BEATRICE AMADA - Imagem: Portrait Béatrice Portinari, da pintora
francesa Elisabeth Sonrel (1874-1953)
- Ah. Beatrice bela menina-flor já mulher feita iniciática, minha remissão da
vida, meu etéreo transcender. Ah formosa amada, tenho muito pra contar do que
sucumbi nas entranhas dos nove círculos do inferno, todos os umbrais
descobertos no vestíbulo da Ars Amatória
de Virgilio, a me levar pra Caronte, no rio Aqueronte, não me permitir a
travessia e a me dar por morto-vivo desperto ao lado das almas que escolheram a
virtude, entre os pagãos e os que chegaram antes, todos no limbo sem esperança
do céu e lá estava eu porque nunca professei fé alguma. Pra minha surpresa Homero
me contou de Troia e Odisseia, e seguia adiante para ver os luxuriosos arderem
na tempestade de vento. Entre eles, Francesca de Rimini me acenou sedutora, quase
não a via direito porque Cérbero vigiava ruidoso o flagelo dos gulosos na chuva
putrefata e os avarentos desfilavam com seus pesos e, no Pântano do Estige, os
iracundos e os insolentes soberbos estavam na lama. Procurei inutilmente por
ela que desaparecera, Virgilio me chama atenção para apanhar a boleia de
Elagias, assim eu poderia chegar às muralhas de fogo de Dite, as punições e as
culpas. Tudo me levava a você, amada Beatrice. Todos os meus caminhos em sua
direção e os demônios impediam meu avanço, até que um enviado celeste desconhecido
me abriu as portas da cidade e eu pude escapar da maldição de Medusa e das três
Fúrias. Logo adiante estavam os hereges nos túmulos de fogo de Dite, os
assassinos nos rios de fogo, as flechas dos centauros atingiam os violentos e cadelas
ferozes e famintas perseguiam e devoravam os esbanjadores. Os violentos e os
usurários estavam deitados sob a chuva de fogo, enquanto outros caminhavam em
meio a tantos horrores. Ao sair da cidade um monstro alado me guiou para o
fundo do precipício e o oitavo círculo para divisar os fossos e as pontes das
torturas e dos pecados com três gigantes acorrentados e o frio dos traidores. Cheguei
ao centro da Terra e não era ali que você estava, Beatrice. Precisava, então, voltar
e subir guiado pelas estrelas – o Cruzeiro do Sul – apontarem para o Paraíso,
onde não existia pecado porque era o sul do Equador, o purgatório, a única ilha,
uma montanha circular onde expiavam os arrependidos do orgulho, da inveja, da
ira, da preguiça, da avareza, da gula e da luxúria. Como sempre fui pródigo e
não me arrependi, temi pelo pior ao me despedir de Virgílio, barrado na entrada.
Seguia pra você, Beatrice, oh minha bela Portinari, até encontrá-la para me
levar ao Lete e matar minha sede de séculos. Era o paraíso com seus sete céus
móveis até o fixo e o segundo Cristalino, sem estrelas e feito de luz para
encontrar a rosa branca poética com seu triângulo. Foi você quem me deu a luz e
desapareceu. Alguém me acompanhava, não era mais você, Beatrice, alguém irreconhecível
que me concedeu o terceiro céu, jamais soube quem era. Aí entoei os meus cem cantos
e fui pelos nove degraus e as três hierarquias superpostas no pedestal do amor,
para poder vê-la radiante aureolada com seus olhos de mar e riso de Sol, a me
dar seus braços aos abraços e beijar-lhe os lábios dos prazeres zis, a
tocar-lhe os seios de todas as bonanças e alisá-los com minhas mãos pedintes a
percorrer sua pele macia de promessas e seduções, porque amei demais da conta e
se errei à toa, foi na sua carne que me perdi e me encontrei para ser-me a
Terra e a sucessão de círculos concêntricos, elípticos e constantes, enquanto
abdicava dos guelfos e dos interesses dos rivais pelo poder, e fui por todas as
esferas depois da batalha de Campaldino e o que me restava de prior banido pela
depressão do Mar Morto, a quem devo a De
Vulgari Eloquentia e a incompletude
do Convivio, a De Monarchia, não mais Florença, só Ravenna de onde
acompanhei a mecânica celeste no meio das lembranças de minhas alegorias,
desde o tempo em que fui aprisionado por Gemma Donati e você ao banqueiro ogro.
Refiz meus trinta e três cantos em terza
rima aos tercetos para cantar a sua alma e proceder na sua emanação até
encontrá-la nua pra minha infinita revelação. E
depois de tudo, amada minha, foi no seu sexo que colhi a Vita Nuova e pude cantá-la
paixão intensa de amante extremo e guardá-la em meus braços na acolhida do seu
corpo de todas as miragens do amor maior, e beijá-la as faces nas torrentes do
seu prazer, e despi-la ao meu afago para possui-la como a única amada do meu coração
nas trilogias da minha divina comédia. © Luiz
Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais abaixo e aqui.
RÁDIO TATARITARITATÁ:
Hoje na Rádio Tataritaritatá especial com a música da pianista suíça Beatrice Berrut: Après une lecture de Dante by Liszt, Chaconne in D-minor
by Bach-Busoni, Totentanz by Liszt & Concert 26 by Mozart & muito mais
nos mais de 2 milhões &
500 mil acessos ao blog & nos 35 Anos de Arte Cidadã. Para conferir é só ligar o som e curtir. Veja
mais aqui.
PENSAMENTO DO DIA – [...] O
mundo contemporâneo em globalização conhece transformações suficientemente
profundas para que se possa qualifica-las de mutação societal. Mais precisamente,
consideramos que o processo de modernização que deu nascimento aos tempos
modernos é sucedido, e eles fazem emergir uma sociedade ainda mais moderna,
quer dizer mais individualizada, mais racional, mais diferenciada, e mais
capitalista. Trecho extraído da obra A
sociedade hipermoderna (L’Aube, 2005), do urbanista François Ascher (1946-2009), que em uma entrevista ao Millénaire 3
(GrandLyon, 2002), assinalou que: [...] Face
a essa incerteza, o planejamento urbano não pode mais ser linear e sequencial,
mecanicista e balístico; ou seja, não pode mais pretender ser previsional,
programático, sistemático, imperativo. Ele deve se construir sobre a base de
uma racionalidade limitada em universo incerto. Para orientar, enquadrar, regular,
gerir, o planejamento e mais genericamente o urbanismo [...] devem implementar instrumentos que admitam
as flutuações, a criatividade, a incerteza, a contradição, a ambiguidade, a
imprecisão. O urbanismo deve de alguma forma passar do “planejamento
estratégico” à “gestão estratégica”. [...].
UMA
LENDA DE KRISHNAMURTI – [...] há
muitos anos, virtuoso anacoreta, grandemente venerado, de nome Timanak
[...] contentava-se com um punhado de
arroz branco e meia medida de ervilhas secas. Sua vida de expiação era pautada
por extrema abstinência e desprendimento. Cobria a nudez do corpo magro apenas
com uma tanga. Tinha, além disso, outra tanga que usava quando se via obrigado
a lavar e purificar a primeira. [...] esse
virtuoso eremita das duas tangas, ouviu, certa vez, contar que vivia em Dakka,
a acidade dos cento e sete templos, o douto Sindagg Nagor, filósofo de renome,
que conhecia a Verdade. – Vou procurar esse homem – refletiu o ermitão. [...]
– Que desejas de mim, meu irmão? –
indagou o sábio Sindagg Nagor, acolhendo bondoso o desnudo visitante. – Em que
poderei servir-te? [...] Esmagado
pela pompa, ofuscado pelo luxo que o rodeava, sentiu-se o eremita confuso e
perturbado. Dominou-se e disse com não pequenino embaraço, tentando um sorriso
irônico: - A fama do vosso incomparável saber chegou até a gruta obscura em que
sempre vivi. Deliberei abandonar o meu refugio e vim até aqui, desejoso de
ouvir os vossos ensinamentos. Sinto-me, porém, constrangido. Como permanecer no
meio de tanta riqueza? [...] – Estás profundamente
equivocado, meu irmão – tornou o sábio, sem a menor ostentação e com a maior
naturalidade. – Os trajes que cobrem o corpo não medem o valor do homem. A mim,
na verdade, não me interessa saber se tens duas, três, vintes ou duzentas
tangas. Que adianta ao homem vestir-se de sedas e ter a alma nua de virtudes e
de predicados? [...] Deambulavam
sossegados entre as árvores, por pequeno caminho de bom piso, quando os
surpreendeu estranho ruído. [...] Todo
o vetusto palácio do eloquente Sindagg era presa das chamas. Colunas de fumo,
levadas pelo vento, subiam negras para o céu, e o fogo, na faina destruidora,
estorcia suas espirais vermelhas, devorando, como um chacal faminto, a pomposa residência.
[...]. Ao presenciar o desespero do
discípulo, o venerável Sindagg acudiu-o solicito e procurou erguê-lo do chão. Segurou-o
pelo braço e proferiu com desusada energia: - Domina-te, meu irmão, domina-te! [...]
Não te preocupes com o desastre. Errado procede
aquele que se aflige e sofre diante do irremediável. Recebe com serenidade os
decretos inapeláveis do Destino. O palácio que ali vês, presa das chamas, é
meu; todas as riquezas – tapetes, alfaias, moveis e joias – que nele se
achavam, eram de minha exclusiva propriedade. E, como vês, estou absolutamente
calmo e indiferente; a perda de bens materiais não chega sequer a perturbar, de
leve, a serenidade de meu espírito! A tais palavras retorquiu, com exasperação
e sinistra rudeza, o guru de Hirkka: - Que me importa a mim o vosso palácio? Não
me interessam tampouco as vossas alfaias ridículas e os vossos inúteis tapetes [...]
– A minha tanga! – deplorou, entre
soluços, o Santo, em novo assomo de ira. – A minha tanga sobressalente! Esqueci-me
de trazê-la, hoje, quando saí a passeio. Perdi a minha tanga no incêndio! E desatou
em pranto, batendo sem cessar, com a cabeça no chão. [...]. Lenda contada do filósofo, escritor e educador indiano Jiddu
Krishnamurti (1895-1986). Veja mais aqui.
A CASA DE PRAIA DAS
SEXTAS-FEIRAS - [...] você e eu fizemos amor durante a noite, não
é? Aí você adormeceu; a mim, porém, o amor tornou-me nervosa, ainda mais porque
você gozou logo, e eu não. De forma que saí do quarto toda nua, como estava, e
fui debruçar-me no parapeito da varanda, curvando-me para o mar que não se via,
pois não havia lua. Enquanto estava olhando, pareceu-me haver não muito longe
de mim, entre um e outro daqueles arbustos em vaso que estão na varanda, como
que a sombra reta e imóvel de alguém. Mas não havia lua, a noite estava muito escura
e não entendi direito se era a sombra de uma pessoa ou a de uma daquelas
arvorezinhas. Fiquei muito amedrontada, pensei que podia ser um ladrão; mas um
ladrão não fica parado daquele jeito, então, quem poderia ser? De repente a
sombra se moveu, levantou o braço, e acabei levando nas costas, justamente onde
tenho agora a mancha, alguma coisa como uma chicoteada, com toda força. Era ele
que tinha vindo durante a noite, exatamente como um ladrão, e aquilo que eu
tomara por uma chicotada era o golpe curto e duro de um açoite. Pois é, um
açoite, já o tinha visto na casa dele, brincava a respeito, dizia que o
comprara para mim e que um dia desses deixaria que eu o experimentasse. Senti uma
dor terrível, fiquei ereta, disse para ele, com voz baixa e intensa: Ficou
louco? O que está fazendo aqui? Endoidou de vez? Como resposta, ele voltou a
levantar o braço para dar-me mais uma chicotada e, então fugi, pulando da
varanda sobre as dunas lá embaixo, com um pouco de medo, mas também, devo
confessar, um pouco de brincadeira. Comecei a fugir nuazinha como estava, no
escuro, de uma duna para outra, e ele atrás, alcançando-me de vez em quando com
o seu açoite, mas ao acaso e nunca com tanta força como a primeira vez, quando
estava parada, apoiando-me na balaustrada e ele tivera tempo de mirar. Eu fugia,
devia ser engraçado, nua daquele jeito e perseguida por aquele louco de açoite
na mão. Então, de repente, caí na gargalhada e percebi que, na verdade, era só
uma brincadeira, uma entre tantas que fazíamos e comecei a correr diretamente
para o mar, gritando: “Pegue-me, se for capaz”. De forma que entrei na água,
que estava uma delícia, morna como durante o dia e, por algum tempo, continuei
fugindo também no mar. Aí ele me agarrou por trás, e caímos juntos dentro d’água
e então fizemos amor e foi a vez que, talvez, tenhamos feito melhor e senti
novamente que ele me amava. [...] É verdade, esbofeteara-me, mas aqueles
eram tapas de amor. Esta noite, ao contrário, eram tapas de ódio. Logo percebi,
não beijei a mão dele, como das outras vezes. Rechacei-o, cheguei até a
arranhá-lo. [...] talvez as chicotadas da noite anterior
tivessem sido chicotadas de ódio. Talvez a história entre eles já estivesse
acabada sem eles perceberem, e, na sua exploração dos territórios proibidos do
amor, tivessem passado apesar de si mesmo para os do ódio. [...]. Conto
extraído da obra A casa de praia das
sextas-feiras e outros contos (Bertrand Brasil, 1993), do escritor e
jornalista italiano Alberto Moravia
(1907-1990). Veja mais aqui.
O LIVRO SOBRE NADA - É
mais fácil fazer da tolice um regalo do que da sensatez. / Tudo que não invento
é falso. / Há muitas maneiras sérias de não dizer nada, mas só a poesia é
verdadeira. / Tem mais presença em mim o que me falta. / Melhor jeito que achei
pra me conhecer foi fazendo o contrário. / Sou muito preparado de conflitos. / Não
pode haver ausência de boca nas palavras: nenhuma fique desamparada do ser que
a revelou. / O meu amanhecer vai ser de noite. / Melhor que nomear é aludir.
Verso não precisa dar noção. / O que sustenta a encantação de um verso (além do
ritmo) é o ilogismo. / Meu avesso é mais visível do que um poste. /Sábio é o
que adivinha. / Para ter mais certezas tenho que me saber de imperfeições. / A
inércia é meu ato principal. / Não saio de dentro de mim nem pra pescar. / Sabedoria
pode ser que seja estar uma árvore. / Estilo é um modelo anormal de expressão:
é estigma. / Peixe não tem honras nem horizontes. / Sempre que desejo contar
alguma coisa, não faço nada; mas quando não desejo contar nada, faço poesia. / Eu
queria ser lido pelas pedras. / As palavras me escondem sem cuidado. / Aonde eu
não estou as palavras me acham. / Há histórias tão verdadeiras que às vezes
parece que são inventadas. / Uma palavra abriu o roupão pra mim. Ela deseja que
eu a seja. / A terapia literária consiste em desarrumar a linguagem a ponto que
ela expresse nossos mais fundos desejos. / Quero a palavra que sirva na boca
dos passarinhos. / Esta tarefa de cessar é que puxa minhas frases para antes de mim. / Ateu é
uma pessoa capaz de provar cientificamente que não é nada. Só se compara aos
santos. Os santos querem ser os vermes de Deus. / Melhor para chegar a nada é
descobrir a verdade. / O artista é erro da natureza. Beethoven foi um erro
perfeito. / Por pudor sou impuro. / O branco me corrompe. / Não gosto de
palavra acostumada. / A minha diferença é sempre menos. / Palavra poética tem
que chegar ao grau de brinquedo para ser séria. / Não preciso do fim para
chegar. / Do lugar onde estou já fui embora. Poema do poeta Manoel de Barros
(1916-2014). Veja mais aqui e aqui.
DOROTHEA TANNING
A arte da pintora, escultora e escritora estadunidense Dorothea Tanning (1910-2012).
AGENDA
&
&
A vida entre livros & leituras, Os ambulantes de Deus de Hermilo Borba Filho, a poesia
de Fenelon Barreto, A urbanização brasileira de Milton Santos, A mulher de Gilberto Freyre, O amor
hoje de Jurandir Freire Costa & A biblioteca de Roger Chartier aqui.