quinta-feira, fevereiro 28, 2019

DALTON TREVISAN, GEORG SIMMEL, YÊDA BEZERRA DE MELLO, TAVITO & O MONSTRO DO PONTILHÃO DO MATADOURO


O MONSTRO DO PONTILHÃO DO MATADOURO - O que é aquilo? De dia o burburinho do sobe-desce: quem vai pro trabalho, pra fila da previdência, pra vida ou pra morte, pro raio que o parta. Tudo tranquilo, apesar do nome agourento daquelas paragens. Quem vai não está nem aí, como quem vem muito menos. O dia é só tudo ali cheio de pernas pra cima e pra baixo. Bastam os primeiros raios do crepúsculo, a cisma e presságios no arrebol: as sombras da noite libertam os males das funduras do invisível. É a hora que se vê até o não visto, inexistente, o malassombrado. Escureceu e o pontilhão ganhava ar de mistério: tem coisa no matadouro. E é? É. Ninguém sabe, mas que tem, tem. Só uma coisa era dada como certa: as almas dos mortos se libertaram pra se vingar dos viventes. Vixe! Pronto, começava a agonia. E logo um apontava, outro curioso, junta gente: Que coisa é aquela ali no pontilhão, hem? Parece um lobisomem. Nada, uma alma penada. É o filho da Besta Fubana. Tais doido é? Aquilo é o maquinista da Maria Fumaça fantasma. Oxe, é um monstro do inferno! Ou será um alienígena maligno? Não tinha quem passasse de jeito nenhum. Quem subia parava do lado de cá, freio de mão puxado: Vou nada, vai que me ataca. Torava aço, quem não. Do lado de lá, do mesmo jeito, tudo amedrontado, enfincado de pé no chão: Vai que endoida, aí mora o risco. Ninguém ia, ninguém vinha. Que marmota é essa? Quem sabe! Deu merda. O primeiro que chegou perto, olhou no olho, sentiu o calafrio, arrepiou-se, travou a tripa gaiteira, criou coragem e saiu correndo que nem louco: Vôte! O bicho nem se mexeu e o cabra fugiu de medo! Não demorou muito, o segundo a mesma coisa: subisse, chegava perto, conferia e via o que era para sair corrido de pânico. O que é que é, hem? Maldição do matadouro. Hem? E assim o terceiro, outros, muitos. E ninguém vai tomar uma providência não? É coisa do além, mexa não. Agora deu. Aí chegou a polícia, sentido, armas em punho, de longe mesmo começou a mirar, aos pipocos, dum lado pro outro, o alvo se movia até desaparecer noite adentro. Pronto, agora sim. Aí o povo empancado do lado de cá e do lado de lá seguia em paz para casa, guardando a lembrança da má situação. Tem coisa aprontando no matadouro, saíram todos cabisbaixos, pensativos. No outro dia, não deu outra: entre bocas e ouvidos, o assunto da manhã e da tarde, até se confrontarem novamente: Olhele lá, de novo! Isso é uma maldição! Das duas uma: ou quer matar cada um de susto ou vai deixar tudo cagado de frouxo! Cadê a polícia pra tirar essa coisa ruim do caminho da gente, ora. Ah, o dia amanhece e ninguém resolve essa bronca! Mais de hora, tudo atrapalhado, chega a polícia, bala pra cima, a correria, o destino desempancado, todos pra casa, e assim mais um dia, outro. Lá estava ele, no mesmo lugar. Ninguém toma providência não é? Já era uma maldição, todo santo dia, escureceu, a fatalidade. Num disse que era coisa dos mortos do matadouro! Lá só mata boi, cavalo, cabra, cabrito! E gente também, viu? Aquilo é um morto revoltado. E feio que doi! É o monstro do matadouro! Apelaram pra tudo: juiz, prefeito, bispo, polícia, apareceu exorcista, pistoleiro, profeta, força tarefa, tudo para dar cabo daquele causador de temores. Mesmo caçado com tochas, lanternas, luminárias, sumia de só se ver ao por-do-sol. O monstro ganhou prestígio e a antipatia popular. As portas se fechavam, ninguém estava seguro nas ruas, o medo tomou conta de todos. Mas o que seria mesmo, hem? O filho da perna-cabeluda, o enteado do chupa-cabra, que droga é nove? A coisa do matadouro, a criatura ruim. Ninguém conseguia dormir de tanto pavor. Fizeram vigília e só quando o dia amanheceu é que viram. Como é que pode? Também, uma desgraça dessa de ocrídia, nem ogro há mais horroroso. É mesmo, de noite mete medo com tanta feiura. Vai ser desengraçado assim lá longe, feioso! Coitado do Dunga, guardado em si, enjeitado por todos, nunca fez nada de mal, só ali, olhando quem vai e quem vem, até ser confundido com qualquer coisa medonha no lusco-fusco. © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais aqui.

DITOS & DESDITOS
[...] Os problemas mais graves da vida moderna derivam da reivindicação que faz o individuo de preservar a autonomia e a individualidade de sua existência em face das esmagadoras forças sociais, da herança histórica da cultura externa e da técnica de vida. [...].
Trecho de A metrópole e a vida mental, extraído de O fenômeno urbano (Zahar, 1967), do sociólogo e professor alemão Georg Simmel (1858-1918), que defende que a sociedade é produto das interações entre os indivíduos, tendo em vista que uma sociedade toma forma a partir do momento em que os atores sociais criam relações de interdependência ou estabelecem contatos e interações sociais de reciprocidade. Veja mais aqui.

DALTON DÁ A RECEITA DE CURITIBANA
O escritor Dalton Trevisan responde ao poeta Vinicius de Morais na peça Receita Curutibana: “o poeta bem me perdoe beleza não é fundamental”. A peça teatral é uma reunião de textos do autor numa observação perspicaz do cotidiano, carregada de provocação e erotismo, com personagens como o professor e a aluna, noiva, o tio, a ninfeta, entre outras. Foi montada pela Cia Máscaras de Teatro, com direção de João Luiz Fiani que adaptou 16 histórias eróticas. Veja mais do autor aqui, aqui e aqui. E mais de teatro aqui e aqui.

A FOTOGRAFIA DE YÊDA BEZERRA DE MELLO
A arte da fotógrafam, artista plástica e professora Yêda Bezerra de Mello. Veja mais aqui.

TAVITO CARVALHO
A edição de hoje é dedicada à memória do amigo cantor, compositor e músico Tavito (Luís Otávio de Melo Carvalho – 1948-2019). Veja mais aqui, aqui e aqui.


quarta-feira, fevereiro 27, 2019

RUDOLF STEINER, ALBERT ECKHOUT, FREVO & GORETTI ROCHA DE OLIVEIRA, QUIPAPÁ VALE DO UNA, PALADINO & O JEGUE DE PAUL


PALADINO & O JEGUE DE PAUL - Zé Pistola dizia que carregava muitas mortes nas costas, mesmo sem nunca ter matado nada nem ninguém. Também, com uma alcunha desta, queria o quê? Paladino era o seu nome, sem sobrenome, só apelido. Nasceu em mil novecentos e não sei quanto, dizem, duma chocadeira, ninguém sabendo ao certo se parido por gente ou bicho. Criou-se numa pocilga e se servia da lavagem dos porcos e só. Cresceu soez pelas ruas à custa de mandados e biscates, até já quase adulto se deparar com um jumento que lhe bateu na afeição. Já galalau franzino, tinha uma cara de prato, bigode ralo embaixo da venta espragatada, pardo do cabelo tuim, pernas longas de varapau, braços compridos de mãos longas num tronco atarracado, desprovido de pescoço e olhar meio desmiolado. Pra ele o jerico tinha lá seus atributos: dava as horas com seu rinchado e toda vez que ouvia o seu renitente roim-roim, sabia que era o momento das refeições ou de compromissos que ele imaginava de seu. Nessa hora escapolia para graça da caridade, quando não para catar algum alimento ou se apropriar dos desatentos algum prato de comida. Descuidasse da gororoba, ele zarpava furtivo enchendo a pança. Nem ligavam. Havia, de certo, o falatório que ele não batia bem da bola, razão pela qual, contraditoriamente ele se considerava um justiceiro caubói, defensor da justiça na defesa de pobres e oprimidos como ele, desde o dia que atrepado por cima do muro, assistiu numa matinê de domingo do Apolo a um desses faroestes de época. Desde então, vivia montado no jegue de Paul que ele chama de Bucéfalo – nome que ele achava, desde que ouviu pela primeira vez, a coisa mais linda do mundo – e o bicho atendia, levando-o escondido pelas matas nos confins de tudo. Armado de uma peixeira de plástico, achava o mais corajoso e forte entre os homens. Ninguém soube como ele adquiriu um trinta e oito canela seca, sem balas, que pendurava no cós do calção, dando pipocos com a boca como se atirasse nas coisas e seres, a esmo. É certo que ele não gostava de puxar brigas nem apartá-las, mas arrotava bravura inata. Vivia de fuga das supostas mortes e perseguição da polícia, montado na costela do burro, evadindo-se para lá e para cá, entre lugarejos, arruados e rodagens: Serro Azull, SantAntonho das Trempes, Japaranduba, Pirangi, Catuama, Xareta, andejo que só, à cata duma lata de sardinha ou de conserva, ou mesmo dum bom passatempo. Seu principal atrativo era ficar de butuca nas intimidades das lavadeiras nas beiras dos rios, riachos e brejos. Não tinha como usar das casas de tolerância, por isso morria na mão assistindo a seminudez das mulheres ensopads e com as roupas coladas no corpo deixando à mostra as partes pudendas cobiçadas. Lá pras tantas, quando tinha chance, saía todo sem jeito para atrair a que lhe caísse nas graças, atrás dos requebros da lascívia dela. Donzelão, não sabia o que fazer na horagá. E caía na risadagem com futucados e beliscões. O parceiro asno que, apesar do nome, não era besta nem nada, seguia-lhe os passos, aproveitando-se para dar uma lambidela na priquita duma quartuda de bunda pra cima esfregando roupa na pedraria, dela tremer-se toda arrepiada. Já era costume do burrico cheirador de xibiu, espichar o focinho na intimidade entre as coxas das mulheres. Até que todo dia uma delas até se ajeitava prele passar os beiços úmidos lá nela, correndo o boato dele andar amasiado, às escondidas, toda vez que descia ao riacho, coisa que dizem já terem visto dela correr nua com ele atrepado nas costas, todo armado na garupa da bunduda. Um espetáculo de se ver e Zé Pistola só na maior torcida prele empurrar tudo na fogosa, urra, aprendendo o métier. Apreciava também uma briga de galo e ficava todo ancho peruando a favor de um ou doutro. Afinal, pra ele, a vida não era lá muita coisa. Sem moedas no bolso nem centavo algum na algibeira, se defendia da sua solidão como podia. Entre ribeirinhos e cachaceiros era o seu convívio e se tinha culpa no cartório, tudo em legítima defesa, asseverava. Não queria fazer feio na vida, mantinha o decoro ao que parece, plantado ao lado dos balcões das vendas, bodegas e armazéns, apreciando brotes, salames, charques gordas, farinha e pinga. Tomava da sua homenageando o santo de devoção e sempre arrotava que é importante ser valente e, por isso, passou por maus bocados, engulhando situações vexatórias. Cumprir pena? Isso não era coisa pra homem decente, valia-se todo estouvado. E se cometeu algum delito na vida, deve ter sido por descuido, na oportunidade de afanar sorrateiramente alguma roupa nos varais da vida – vez em quando aparecia com uma camisa ou calça ou bota diferentes, nada de novo, já surradas de outros suores -, e ter matado de raiva os seus donos. Ou mesmo por ter matado as horas com coisas, diga-se lá desimportantes para alguns, como seguir o labor das formigas, ou bailado dos peixes nas águas, o avoado de vagalumes e borboletas nos ares, coisas dessas, assim. Nunca mais ele deu as caras por aí, nem se ouviu mais o relinchado do jegue de Paul. Com o tempo, se perderam na memória como tudo o mais. © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais aqui.

DITOS & DESDITOS
[...] Uma coisa é saber da história segundo historiadores, e outra é vê-la através dos olhos que a viram. Por mais verdadeira que possa parecer um documento, por mais nítida que seja uma crônica e por mais ressonante que seja uma tradição, nada se assemelha à pintura feita por quem apenas desejou deixar para o sempre a imagem porventura contemplada [...].
Trecho extraído da obra Albert Eckhout: Pintor de Mauricio de Nassau 1637-1644 (Livrarte, 1981), de Clarival do Prado Valladares e Luiz Emygdio Melo Filho.

DANÇAS POPULARES & FREVO
As obas Danças populares como espetáculo público no Recife de 1970 a 1988 (Fundarpe/SEC, 1993) & Frevo – Uma apresentação coreológica (Funcultura, 2017), da historiadora e pesquisadora doutora em Dança pela University of Surrey, Maria Goretti Rocha de Oliveira, trata sobre os espetáculos de danças populares por meio da pesquisa realizada, através de leituras, entrevistas com artistas e participação em aulas, além de reflexões que produzem um panorama das mini partituras dos movimentos do frevo, analisando a qualidade do que é dançado e como se dança. Veja mais aqui.

VALE DO UNA: A LENDA DO NOME QUIPAPÁ
Em certo tempo, o diabo e um dos seus filhos andaram em excursão por essas paragens, e disso resultou ficarem conhecidos muitos lugares onde tocaram por vocábulos e expressões que então usaram. Depois de longa caminhada, o filho vencido pelo cansaço, vinha já carregado pelo diabo, que, também bastante estafado, o trazia carregado às costas. Desejosos, ambos, de encontrar um local onde pudessem descansar, moviam-se a passos tardos. De súbito, depararam com aprazível paragem, precisamente onde agora se encontra a cidade de Quipapá. Exclamou, então, o filho: “Aqui, papá”. Uma segunda versão é dada pela abundância de caça nas matas que então havia no local. Nela encontravam os habitantes, nos seus arredores, farta e pródiga fonte de abastecimento, ou, como diziam todos: “O que papar”. Já buscando o significado do termo oriundo do tupi, decompondo-se em “qui-pã” que significa ponta, estilete, espinho cravado, atolado e introduzido; e quipá, com relação ao cardo rasteiro dos sertões do norte do Brasil, tenaz, torquês, planta pertencente à família das cactáceas, própria dos terrenos áridos e arenosos e das zonas de clima quente e seco. A cactácea espinhosa era chamada pelos gauranis de quimpã e pelos tupis de quipá. Assim, alusiva à questão toponímica quipapauara, trata-se de contração de quipáquipá, ou seja, o plural de quipá. Por outro lado, trata-se de uma palavra de origem africana, corruptela de quipacá, que significa asilo de fugitivos, refugio, guarida ou couto de vagabundos. Há um registro histórico de que os quipapás, aliados aos Xocós e Humuns, invadiram em 1843 o termo de Jardim, roubando e incendiando casas, nos territórios compreendidos pelos estados de Pernambuco e Paraíba.
Extraído da obra Quipapá: fases e aspectos de suas histórias (CEHM, 1986), do médico, escritor e pesquisador de José Vicente Valença Junior (1900-1976). Veja mais aqui e aqui.
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A nossa mais elevada tarefa deve ser a de formar seres humanos livres que sejam capazes de, por si mesmos, encontrar propósito e direção para suas vidas.
A obra o do filósofo e educador austríaco Rudolf Steiner (1861-1925) aqui e aqui.
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terça-feira, fevereiro 26, 2019

TAGORE, LOUISE BOURGEOIS, MICHELANGELO ANTONIONI, VIVIANE MATESCO & BUZUNTÕES DE CATUAMA


OS BUZUNTÕES DE CATUAMA - Houve um tempo de convivência pacífica entre o cemitério e a zona de meretrício. Ali, encangados um no outro, divisado apenas por um muro, no ponto mais alto e central da cidade, tanto se chorava os entes queridos que se foram e Deus os tenha, como badalava o bacanal mais arrepiado. Se o lupanar dali era dos mais afamados mundo afora, prestigiadíssimo até por gente de um olho só das mais remotas regiões do país, era porque o plantel das rameiras era dos mais gabaritados, responsável por descasamentos, mancebias e situações insólitas na comarca. Por outro lado, a necrópole não ficava para trás: ali estavam enterrados somente os graudões afortunados que achavam de bater as botas quase todo dia na freguesia – gentinha mesmo que morresse, era sacudida nos cafundós de não sei onde de tão longe que era. As ruas dos coronéis davam acesso a ambos, três delas tanto por parte da do Coronel A, como do lado do Coronel I: de um lado e de outro, uma era a maior bandeira, pois se não era a que dava com o portão dos colégios do bispo e das freiras, era a principal via de tráfego da cidade, nem pensar; a segunda era um estrupício: tanto a de lá como a de cá não tinha calçamento e só servia de escape às pressas deslizando a bunda no chão, quem é doido, só na fuga; já a terceira, duma ou doutra, as prediletas: mais discretas e estreitas, mal iluminadas, prontas para as escapulidas, apropriadas para quem entrasse ou saísse. Havia quem depois de uns goles a mais errasse a porta do cabaré, zanzando excitado paudurescente entre as sepulturas, ou com as saias na cabeça atrás de molhar o biscoito. Doutra parte, no meio da orgia no bordel aparecia quem reclamasse da mulher que sumira sem a segunda etapa acertada, ou quem denunciasse que alguém se empirulitou passando um xexo na vítima. A coisa ia de mal a pior: Cadê a nega que eu furunfei e num terminou o serviço direito? Outra: O cara escapuliu sem pagar! Virou uma bronca. Por conta disso os organizadores do troço se reuniram e apuraram que o prejuizo comia no centro. Como é que pode? Usuários desapareciam depois de se envultarem sem prestar contas, ora essa. Para desvendar o mistério, convocaram Sebastião Esprita que colocou em prática suas habilidades investigativas e logo constatou: Tem gente do outro mundo fazendo uso do serviço! Num pode! Pode! Casos pipocaram da Mulher de Branco, do Homem do Meio Dia, gente estranha que dava as caras e depois o lugar mais limpo. Será que isso pode ocorrer de mesmo? Coisa mais sem pé nem cabeça! O mudo sabia, mas não tinha como contar. É mesmo? Pois é, tinha gente lavando a jega no maior arrego. Prove! Ficou mais que provado: morto e vivo na maior suruba. Como é que é? Tome tento! Na moral, o movimento reivindicatório levou à interdição do cemitério: Agora o puteiro é que nem cinema, tem que pagar adiantado, seja defunto ou gente! Danou-se! A solução? Na ponta da língua: Vou levar tudo pra Catuama! Xá, comigo. Armou-se de uma flauta doce que pra ele era mágica e, mal começou a soprar, saiu carregando uma ruma de fantasma atrás do apito ensurdecedor. A procissão saiu da cidade e foi bater lá onde os indigentes eram enjeitados: Pronto, vou democratizar o terreiro, antes só de pé-rapado, agora ricaço e amundiçado, tudo junto e misturado. Resolveu em parte porque dali os malassombros fugiam de volta e aproveitavam para atanazar os habitantes da cidade. Teve, então, de fazer o serviço completo e fez com que Catuama passasse a ser o necrotério oficial da localidade e, depois disso, tudo voltou ao normal, por enquanto, os defuntos descansavam em paz e a população vivia de mandar ver na existência como podia, sem interferência alheia. Diga-se de passagem, por enquanto, tudo pode acontecer entre um dia e outro com uma noite no meio, né? © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais abaixo e aqui.

DITOS & DESDITOS
[...] O espírito da transgressão é a do deus animal que morre no sacrifício, desse deus cuja morte é animada pela violência e que não alimentado pelas interdições impostas à humanidade. A ação violenta, o sacrifício, priva a vítima de seu caráter limitado e lhe confere o ilimitado, o infinito que pertence à esfera sagrada, e por isso, concilia vida e morte ainda que comece onde acaba o animal, a animalidade não deixa de ser seu fundamento. A humanidade se desvia desse fundamento com horror, mas, ao mesmo tempo, o mantém. [...].
Trecho extraído de Corpo, imagem e representação (Jorge Zahar, 2009), da historiadora, museóloga e professora Viviane Matesco, tratando sobre a relação entre o tema e a polissemia na busca das raízes históricas da relação entre esses três elementos, ampliando amplia a reflexão sobre a questão do corpo na arte contemporânea e a sublimação do físico na representação do nu e a afirmação de um corpo primário na arte contemporânea.

A ESCULTURA DE LOUISE BOURGEOIS
A escultura da artista plástica e escultora surrealista e primitivista Louise Bourgeois (1911-2010), que expressa um simbolismo abstrato presentes em coleções e espetáculos permanentes em museus e galerias pelo planeta. Veja mais aqui.

EROS DE MICHELANGELO ANTONIONI
O drama erótico Eros (2004), do cineasta italiano Michelangelo Antonioni (1912-2007), conta três episódios com tema sobre o amor e o erotismo: Em Xangai, alfaiate nutre paixão por uma cliente. Em Nova York, homem narra ao analista seus sonhos com mulher sem rosto. Na Toscana, casal de meia-idade tem a vida atravessada por mulher mais jovem. Veja mais aqui, aqui, aqui & aqui.
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Se choras porque não consegues ver o sol, as tuas lágrimas impedir-te-ão de ver as estrelas.
A obra do poeta e músico indiano, ganhador do Prêmio Nobel de Literatura, Rabindranath Tagore (1861-1941) aqui, aqui, aqui, aqui, aqui & aqui.
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Outra do Sebastião Esprita aqui
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segunda-feira, fevereiro 25, 2019

DRUMMOND, MILTON SANTOS, GUITA CHARIFKER, ARMANDO LÔBO & O AÇUDE DE ALAGOINHANDUBA


O AÇUDE DE ALAGOINHANDUBA - Um olho d’água escorria pelo rego que virou arroio e no tempo não mais córrego, açude imenso onde antes terreno baldio e charco que o casario arrodeava. Quem vinha pelas ruas ou passava à beira da linha férrea, via a alegria às vistas do povo no peitoril da janela, as crianças chafurdando no lamaçal, uma canoa em pescaria, os avelós, a bananeira, os calangos deslizando no lodo, passarinho, mosquitos e passos. Zé Gogo chamava atenção de todos os habitantes: Ouçam o xexeu, ele avisa que um peixe gigante e manso com cinco mil olhos e barbatanas de ouro, é quem sustenta o açude, guarda o fundo e seus mistérios, o verdugo das almas. O povo se ria da leseira dele. E o enorme e estranho dali era o Acari Rei com sua coroa na testa. No seu ventre uma tríplice semente: a vida, a morte e a ressurreição. E dos seus olhos faiscantes e ariscos a manhã surgia enquanto contava da origem do universo, descendente que era do dia e da noite. Só pisava a terra quando eclipsado canto das mortes soava sobre as águas, vinha feito gente e nu, do esconderijo a escorrer pela lama até a cana onde se refazia e recriava o santuário, validando a terra dali. Mais se ria e pilheriava de Zé Gogo ao insistir veemente: Quem mergulhar é saudado, mas é devorado ao sair. Ignoravam todos da desmesurada grandeza do Acari Rei. Só desconfiavam quando à meia noite, o açude dormia, uma lasca de pau imóvel agourava que não se podia beber nem mexer na água. A Máe D’Água acalentava o Acari Rei que dormia sonhos intermináveis. Os peixes deitados no fundo, as cobras estiradas sonambulavam perdendo seus venenos, os sapos não coaxavam e o vento nem ousava ventar, nada se mexia: tudo parado no ar. E quando ela vinha carregada de fantasias oníricas, penteando seus longos cabelos, o dia amanhecia e os que morreram afogados definitivamente iam pro céu, todos os dias. Ninguém temia, nem havia motivo para tal. Foi então que Juanana, uma Branca Dias local, se jogou nas águas cristalinas para nunca mais ser vista. Contam que ela viu-se ameaçada por uma investigação policial para tomar-lhe a riqueza. Não se fez de rogada, foi até à beira do açude, invocou do Caboclo D’Água que emergiu nu, ela mergulhou e ele entrou no seu corpo, avisando o futuro. Era o presságio: uma bela tarde, o filho mais velho de abastado comerciante morreu afogado. Dizem que com saudade de Juanana, febre de amor. O açude ficou mal quisto: culpa dele de dizimar filho querido, revoltas no ar. Nunca mais o desafeto. A título de curiosidade, passaram-se luas abomináveis, algumas diabruras sinistras, provocando atrozes sonhos malévolos naquele povinho. Os sabidos aproveitaram-se disso. E o dia amanheceu com uma nuvem negra extraordinária ocultando o dia e a tarde, e os déspotas aterraram para ganhar dinheiro com a especulação imobiliária: pedaços de chão a três por quatro, baratos que só bolo de goma. Zé Gogo endoideceu de vez: Não pode! Não pode! Pintou o sete, nada adiantou. E ninguém dali se deu conta do vento sufocante anunciando que as plantas morriam ao seu redor, nem do suspiro no ar contra aquele que envenenava as águas, matava pássaros e apodrecia frutos: o passado é a fealdade do horror, precisava ser ignorado - na memoria da posteridade subsistia o esquecimento. Como também foram esquecidas as vidas soterradas com o desabamento onde antes as águas do açude animavam as conversas no terreiro de fim de tarde, na boquinha da noite. © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais abaixo e aqui.

DITOS & DESDITOS
O barro entendia que estão abusando da sua docilidade para a feitura de cerâmicas vulgares. A água queixou-se de recolher todas as imundícies da Terra, ela que sempre foi sinônimo de limpeza. O boi nem precisou falar: era a imagem da revolta contra o sacrifício da espécie - de todas as espécies imoladas. "E a mim?", gemeu a árvore, "a mim, que desempenho função vital no sistema da Terra, tacam-me foto ou retalham-me a serra e machado." Os quatro concordaram que não está direito. Reclamaram do homem, e este lhes declarou que não podia fazer nada. Vive onerado de impostos, afligido de doenças, e mal tem tempo de se coçar. "Em vez de me coçar", acrescentou, "assisto a seriados americanos de televisão, enquanto não se inventa outra coisa. E me entedio. Voltem para seus lugares e guardem o que lhes digo. "Vocês pensam que ser homem é fácil?"
Conto extraído da obra Contos plausíveis (Record, 2006),
do poeta, contista e cronista Carlos Drummond de Andrade (1902-1987). Veja mais aqui, aqui e aqui.

A PINTURA DE GUITA CHARIFKER
A arte da pintora, desenhista, gravadora e escultora Guita Charifker (1936 - 2017), que colaborou com a fundação do Atelier da Ribeira em Olinda e criou a Galeria do Teatro Popular do Nordeste. Veja mais aqui.

A MÚSICA DE ARMANDO LOBO
O premiado cantor, compositor, arranjador, instrumentista, poeta e professor Armando Lôbo desenvolve estilos e gêneros musicais com uma diversidade ímpar, utilizando experimentalismo com simbiose com a filosofia, a literatura e a história. Ele já lançou quatro álbuns, entre eles Alegria dos homens (2003), Vulgar & sublime (2008), Técnicas modernas do êxtase (2011) e tem se dedicado à música erudita contemporânea. Para conhecer sua música clique aqui. E veja mais aqui.
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Os lugares obrigam os homens a intercâmbios
A obra do geógrafo e professor Milton Santos (1926-2001) aqui e aqui.
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Outra de Alagoinhanduba aqui
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sexta-feira, fevereiro 22, 2019

JOAQUIM CARDOZO, MICHEL ONFRAY, SCHOPENHAUER, PANMELA CASTRO & MATA DE XARETA


AS ABUSÕES DA MATA DE XARETA - Noite escura, mata ínvia, um silêncio macabro, só ao longe silvos, uivos, gorjeios, roncos de suçuarana, rosnados de porcos, urros de bois e de bichos descomunais e ferozes a voarem da imaginação para amedrontar. Qualquer coisa que bulisse, tremedeira de perder a razão. Só a pisada nas folhas e galhos, os escorregões de ninguém não vê nada na escuridão. Algumas pedras pareciam vivas e se não eram se passavam por metais brilhosos e seixos. Reza forte pode ajudar, fé em Deus que tudo vai dar. Quem vai pra mata tem que levar cachorro, apetrechos, armas e munição da boa, senão, senão. Quem bem souber leva seus talismãs às mãos. Qualquer coisa sem nome pode surgir de repente, convém prevenir e se não souber de cor um folheto de cordel, mais precaução, quem sabe fantasmas furtivos servirão para a corrupção de mentirosos como eu. E Xareta nunca foi diferente, alta noite em pleno meio dia. De só se ouvir de tudo: do bicho-preguiça e morcegos, capivara e tamanduá, jaguatirica e quati, paca e cotia, jandaia e gato-maracajá, saguis e pererecas, jiboia e cobra-coral, lontra e urutau, capivara e jacaré, cágado e jararaca, passarinhos de todo tipo e tamanho a chilrear safadosos; borboletas e xexeus para enganar os bestas; de bacurau e onças, sapos-cururus e raposas, caranguejeiras e mariposas, vagalumes e um monte de coisa que mete medo só de passar sem se vê. Até o que não existe nessa hora aparece para dar sinal de vida. Segura a fraqueza, o frio na barriga. Coragem é coisa pra ter depois de passar no brejo, um tombo aqui e acolá, e de topar com o que for, de levar carreira do Boitatá, o Mabaê-Tata, com seus olhos grandes e morada no fundo dos rios. É que ele depois de escapar do dilúvio escondido num buraco, mas que na verdade era a alma malvada com seu facho cintilante incendiando o mato de um lado pra outro, na perseguição dos notívagos; de Lobisomem que era o sétimo filho e aparecia em noite de lua cheia pelo pacto das forças do mal atacando as pessoas; do Labatut esfaimado com seus pés redondos, mãos compridas, cabelos longos e assanhados, o olho na testa e dentes de elefante, os cães a ladrar com aquele que morava no fim do mundo, saía ligeiro da lua e vinha com seus passos pesados e retinentes rugindo na ventania, uma monstruosidade abocanhando a presa: pior que o Lobisomem, pior que a Burrinha, pior que a Caipora, pior que o Cão-coxo; da Mula-sem-cabeça com choro pungente e fogo pela venta e boca, freios de ferro e a maldição de mulher que dormiu com o padre, e de quinta pra sexta na encruzilhada, chupava os olhos, unhas e dedos de quem por ela passasse; do moleque preto Caipora que era que nem o capeta de preto, peludo, ossudo, empunhando um ferrão e fazendo alarido com sua voz fanhosa e esganiçada por aí no ecou ecou; do gentiozinho Curupira que era o Pai-do-mato, com seus cabelos vermelhos compridos, os pés virados para trás, de cocar e tanga de penas, armado de arco e flechas, montado num porco do mato para açoitar e matar quem encontrasse pela frente; da burrinha de padre que desencantou moça bonita nua, chega dava gosto de ver a sedução; da Cabra-Cabriola, perna cabeluda, saci e chupa-cabra. Tinha até uns Ets brocos que nem sabiam aonde estavam, só pra assombrar quem lá fosse, de não querer ir mais de jeito nenhum. Tudo isso a muito tempo de antes, matas que havia e nem se vê mais. Êta, Xareta! Ao descobrir seus mistérios ela desapareceu tal como as sereias e a esfinge. © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais aqui.

DITOS & DESDITOS
[...] no mesmo palco onde filosofam à sua maneira, por gestos mais que pelo verbo, mais com ação que com a retórica, encontramos também, do lado da moral, aqueles que, longe do acesso fácil às manchetes e da profissão aberta de cínico patenteado, denunciam o mundo tal ele caminha, recusam o real em sua crueldade, sua violência e seu parentesco com a morte. Modestos, discretos e silenciosos, confundidos na massa, instalam o filósofo da lanterna ao lado dos sem-documento, dos sem-teto, dos desprovidos, dos rejeitados, dos desempregados, dos pobres, dos estrangeiros e dos sem-diploma, daqueles de quem nunca se fala e a quem falta toda voz. [...]
Trecho de Em face do consenso, a salvação passa pela revolta (Zahar, 1999), do filósofo francês Michel Onfray, fundador da Universidade Popular de Caen. Veja mais aqui.

A POESIA DE JOAQUIM CARDOZO
SÓ – Sou o mais só/ o mais só deste mundo, / por isso contra mim / os galos cantam / ladram os cães... / facilmente / sem trabalho em mim mesmo me absorvo / indefinidamente.
AINDA TERESA – Professora da vida e do amor / quanta coisa aprendi que tu sabias / quantas vezes me lembrei de ti / em passagens de longe, inda por longe; / doce Teresa das feiras do Bacurau / onde se ceava sarapatel de porco / em longos tempos, em longas eras, / - Teresa, professora de ternuras e carinhos.
HINO AO SOL – Sobre a folhagem mais uma vez / passa o esplendor do sol. Manhã! / Folhagem que nas águas permanece / no esplendor do sol nos flamboyants. / Este Hino que canto exalto e louvo / dá-me a visão do que vai surgir: / é o curso dos ciclos permanentes / no fundo do universo a reluzir.
Poemas extraídos da obra Um livro aceso e nove canções sombrias (Civilização Brasileira/Massao Ohno, 1981) do poeta, dramaturgo, engenheiro civil, desenhista, professor e editor Joaquim Cardozo (1897-1978). Veja mais aqui, aqui & aqui.

A ARTE DE PANMELA CASTRO
A arte da artista e grafiteira Panmela Castro, mais conhecida como Anarkia Boladona, a rainha do grafitti brasileiro. Veja mais aqui.
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A obra do filósofo alemão Arthur Schopenhauer (1788-1860) aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui & aqui.
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quinta-feira, fevereiro 21, 2019

ANAÏS NIN, ANNE CAUQUELIN, JOEL-PETER WITKIN, ACORDES DE ZÉ CELSO & O DESPACHO DAS PEDREIRAS


O DESPACHO DAS PEDREIRAS - Um pandemônio ocorreu naquela manhã pelas bandas das Pedreiras. O zoadeiro se dera porque no cruzamento principal do bairro ribeirinho, um despacho tinha de tudo: carne defumada, galinha preta, farofa, cachaça, velas, santo de barro, fumaça de incenso, brebotes e o escambau. Quem era doido de passar? Vôte! Macumba pesada na encruzilhada, tinham certeza todos dali. É que exatamente nesse entroncamento, já houvera muitos envultamentos e sortilégios, diziam, uma maldição. Entre temerosos e crédulos, o que dá no mesmo, todos toravam aço e se agoniavam da sina: Teve gira nessa pega. E agora? No desespero, só havia uma solução, convocar a maior autoridade nesses assuntos: Sebastião Esprita. Não demorou muito, chegou ele para socorrer. Encarou a troçada: Ah, nada, isso é oferenda aos ancestrais e santos da devoção dos fiéis do catimbó, nada demais. O povo estremeceu e logo muitos reclamaram: Tais brincando, meu? Rapaz, não te mete na bronca alheia, isso dá atraso de vida. E ele com aquela mansidão peculiar: Gente, o medo não existe, a gente que cria. E caía às gaitadas expondo o dente de ouro com aquele ar de quem sabe das coisas e sempre arrumando um jeito de resolver o que fosse pra sair do aperto, douto que era de escapar ileso de qualquer perigo. Ah, isso é um santo de pau oco! Tá enrolando a gente, viagem perdida. A-há! Xá, comigo, isso é coisa de Exu, se vocês querem, resolvo isso em dois tempos, peraí. Pois desfaço tudo e volta tudinho pro espírito ruim que emborcou esse negócio aqui, destá. E danou-se a desfazer o troço já que tinha estreita intimidade com as coisas sobrenaturais, tendo até quem garanta o compadrio dele com o criador. Não era de errar na dose nem no remédio, prescrevia receituário em tacos de papel ou pules de bicho, com uma garrancheira triste e ilegível, dos da botica terem dor de cabeça para adivinhar e traduzir o quê que droga de nove era aquilo que desescreveu pros enfermos solicitantes. Conhecia todas as Escrituras sagradas e profanas, e guardava conhecimento profundo sobre religiões, das leis de Deus e dos homens, coisas do outro mundo e ocultidões irreveláveis, afora ser um poliglota insuperável de idiomas inventados e línguas desaparecidas, ensinando o bêabá com palavras edificantes e pregando com invulgar competência, baixando espíritos, dando passes e curando doente e são de nó pelas costas. Por via de dúvidas, portava um revólver nos quartos escondido pelo paletó bufento que ninguém sabia que cor que era de tão surrado, acaso esgotassem seus recursos mediúnicos, além de um par de algemas nos bolsos e um molho de dinheiro na algibeira: Ninguém é besta de sair à toa, né? Era um curioso benfeitor, posto que se fazia de engenhoso com muitos prodígios e milagres que já obrara praquela gente de boa fé e idiotas sossegados da região. Entre as suas práticas estavam a de estancar sangue efusivo dos escravos da cana, desencantamento da perna cabeluda, a poesia do senador-presidente, a salvação da lavoura nas enchentes de antigamente e de agora, a água milagreira do Cocão do Padre, as duas mil caveiras de Japaranduba, a ressurreição das almas de Catuama, o aterro do açude de Santa Luzia, a cura de Frei Damião, as duzentas mil mortes nas caldeiras da usina, os dois milhões de acidentes da BR 101-Sul, o incêndio das barracas de fogos de artificio, o deslizamento das barreiras de Bigode, a safra da fruteira de Paul, a farra de Cantochão, os afogamentos do Una e Pirangi, a falência de Serro Azul, o êxodo de Santantoin das Trempes, o aluamento de Vênus, o extermínio dos bichos da mata de Xareta, a derrocada de Sapucaia, a febre dos esquálidos, a prenhez das parideiras, o peixe dos pescadores, a salvação dos pecadores, a adimplência dos trambiqueiros, a menstruação das piniqueiras, a saúde dos doentes, o perdão dos capatazes, os tons dos bordões, o êxito dos caçadores, o refúgio dos ladrões e a porratoda do que aparecesse pela frente. Pois nessa hora, não teve dúvidas, ele tomou uma meiota de cachaça duma vez só, fez quatro nas pernas, espritou-se todo arrepiado, pinotou, plantou bananeira, fez que ia e não foi, deu uma doidice, engrolou a língua, sapecou gestos obscenos e benzeduras, deu estrimilique e caiu duro no chão. Dali a pouco ele se levantou, bateu a poeira da roupa e disse: Pronto, podem trabalhar em paz. E foi-se. Mal deu as costas, o povo começou a se agitar com o acometimento de um e outro cair em maledicências, da gritaria arrastar as vítimas de carro de mão pro hospital regional. Oxe! Que é que é isso, gente? Aí ele aumentou a dose: respirou fundo, fechou os olhos e levitou na frente de todo mundo, subindo mais de metro a girar e falando coisas que não dava pra ninguém entender. Não deu outra, logo os acamados se levantaram e vieram se ajoelhar onde ele fazia a sua performance de escolhido dos deuses. Tudo voltou à paz, ainda bem. Houvesse o que fosse, ele intervinha e resolvia em poucos minutos, isso por décadas, o que lhe crescia na reputação. De tanto salvar gente, bichos, coisas e desejos, um dia deu ele de morrer e virar um inesquecível fantasma do bem que passa o dia brincando com as crianças ou evitando algum desavisado de acidentes ou situação difícil. Por isso até hoje o povinho dali recorre dos seus préstimos. © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais aqui.

DITOS & DESDITOS
[...] o fragmento é a forma mais comum pela qual o implícito se manifesta. Daí decorre seu uso frequente em poesia, quando a imposição discursiva, o corpo fixo e estrito da linguagem estão suspensos. Daí também decorre seu uso não menos frequente em pintura: o detalhe incongruente, insignificante em si, surge não se sabe de onde, e até mesmo as interpretações mais aguçadas não conseguem enquadrá-lo inteiramente. O paradoxo do fragmento deriva do fato de ele ser ao mesmo tempo único, fechado em si mesmo como um porco-espinho, e reflexo do conjunto que ele condensa e traz à luz. De certo modo, ligado e desligado; nisso, ele atua no limite entre aparição e desaparição – aparição enquanto corpo bem definido, desaparição enquanto se deixa reabsorver pelo conjunto de que é signo. Ao marcar o interstício imperceptível entre um todo – o mundo – e aquilo que o acompanha sem ruído nem existência – o vazio -, o fragmento deriva do corpo e do incorporal, sempre no limite de voltar a ser sem consistência, ou de apresentar em um único ponto e em um só momento, estoico, a consistência do todo. [...] aquilo que chamo de momento estoico aflora aqui, a nosso alcance, com a condição de haver uma inversão ou uma abolição da perspectiva – aquilo que o ciberespaço, mas também o big nothing, nos ensinou a fazer. Desse modo, assim como o fragmento é a forma literária por meio do qual o implícito se manifesta, e assim como o implícito é a forma familiar do virtual e do exprimível, a paisagem é, para nós, a figura familiar do incorporal, do lugar e do vazio.
Trecho extraído da obra Frequentar os incorporais: contribuição a uma teoria da arte contemporânea (Martins Fontes, 2008), da filósofa, romancista, ensaísta e artista francesa Anne Cauquelin. Veja mais aqui.

ACORDES DE ZÉ CELSO
O musical Acordes (2012), do dramaturgo e ator José Celso Martinez Corrêa, pelo Teatr®o Oficina Uzyna Uzona, é uma versão de “A peça didática de Baden-Baden sobre o Acordo”, de Bertolt Brecht, abordando sobre o altruísmo humano. O espetáculo foi acusado por crime de desrespeito a objeto religioso, com pena prevista de detenção de um mês a um ano ou multa, por conta da cena de decapitação de um boneco representando o papa. A ação proposta em juízo foi julgada extinta pelo juiz José Zoéga Coelho. Veja mais aqui, aqui, aqui & aqui.

A FOTOGRAFIA DE JOEL-PETER WITKIN
A arte do fotógrafo estadunidense Joel-Peter Witkin. Veja mais aqui & aqui.
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A obra da escritora francesa Anaïs Nin (1903-1977) aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui & aqui.
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KARIMA ZIALI, ANA JAKA, AMIN MAALOUF & JOÃO PERNAMBUCO

  Poemagem – Acervo ArtLAM . Veja mais abaixo & aqui . Ao som de Sonho de magia (1930), do compositor João Pernambuco (1883-1947), ...