
DITOS & DESDITOS:
[...] Vocês são homens
ou mulheres? – Mas o que é, Dom Fortunato? – Os empregados da Cerro
surpreenderam a Sra. Tufina, pisotearam os carneiros com seus cavalos e em
seguida soltaram os cachorros. Morreram. Não sei se são homens ou mulheres. Que
esperam? Que a Cerca entre em nossas casas? Esperam que a mulher não possa mais
deitar-se com o macho? Os rostos se apequenavam, se azulavam com uma cor diferente
do dia nascente. Nos olhos se apagava e se acendia, nascia e renascia uma
coragem extinta. Agora já não se pode mais recuar. Recuar é bater no céu com o
cu. Homens ou mulheres, não sei o que são, mas temos que brigar. A bruta névoa
não se dissipava. As rochas exalavam fumarolas brancacentas. Incas, caciques,
vice-reis, corregedores, presidentes da República, prefeitos e subprefeitos
eram os próprios nós de um quipo, de uma corda de terror imemorial. [...] Ignorantes
de que o Código Militar prescreve que “o indivíduo ou indivíduos que ousem
atacar a Força Armada se tornam passíveis de um Conselho de Guerra sumário e
que...”, os comuneiros dançavam. A tempestade não cedia. O caminho se acabava
debaixo da raiva do granizo. O procurador cuspiu um dente e mandou trazer
picaretas e vergalhões. Sob a granizada se atiraram a derrubar os postes. Arrancaram
os quebra-pernas. Trezentos metros de arame sentiram uma vertigem. Gritavam e
dançavam, possessos. Rompiam a Cerca, meteram as últimas ovelhas exaustas.
Marcelino Muñoz – terceiro lugar na escola regional – teve a ideia de perpetrar
um espantalho. Já no roxo do entadecer enfiou o espantalho no montão de quebra-pernas
vencidos. Na luta, os guardas tinham abandonado um abrigo e um gorro. Marcelino
pediu licença para uniformizar o espantalho de republicano. O Procurador Rivera
deu-lha. Que acontece quando o homem é obrigado a retroceder pelo caminho da
besta? Que sucede quando nas fronteiras do seu infortúnio, devolvido ao seu
terror de carnívoro acossado, o homem deve escolher entre voltar a ser animal ou
encontrar a centelha de uma grandeza? Fortunato tinha razão: retroceder ali era
bater nas nuvens com o cu. [...] Assim
estando as coisas, uma manhã, Guillermo, o Cumpridor, se deteve na encruzilhada
do caminho entre Cerro de Pasco e Rancas, Guillermo, o Cumpridor, desceu do jeep.
Instantaneamente se congelou uma coluna de pesados caminhões repletos de guardas
de assalto. Nesse lugar, mais ou menos cinquenta mil dias antes, outro chefe
deteve a sua tropa: o General Bolívar, na véspera da Batalha de Junín, livrada
nesse altiplano. Minutos mais, minutos menos, quase à mesma hora, Bolívar
contemplou os verdosos telhados de Rancas. [...] O velho corria que corria. Oito guerras perdidas com o estrangeiro;
mas, em compensação, quantas guerras ganhas contra os próprios peruanos?
Ganhamos a guerra não declarada contra os índios de Huancané: quatro mil
mortos. Não figuram nos textos. Constam, em compensação, os sessenta mortos do
conflito de 1866 com a Espanha. [...] O
velho divisou os telhados de Rancas. Parou junto a um penhasco. Cinquenta mil
dias antes o General Bolívar tinha-se detido ali: na manhã da sua entrada em
Rancas. Bolívar queria Liberdade, Igualdade, Fraternidade. Que engraçado!
Deram-nos Infantaria, Cavalaria, Artilharia. Fortunato avançou, afogando-se na
ruazinha. No gesso da sua cara viram a desgraça. - Já vêm. A Guarda de Assalto
está chegando! [...] Quem falou foi
Fortunato. - A que se deve a visita, meu alferes? - Há uma ordem de expulsão.
Vocês invadiram a propriedade alheia. Temos ordem de despejá-los. Vão embora!
Vão embora agora mesmo! - Não podemos sair desta terra, meu alferes. Nós somos
daqui. Nós não invadimos nada. Outros nos invadem... - Têm dez minutos para
irem embora. O uniforme voltou à fila parda. - É a Cerro de Pasco que nos
invade, meu alferes. Os gringos nos cercam e nos perseguem como ratos. A terra
não é deles. A terra é de Deus. Eu conheço bem a história da Cerro. Ou será que
trouxeram a terra no ombro? [...] Nestes
lugares nunca houve cercas, meu alferes. Nós nunca soubemos o que era um muro.
Desde os nossos avós, e até antes, nem cadeados conhecemos até que chegaram
esses gringos de merda. Eles é que trouxeram cadeados. E não foi só cadeados.
Eles... [...] Nos tratam como
animais. Nem nos falam. Se nos queixamos, não nos vêem; se protestamos... Eu me
queixei ao prefeito. Eu levei os carneiros, meu alferes. Que diz? O alferes
tirou vagarosamente o seu revólver. - Já não falta nada- disse, e atirou. Uma
debilidade universal destituiu a raiva. Fortunato sentiu que o céu desabava.
Para defender-se das nuvens ergueu os braços. A terra se abriu. Tentou agarrar-se
nas ervas, à margem da escuridão vertiginosa, mas os seus dedos não obedeceram
e rodopiou, sufocado, até o fundo da terra. [...].
Trecho do romance Bom
dia para os defuntos ou Rufam tambores por Rancas (Civilização Brasileira,
1970), do romancista e poeta peruano Manuel Scorza
(1928-1983), o primeiro volume da pentalogia La guerra silenciosa, narrando a luta dos camponeses andinos contra
os latifundiários e uma mineradora estadunidense durante as décadas de 1950 e
1960, no Peru. Veja mais aqui, aqui e aqui.
A ARTE DE TERESINHA SOARES
A arte da escritora, professora e artista Teresinha Soares.
AGENDA
Congresso
de Literatura Fantástica de Pernambuco (8º CLIF-PE), a ocorrer
nos dias 30 e 31 de outubro e 01 de novembro de 2018, com o tema “A metamorfose
na literatura fantástica”, promoção de Belvidera – Núcleo de Estudos
Oitocentistas, grupo de pesquisa do Departamento de Letras da UFPE /CNPq &
muito mais na Agenda aqui.
&
Uma coisa e outra mais, Franz Kafka, Jean Cocteau, Gilles Deleuze & Félix Guattari, Michel Foucault, Tanussi
Cardoso, Margaret Dyer, Tom Zé, Sonia
Maria Vieira, Isao Tomita & Cristina
Azuma aqui.
RÁDIO TATARITARITATÁ:
Hoje curta na Rádio
Tataritaritatá a
música da cantora estadunidense Jane
Monheit: Live
at the Rainbow Room, Taking a change on love, Jazzwoche Burghausen & The
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blog & nos 35 Anos de Arte Cidadã. Para
conferir é só ligar o som e curtir. Veja mais aqui e aqui.