sexta-feira, fevereiro 08, 2019

HILDA HILST, CLIFFORD GEERTZ, CAMILA DO ROSÁRIO & A BARRAGEM AMEAÇA O POVO NA PRAÇA


A BARRAGEM AMEAÇA O POVO NA PRAÇA - O povo de Serro Azul estava na Praça e era dia de feira, a barragem ameaçando esborrar cheia de vazamentos por todos os lados, coisas de tragédia que o Brasil tem demais de anunciada, só de fechar a porta depois que não tem mais jeito e tudo está feito pela desgraça e o que é que se pode fazer diante de uma situação dessas, porque é problema dos outros e cada um que se defenda como puder, ah, que a coisa está feia e vai piorar na torcida da calamidade, bate boca e tralalá. O povo de Serro Azul estava na Praça e era dia de feira, Sol de verão depois duns dias de chuvada torrencial, alagando tudo de ficar quase intransitável, mas não é nada demais, uma cheia a mais ou a menos, tanto faz, tanto fez, quantas não e já quase acabaram com tudo e ninguém morreu, até agora, todos salvos pela graça de Deus, oxalá. Agora quem alagava a Praça era o povo de Serro Azul, cartazes e indignação, o medo da inundação e de morrer escorregando o aguaceiro para se enterrar no mar. O povo de Serro Azul estava na Praça e era dia de feira (Ninguém ria com Toínho DuRego porque não eram as umbigadas de Genival Lacerda nem as trelas e loas do Forró Povão, era sério, na vera, olho no olho) e nas lojas e supermercados e farmácias e ambulantes, o formigueiro de gente nem aí, era só o povo de Serro Azul com medo da morte e ninguém tomava pé da situação, coisa deles lá, não daqui, porque pros daqui importava comprar o queima de preços do comércio, a urgência dos negócios, o expediente bancário, os compromissos inadiáveis e emergenciais do dinheiro no bolso, o suor pingando do trampo e a vida é difícil para viver e tem que correr atrás porque a barragem só ameaça Serro Azul e quando romper e a inundação chegar invadindo tudo, aí se resolve na horagá porque é cada um por si, ninguém é de ninguém e salve-se quem puder. O povo de Serro Azul estava na praça, desamparado e deprimido, quem quer saber disso, ora, era só gente daquele povoado à beira do abismo na praça central e que só é daqui porque é distrito de um fogo morto que só se quer saber da bica ou do nome da estrada quando se vai pra Catuama dar adeus a quem foi dos daqui apagado pela morte, sepultado pelo esquecimento depois do chororô e das lembranças no dia de finados, oh, xô pra lá. O povo de Serro Azul estava na praça e voltou para casa do mesmo jeito que chegou: como se os daqui estivessem dormindo noite alta, rompesse a barragem e a água afogasse todos os dorminhocos para que sequer vissem o povo de Serro Azul temendo o pior, uma cidade alvoroçada de fantasmas que zanzavam como se nada tivesse acontecido, quiçá. O povo de Serro Azul estava na praça e voltou para casa do mesmo jeito que chegou: com a dor de estarem todos ali, esquecidos sem nenhuma solidariedade, voltaram à beira da barragem que ameaça romper, Deus dará. © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais aqui.

DITOS & DESDITOS
[...] A análise da cultura se reduz aqui, portanto, não a um ataque heróico e "sagrado" às "configurações básicas da cultura", a uma "ordem das ordens" exageradamente dolorosa, a partir da qual se pode ver configurações mais limitadas como meras deduções, mas a uma pesquisa dos símbolos significantes, feixes de símbolos significantes e feixes de feixes de símbolos significantes — os veículos materiais da percepção, da emoção e da compreensão — e a afirmação das regularidades subjacentes da experiência humana implícitas em sua formação. Uma teoria da cultura plausível só pode ser alcançada, se um dia o for, construindo a partir dos modos de pensamento diretamente observáveis, primeiro para determinar as famílias desses modos de pensamento, prosseguindo depois para sistemas "polvóides" desses modos de pensamento, mas variáveis, menos estreitamente coerentes, porém ordenados, não obstante, confluências de integrações parciais, de incongruências parciais e de independências parciais.A cultura também se movimenta como um polvo — não ao mesmo tempo, como uma sinergia de partes perfeitamente coordenadas, como uma compulsão maciça de todo, mas através de movimentos desarticulados desta parte, depois daquela, e depois ainda da outra, que de alguma forma se acumulam para uma mudança direcional. Deixando de lado os cefalópodes — onde surgirão os primeiros impulsos para uma progressão numa determinada cultura, de que forma e em que grau eles se espalharão através do sistema, tudo isso ainda é altamente imprevisível, se não totalmente, no atual estágio do nosso entendimento. Entretanto, não parece ser uma suposição irracional dizer que, quando tais impulsos surgirem em alguma parte do sistema intimamente interligada e socialmente consequente, sua força impulsionadora será certamente bastante elevada. [...] Da mesma forma que nos exercícios familiares de leitura atenta, pode-se começar em qualquer lugar, num repertório de formas de uma cultura, e terminar em qualquer outro lugar. Pode-se permanecer, como eu, numa única forma, mais ou menos limitada, e circular em torno dela de maneira estável. Pode-se movimentar por entre as formas em busca de unidades maiores ou contrastes informativos. Pode-se até comparar formas de diferentes culturas a fim de definir-lhes o caráter para um auxílio mútuo. Entretanto, qualquer que seja o nível em que se atua, e por mais intrincado que seja, o princípio orientador é o mesmo: as sociedades, como as vidas, contêm suas próprias interpretações. É preciso apenas descobrir o acesso a elas.
Trechos extraídos da obra A interpretação das culturas (LTC, 2008), do antropólogo e professor estadunidense Clifford Geertz. Veja mais aqui.

CANTARES DE HILDA HILST
I - Que este amor não me cegue nem me siga. / E de mim mesma nunca se aperceba. / Que me exclua do estar sendo perseguida / E do tormento / De só por ele me saber estar sendo. / Que o olhar não se perca nas tulipas / Pois formas tão perfeitas de beleza / Vêm do fulgor das trevas. / E o meu Senhor habita o rutilante escuro / De um suposto de heras em alto muro. / Que este amor só me faça descontente / E farta de fadigas. E de fragilidades tantas / Eu me faça pequena. E diminuta e tenra / Como só soem ser aranhas e formigas. / Que este amor só me veja de partida.
II - E só me veja / No não merecimento das conquistas. / De pé. Nas plataformas, nas escadas / Ou através de umas janelas baças: / Uma mulher no trem: perfil desabitado de carícias. / E só me veja no não merecimento e interdita: / Papéis, valises, tomos, sobretudos / Eu-alguém travestida de luto. (E um olhar / de púrpura e desgosto, vendo através de mim / navios e dorsos). / Dorsos de luz de águas mais profundas. Peixes. / Mas sobre mim, intensas, ilhargas juvenis / Machucadas de gozo. / E que jamais perceba o rocio da chama: / Este molhado fulgor sobre o meu rosto.
Poemas dos Cantares do sem nome e de partidas, extraído da obra Cantares (Globo, 2004), da poeta, dramaturga e ficcionista Hilda Hilst (1930-2004). Veja mais aqui, aqui, aqui e aqui.

A ARTE DE CAMILA DO ROSÁRIO
A arte da artista e ilustradora Camila do Rosário que explora temáticas regionais, folclóricas e fantásticas como forma de representação de questões e reflexões do feminino e do corpo como discurso poético. Veja mais aqui.
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