O AMANHÃ DE ONTEM – Imagem: da pintora, designer, ilustradora e
autora surrealista argentina Leonor Fini (1907-1996). - Uma mulher
amamenta, alguns vão, outros voltam. A cena aurática: dela o olhar perplexo no
vazio como se um dedo apontasse oblíquo o fosso da existência. A alegoria da família
desfeita, marido perdido, só o chão e a roupa do couro com seus lençóis de marquises
suspensas de lua estrelada, fronha de cimento, travesseiro de concreto. Ela olha
inquieta pros lados e vacila um tanto assustada como quem perde o canavial da
infância, coxas de fora, seios fartos na fome. Quase vejo sua alma e se recompõe
alisando o cabelo em desalinho, enquanto a criança inquieta ao colo desarruma
suas vestes e mais seduz sem conseguir esconder com seu vestido curtinho de
alça, simples e solto na carne alva, a sorrir sem jeito com seus olhos intensos
a olhares atentos, face afogueada, quase tão plena quanto desolada. Quem passa
logo vê, é o que lhe dão na flor da idade, se embaixo de uma ponte ou de um
viaduto com as hortas paternas devastadas, o amparo árido materno, o chão
batido pra pisar o asfalto, o coração condoído. Ninguém sabe sua dor, se
presente ou futura, apenas uma mãe naquela hora e a vida na lágrima inupta, escapada
a deslizar aos lábios salientes e entreabertos. Não há o que fazer nem como
pedir, sem ponto de parada ou partida, a sofrer por quilômetros a língua no
choro, a cabeça nas paisagens de nuvens e pensamentos superpostos que se
confundem ao cenário cruel. Ela lá, no aleitamento, muitos se foram, outros
voltaram. A espera de nada, condução inexistente, a chuva sem guarida, a sala
das horas a céu aberto e espelhado. Não sabe das margens, só uma pra ficar e do
outro lado, tudo acontece. À distância, ela compõe a brumosa paisagem e continua
a dar de mamar. Todos sabem para onde vão, ela parece não ter para onde ir nem
ficar. Ela me vê como se dissesse: se houver amanhã será ontem. Eu sigo e ela,
não sei até quando, na memória. © Luiz
Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais aqui.
RÁDIO TATARITARITATÁ:
Hoje na Rádio
Tataritaritatá especial
com a música do cantor, compositor e multi-instrumentista Beto
Guedes:
Ao vivo, Contos da lua vaga, Dias de Paz e Outros clássicos ao vivo & muito
mais nos mais de 2 milhões & 500 mil acessos ao blog & nos 35 Anos
de Arte Cidadã. Para conferir é só ligar o som e curtir. Veja
mais aqui, aqui, aqui e aqui.
PENSAMENTO DO DIA – [...] Aqui
eu, Cacique Guaicaipuro Cuatemoc, vim encontrar aqueles que participam da
reunião. Aqui eu, descendente dos que povoaram a América há quarenta mil anos,
vim encontrar os que a encontraram há somente quinhentos anos. Aqui pois, nos
encontramos todos. Sabemos o que somos, e é o bastante. Nunca pretendemos outra
coisa. O irmão aduaneiro europeu me pede papel escrito com visto para poder
descobrir aos que me descobriram. O irmão usurário europeu me pede o pagamento
de uma dívida contraída por Judas, a quem nunca autorizei a vender-me. O irmão
rábula europeu me explica que toda dívida se paga com bens ainda que seja
vendendo seres humanos e países inteiros sem pedir-lhes consentimento. Eu os
vou descobrindo. Também posso reclamar pagamentos e também posso
reclamar juros. Consta no Archivo de Índias, papel sobre papel, recibo sobre
recibo e assinatura sobre assinatura, que somente entre os anos 1503 e 1660
chegaram a San Lucas de Barrameda 185 mil quilos de ouro e 16 milhões de quilos
de prata provenientes da América. Saque? Não acredito! Porque seria pensar que
os irmãos cristãos pecaram em seu Sétimo Mandamento. Espoliação? Guarde-me
Tanatzin de que os europeus, como Caim, matam e negam o sangue de seu irmão! Genocídio?
Isso seria dar crédito aos caluniadores, como Bartolomé de las Casas, que
qualificam o encontro como de destruição das índias, ou a radicais como Arturo
Uslar Pietri, que afirma que o avanço do capitalismo e da atual civilização
europeia se deve à inundação de metais preciosos! Não! Esses 185 mil quilos de
ouro e 16 milhões de quilos de prata devem ser considerados como o primeiro de
muitos outros empréstimos amigáveis da América, destinado ao desenvolvimento da
Europa. O contrário seria presumir a existência de crimes de guerra, o que
daria direito não só de exigir a devolução imediata, mas também a indenização
pelas destruições e prejuízos. Não Eu, Guaicaipuro Cuatemoc, prefiro pensar na menos ofensiva destas hipóteses. Tão
fabulosa exportação de capitais não foram mais que o início de um plano ‘Marshalltesuma’,
para garantir a reconstrução da bárbara Europa, arruinada por suas deploráveis
guerras contra os cultos muçulmanos, criadores da álgebra, da poligamia, do
banho cotidiano e outras conquistas da civilização. Por isso, ao celebrar o
Quinto Centenário do Empréstimo, poderemos perguntar-nos: Os irmãos europeus
fizeram uso racional, responsável ou pelo menos produtivo dos fundos tão
generosamente adiantados pelo Fundo Indo Americano Internacional? Lastimamos
dizer que não. Estrategicamente, o dilapidaram nas batalhas de Lepanto, em
armadas invencíveis, em terceiros reichs e outras formas de extermínio mútuo,
sem outro destino que terminar ocupados pelas tropas gringas da OTAN, como no
Panamá, mas sem canal. Financeiramente, têm sido incapazes, depois de uma
moratória de 500 anos, tanto de cancelar o capital e seus fundos, quanto de
tornarem-se independentes das rendas líquidas, das matérias primas e da energia
barata que lhes exporta e provê todo o Terceiro Mundo. Este deplorável quadro
corrobora a afirmação de Milton Friedman segundo a qual uma economia subsidiada
jamais pode funcionar e nos obriga a reclamar-lhes, para seu próprio bem, o
pagamento do capital e os juros que, tão generosamente temos demorado todos
estes séculos em cobrar. Ao dizer isto, esclarecemos que não nos rebaixaremos a
cobrar de nossos irmãos europeus as vis e sanguinárias taxas de 20 e até 30 por
cento de juros, que os irmãos europeus cobram dos povos do Terceiro Mundo. Nos
limitaremos a exigir a devolução dos metais preciosos adiantados, mais o módico
juros fixo de 10 por cento, acumulado somente durante os últimos 300 anos, com
200 anos de graça. Sobre esta base, e aplicando a fórmula europeia de juros
compostos, informamos aos descobridores que nos devem, como primeiro pagamento
de sua dívida, uma massa de 185 mil quilos de ouro e 16 milhões de quilos de
prata, ambos valores elevados à potência de 300. Isto é, um número para cuja
expressão total, seriam necessários mais de 300 algarismos, e que supera
amplamente o peso total do planeta Terra. Muito pesados são esses blocos de
ouro e prata. Quanto pesariam, calculados em sangue? Alegar que a Europa, em
meio milênio, não pode gerar riquezas suficientes para cancelar esse módico
juro, seria tanto como admitir seu absoluto fracasso financeiro e/ou a
demencial irracionalidade das bases do capitalismo. Tais questões metafísicas,
desde logo, não inquietam os Indo Americanos. Mas exigimos sim a assinatura de
uma Carta de Intenção que discipline os povos devedores do Velho Continente, e
que os obrigue a cumprir seus compromissos mediante uma privatização ou
reconversão da Europa, que permita que a nos entregue inteira, como primeiro
pagamento da dívida histórica. Discurso do embaixador mexicano de
descendência indígena Guaicaípuro
Cuatemoc, na conferência dos chefes de Estado da União Européia, Mercosul e
Caribe, em maio de 2002 em Madri, Espanha.
HERANÇA HISTÓRICA – [...] O
Crescimento urbano e as modificações no tipo de atividades dominantes que o
acompanharam traduzindo-se na paisagem por destruições, justaposições ou novas
utilizações no habitat e no patrimônio mobiliário anteriores [...] Realizados de forma incompleta, as
destruições deixaram subsistir testemunhos da cidade primitiva [...] Na maioria dos casos porém, foi instituída
uma separação em “bairros históricos”; a separação foi tanto mais forte quanto
mais interviram fatores políticos, étnicos ou econômicos, para impor a
diferenciação [...]. Trecho extraído da obra Manual da geografia urbana (Hucitec, 1981), do geógrafo e professor
Milton Santos (1926-2001). Veja mais aqui.
O ATELIÊ DE GIACOMETTI - Todo
homem terá talvez sentido essa espécie de pesar, senão terror, ao ver como o
mundo e sua história se mostram enredados num inelutável movimento que se
amplia sempre mais e que parece modificar, para fins cada vez mais grosseiros,
apenas suas manifestações visíveis. Esse mundo visível é o que é, e nossa ação
sobre ele não poderá nunca transformá-lo em outro. Sonhamos então, nostálgicos,
com um universo em que o homem, em vez de agir com tanta fúria sobre a
aparência visível, se dedicasse a desfazer-se dessa aparência, não somente
recusando qualquer ação sobre ela, mas desnudando-se o bastante para descobrir
esse lugar secreto, dentro de nós mesmos, a partir do qual seria possível uma
aventura humana de todo diferente. Mais precisamente moral, sem dúvida. Mas,
afinal, é talvez a essa condição humana, a esse agenciamento inelutável, que
devemos a nostalgia de uma civilização que procuraria se aventurar fora do que
é mensurável. [...]. Trecho extraído da obra O ateliê de Giacometti (Cosaic & Naify, 2000), do controverso
escritor e dramaturgo francês Jean Genet (1910-1986), Veja mais aqui.
TRÊS POEMAS – SOMOS TODOS POETAS - Assisto em mim a
um desdobrar de planos. / as mãos vêem, os olhos ouvem, o cérebro se move, / A
luz desce das origens através dos tempos / E caminha desde já / Na frente dos
meus sucessores. / Companheiro, / Eu sou tu, sou membro do teu corpo e adubo da
tua alma. / Sou todos e sou um, / Sou responsável pela lepra do leproso e pela
órbita vazia do cego, / Pelos gritos isolados que não entraram no coro. / Sou
responsável pelas auroras que não se levantam / E pela angústia que cresce dia
a dia. A MÃE DO PRIMEIRO FILHO - Carmem
fica matutando / no seu corpo já passado. / — Até à volta, meu seio / De mil
novecentos e doze. / Adeus, minha perna linda / De mil novecentos e quinze. / Quando
eu estava no colégio / Meu corpo era bem diferente. / Quando acabei o namoro / Meu
corpo era bem diferente. / Quando um dia me casei / Meu corpo era bem
diferente. / Nunca mais eu hei de ver / Meus quadris do ano passado... / A
tarde já madurou / E Carmem fica pensando. GILDA - Não ponha o nome de Gilda / na sua filha, coitada, / Se
tem filha pra nascer / Ou filha pra batisar. / Minha mãe se chama Gilda, / Não
se casou com meu pai. / Sempre lhe sobra desgraça, / Não tem tempo de escolher.
/ Também eu me chamo Gilda, / E, pra dizer a verdade / Sou pouco mais infeliz.
/ Sou menos do que mulher, / Sou uma mulher qualquer. / Ando à-toa pelo mundo.
/ Sem força pra me matar. / Minha filha é também Gilda, / Pro costume não
perder / É casada com o espelho / E amigada com o José. / Qualquer dia Gilda
foge / Ou se mata em Paquetá / Com José ou sem José. / Já comprei lenço de
renda / Pra chorar com mais apuro / E aos jornais telefonei. / Se Gilda enfim
não morrer, / Se Gilda tiver uma filha / Não põe o nome de Gilda, / Na menina,
que não deixo. / Quem ganha o nome de Gilda / Vira Gilda sem querer. / Não
ponha o nome de Gilda / No corpo de uma mulher. Poemas do poeta e prosador
do Surrealismo brasileiro, Murilo Mendes (1901-1975). Veja mais aqui e
aqui.
A ARTE DE LEONOR FINI
A arte da
pintora, designer, ilustradora e autora surrealista argentina Leonor Fini
(1907-1996). Veja mais aqui.
AGENDA
Festival Internacional de Compositores – dias 15 a 20 de Outubro, Solar da
Marquesa Av. Joaquim
Nabuco, 5, Largo do Varadouro, Olinda & muito mais na Agenda
aqui.
&
Marquinhos
Cabral: desde menino solto na buraqueira, o pensamento de Jiddu
Krishnamurti & Celso Furtado, o mito de Joseph Campbell, As
amizades de Barbosa Lima Sobrinho, a literatura de Millôr Fernandes, Rio Una &
Jorge
de Altinho aqui.