zé Brabão, o Brabãozinho, que não era lá flor que se cheirasse, achou
de arriar de amores pras bandas dela, isso depois de haver desgraçado a
reputação para a perdição de umas três dúzias de garotas lindas dali. Galdinácio
desconfiou e falou sério pro rapaz: Filha minha é pra casar. E eu quero casar
com ela. O genitor não engoliu a lorota e fez com que ele arribasse dali que
não era de abrir pro pai dele não. O menino bem que não queria arengar com ele,
mas também não queria deixar por menos e o negócio engrossou. Mesmo Galdinácio educadamente
firme dissuadiu a procurar outro terreiro para suas estripulias, o malcriado
insistia em não arredar o pé dali, precisando dele usar de medidas um tanto enérgicas
para botá-lo pra fora, exigindo respeito. Só que o folgado não levou na conta
devida, precisando de uma reprimenda severa pra mode tomar jeito. Oxe, o
negócio não ficou nisso não. Logo o ricaço Zé Brabão tomou ciência do fato,
mandou logo a capangagem escorraçar o homem impávido que não abriu da vela e o
pipoco de bala comeu no centro. Feridos, pai e filha, findaram hospitalizados,
morre mas não morre. Brabãozinho foi ao pai: Não era para tanto, pai! Comigo é
assim: mexeu, come bala. Eu quero casar com ela. Como é? Ficou doido, foi? Trate
logo de se afastar de gentinha da mundiça. Se vai fodê-la, que faça logo o
serviço e saia fora, esse negócio de casório não sai agora não, tais ouvindo? Eu
vou casar com ela, pai. Se casar com ela, eu deserdo. Bate boca inflamado, o primogênito
saiu fora, do valentão vê-se falando sozinho: Esse menino está precisando de
umas lamboradas boas pra se endireitar. E começou a fazer uma faxinada, foi ter
com o enfermo e encarou olho no olho: Sabe quem sou eu? Sei de quantos morreram
para que montasse sua riqueza, quantos não foram jogados nos fornos da sua
olaria para que nunca fossem obstáculos nos seus objetivos escusos, quantos
pais de famílias não perderam suas vidas em nome da sua exclusiva justiça pras
suas posses, quantos não tremeram feio diante de sua presença com um batalhão
de jagunços para tomar tudo de quem quisesse, só os covardes andam
acompanhados, homem que é homem enfrenta sozinho os seus problemas: você nunca
foi um desse. Eu sou Zé Brabão, o dono de tudo isso aqui. Você pode ser o que
for, mas para mim é como um qualquer. Eu acabo de lhe matar, seu cabra, acabo
com a sua raça. Você pode fazer o que quiser, mas uma coisa eu lhe digo... e Galdinácio
destemidamente disse na lata dele: Sempre soube que riqueza material nunca foi,
é ou será grandeza de espírito. © Luiz Alberto Machado. Direitos
reservados. Veja mais aqui.
DITOS & DESDITOS:
[...] Vocês são homens
ou mulheres? – Mas o que é, Dom Fortunato? – Os empregados da Cerro
surpreenderam a Sra. Tufina, pisotearam os carneiros com seus cavalos e em
seguida soltaram os cachorros. Morreram. Não sei se são homens ou mulheres. Que
esperam? Que a Cerca entre em nossas casas? Esperam que a mulher não possa mais
deitar-se com o macho? Os rostos se apequenavam, se azulavam com uma cor diferente
do dia nascente. Nos olhos se apagava e se acendia, nascia e renascia uma
coragem extinta. Agora já não se pode mais recuar. Recuar é bater no céu com o
cu. Homens ou mulheres, não sei o que são, mas temos que brigar. A bruta névoa
não se dissipava. As rochas exalavam fumarolas brancacentas. Incas, caciques,
vice-reis, corregedores, presidentes da República, prefeitos e subprefeitos
eram os próprios nós de um quipo, de uma corda de terror imemorial. [...] Ignorantes
de que o Código Militar prescreve que “o indivíduo ou indivíduos que ousem
atacar a Força Armada se tornam passíveis de um Conselho de Guerra sumário e
que...”, os comuneiros dançavam. A tempestade não cedia. O caminho se acabava
debaixo da raiva do granizo. O procurador cuspiu um dente e mandou trazer
picaretas e vergalhões. Sob a granizada se atiraram a derrubar os postes. Arrancaram
os quebra-pernas. Trezentos metros de arame sentiram uma vertigem. Gritavam e
dançavam, possessos. Rompiam a Cerca, meteram as últimas ovelhas exaustas.
Marcelino Muñoz – terceiro lugar na escola regional – teve a ideia de perpetrar
um espantalho. Já no roxo do entadecer enfiou o espantalho no montão de quebra-pernas
vencidos. Na luta, os guardas tinham abandonado um abrigo e um gorro. Marcelino
pediu licença para uniformizar o espantalho de republicano. O Procurador Rivera
deu-lha. Que acontece quando o homem é obrigado a retroceder pelo caminho da
besta? Que sucede quando nas fronteiras do seu infortúnio, devolvido ao seu
terror de carnívoro acossado, o homem deve escolher entre voltar a ser animal ou
encontrar a centelha de uma grandeza? Fortunato tinha razão: retroceder ali era
bater nas nuvens com o cu. [...] Assim
estando as coisas, uma manhã, Guillermo, o Cumpridor, se deteve na encruzilhada
do caminho entre Cerro de Pasco e Rancas, Guillermo, o Cumpridor, desceu do jeep.
Instantaneamente se congelou uma coluna de pesados caminhões repletos de guardas
de assalto. Nesse lugar, mais ou menos cinquenta mil dias antes, outro chefe
deteve a sua tropa: o General Bolívar, na véspera da Batalha de Junín, livrada
nesse altiplano. Minutos mais, minutos menos, quase à mesma hora, Bolívar
contemplou os verdosos telhados de Rancas. [...] O velho corria que corria. Oito guerras perdidas com o estrangeiro;
mas, em compensação, quantas guerras ganhas contra os próprios peruanos?
Ganhamos a guerra não declarada contra os índios de Huancané: quatro mil
mortos. Não figuram nos textos. Constam, em compensação, os sessenta mortos do
conflito de 1866 com a Espanha. [...] O
velho divisou os telhados de Rancas. Parou junto a um penhasco. Cinquenta mil
dias antes o General Bolívar tinha-se detido ali: na manhã da sua entrada em
Rancas. Bolívar queria Liberdade, Igualdade, Fraternidade. Que engraçado!
Deram-nos Infantaria, Cavalaria, Artilharia. Fortunato avançou, afogando-se na
ruazinha. No gesso da sua cara viram a desgraça. - Já vêm. A Guarda de Assalto
está chegando! [...] Quem falou foi
Fortunato. - A que se deve a visita, meu alferes? - Há uma ordem de expulsão.
Vocês invadiram a propriedade alheia. Temos ordem de despejá-los. Vão embora!
Vão embora agora mesmo! - Não podemos sair desta terra, meu alferes. Nós somos
daqui. Nós não invadimos nada. Outros nos invadem... - Têm dez minutos para
irem embora. O uniforme voltou à fila parda. - É a Cerro de Pasco que nos
invade, meu alferes. Os gringos nos cercam e nos perseguem como ratos. A terra
não é deles. A terra é de Deus. Eu conheço bem a história da Cerro. Ou será que
trouxeram a terra no ombro? [...] Nestes
lugares nunca houve cercas, meu alferes. Nós nunca soubemos o que era um muro.
Desde os nossos avós, e até antes, nem cadeados conhecemos até que chegaram
esses gringos de merda. Eles é que trouxeram cadeados. E não foi só cadeados.
Eles... [...] Nos tratam como
animais. Nem nos falam. Se nos queixamos, não nos vêem; se protestamos... Eu me
queixei ao prefeito. Eu levei os carneiros, meu alferes. Que diz? O alferes
tirou vagarosamente o seu revólver. - Já não falta nada- disse, e atirou. Uma
debilidade universal destituiu a raiva. Fortunato sentiu que o céu desabava.
Para defender-se das nuvens ergueu os braços. A terra se abriu. Tentou agarrar-se
nas ervas, à margem da escuridão vertiginosa, mas os seus dedos não obedeceram
e rodopiou, sufocado, até o fundo da terra. [...].
Trecho do romance Bom
dia para os defuntos ou Rufam tambores por Rancas (Civilização Brasileira,
1970), do romancista e poeta peruano Manuel Scorza
(1928-1983), o primeiro volume da pentalogia La guerra silenciosa, narrando a luta dos camponeses andinos contra
os latifundiários e uma mineradora estadunidense durante as décadas de 1950 e
1960, no Peru. Veja mais aqui, aqui e aqui.
A ARTE DE TERESINHA SOARES
A arte da escritora, professora e artista Teresinha Soares.
AGENDA
Congresso
de Literatura Fantástica de Pernambuco (8º CLIF-PE), a ocorrer
nos dias 30 e 31 de outubro e 01 de novembro de 2018, com o tema “A metamorfose
na literatura fantástica”, promoção de Belvidera – Núcleo de Estudos
Oitocentistas, grupo de pesquisa do Departamento de Letras da UFPE /CNPq &
muito mais na Agenda aqui.
&
Uma coisa e outra mais, Franz Kafka, Jean Cocteau, Gilles Deleuze & Félix Guattari, Michel Foucault, Tanussi
Cardoso, Margaret Dyer, Tom Zé, Sonia
Maria Vieira, Isao Tomita & Cristina
Azuma aqui.
RÁDIO TATARITARITATÁ:
Hoje curta na Rádio
Tataritaritatá a
música da cantora estadunidense Jane
Monheit: Live
at the Rainbow Room, Taking a change on love, Jazzwoche Burghausen & The
Best Greatest Hits & muito mais nos mais de 2
milhões & 700
mil acessos ao
blog & nos 35 Anos de Arte Cidadã. Para
conferir é só ligar o som e curtir. Veja mais aqui e aqui.