domingo, setembro 26, 2021

JODOROWSKY, BENEDICTE HOUART, BECKETT & A VIDA DOIDA!

 

 

TRÍPTICO DQP – Um escrito escrito para mim e mais ninguém... - Ao som do Recital Almeida Prado (2018), do Duo formado por Helenice Audi e Constança Almeida Prado Moreno. – Encontros de agora com o sorriso entre sílabas e vírgulas e espanto, sabe-se lá, que tempo é este, não sei, aliás, sou o próprio verbo que me constitui e me desconstrói, para me perder ou me reencontrar solto, como se estivesse envolvido na trama de The Dance of Reality (2013) e findasse na Endless Poetry (2016), do cineasta poeta chileno Alejandro Jodorowsky, que insiste ao pé do meu ouvido: Nós não somos. Nós estamos sendo. Pare de querer ser rocha. Aceite ser rio. Para se definir: conceda a si mesmo todas as possibilidades de ser, mude caminhos quantas vezes achar necessário... Assim faço e me restabeleço diante da plenitude do frívolo, quanta fragilidade, tal é a decadência: não há modéstia capaz de ocultar a ignorância, a vulgaridade e a grosseria – tudo vai muito mal, convalescença que não tem sequer previsão de alta, quanto mais verossimilhanças, delírios, peripécias repugnantes. Há tantos que matam a memória, destroem livros e fotografias apenas dos momentos de agora, dinamitando a lembrança antiga e tantos sentimentos resistentes. Como podem, nenhum segredo doloroso à tona e a recusa de ter nascido na culpa dos outros e de quem os pariu, ajuste de contas na lente do esquecimento sem o mínimo arrependimento, ora bolas. Nem se queira saber, afinal a chave de ouro está nas mãos dos asquerosos desconhecidos que sequer atinam o que se deu dez minutos atrás e fabricam os meus desencontros de ontem. Mesmo assim, refaço-me a todo instante, inconsútil. Não pode ser de outro jeito, não há nenhuma celebração ou triunfo, nem pude ver ou ler, só soube perder nas comarcas do mundo, onde cruzava com quem só sabia ganhar e nunca perder firmando os dentes na garganta alheia. Já tive dias contados, reencontros amanhã, depois da fábula derrotada e do cárcere das intrigas, mananciais de desgraças. Sou-me o que me resta, o que sobrou ora de um tosco irritadiço, às vezes, ou doutra, uma brisa amena erradia. E se aquela rua, se for mesmo rua, sou eu que vou sem querer e sem mais ter o que dizer e resiste ao inespecífico e o que é a cidade senão rugidos de desejos que canto ou digo e me perco de um desencontro até reencontrar o que sou e refaço-me a todo instante reiteradamente. Só assim.

 


Verba volant, scripta manent... - Imagem: A bela adormecida do artista Daaniel Araujo. – De tanto me refazer perco a conta e é plena noite, o que já é um bom começo, motivo algum para pregar os olhos: o mundo parece mudo a esta hora. Só o testemunho do que poderia ser denominado de as Feridas emocionais (1988), do dramaturgo britânico Nicholas Writght, naquela casa desconhecida que presencio estrangeiro todos os momentos conturbados e tão delicados: uma mãe perdeu o filho e recebe a visita da filha, dita predileta, na eclosão dos conflitos entre a competição, o silêncio e os traumas. Não sei como cheguei aqui nesta cena, ao meu lado na plateia, a verdadeira mãe é Melanie Klein que me diz secretamente: Quem come do fruto do conhecimento, é sempre expulso de algum paraíso. Esse estado de solidão interna, eu acredito, resulta do anseio onipresente de um estado interno perfeito inatingível. E senti na pele a sua solidão e me revirei como se quisesse sair do labirinto cotidiano onde de nada emerge o aprazível, só situações aversivas. Tanto é que, na poltrona ao lado, a Nise da Silveira me sorriu: As coisas não são ultrapassadas tão facilmente, são transformadas. Para navegar contra a corrente são necessárias condições raras: espírito de aventura, coragem, perseverança e paixão. Não sou muito do passado. Sou do futuro. Quem olha demais para trás, fica. E não fiquei quieto, ambas me viram um tanto atônito, a ponto de dizer-lhes que foi por isso mesmo que me arrisquei a vida toda como se qualquer risco fosse adivinhar a sorte desvendada – estranha sorte das meras coincidências no móbile dos afetos. Era hora de voltar pra minha vida.

 


Um dia, o abismo da dor... - Imagem: Rumba, do artista cubano radicado no Recife, David Alfonso. - O retorno é sempre difícil, às vezes nem percebo. Sempre foi por pouco, ter escapado não me deixou a mínima ideia do que fiz para merecer isto. Ninguém escapa. Além do mais, ninguém se lembra mesmo do que fez, passa batido. Não é tampouco, coexistir com o precário: abandonado, destituído. Paga-se o pato, mesmo. À própria sorte diante do iminente, inconciliável momento. Esse o meu abismo e nele a poeta belga Benedicte Houart: Já penélope não sou / nem ulisses regressa / mudo de nome noite / a noite ao sabor da saliva / dos meus amantes / de dia troco lençóis / coso bainhas / descanso os olhos / dantes tecia para / enganar a corte que / me servia de prisão / agora chamo-me eu / não tenho estado civil e / na cela que me tem cativa / tornei-me finalmente livre. Ela alumia a vida desastrada, desnudada e linda, a circular ao léu até reencontrar-me receptivo aos seus afetos, enquanto me dizia pensar em construir a própria estátua, escolhendo-me por escultor e eu jamais tive tal habilidade. E sorria diante da minha negativa, não sabia mesmo, e a mim me obrigava a tal. Construí-lhe versos para efígie, encantou-se; mas me queria mãos na massa para tê-la e dos meus versos, um a um remontados e aos ajeitos, ergueu-se imponente e lá estava ela admirada com a minha criação, a mostrar para todo mundo. Sim era ela, fruto do meu suor e paixão. Ela se deliciava para que todos vissem, só declinando de uma exposição gigantesca por conta do embate entre outros dois dos seus antigos amantes. Vi-a contida com certo desapontamento, a recitar trechos de Not I, de Samuel Beckett. Menina solta altiva traquina viva, envolvi-a nos meus braços para ouvi-la com um de seus poemas: no dia de todos os mortos quero um homem / bem vivo na minha cama / pois os mortos são muitos e / dos vivos basta um / se não chegar / dá deus outro / parecido com os demais onde é preciso / cada vivo desalinhar. E ficamos lábios abraços e inquietações, como se brincássemos o jogo dos sete erros com todos os prazos vencidos pela barbárie de todos os tempos humanos e interdições das vidas demolidas, o coração sitiado indefinidamente. Sorrimos juntos de tudo porque este tempo se perdeu e para quê a pressa, ela mais reluzente que nunca, como se me dissesse adeus e saiu porta afora depois de múltiplos gozos mútuos. Não me senti sozinho mesmo com ninguém por perto e perseguido por meus próprios rastros que quisera talvez apagados, o peso da recordação. Tivesse ido ruas soltas céu aberto sem saber o que foi ou o que seria, para quê, tédio demais, melhor o prazer do vivido e reviver. Sim, viver agora e nada mais. Até mais ver.

 

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quinta-feira, setembro 23, 2021

CORDEL REPENTEANDO, LUA, UNGARETTI, BRÁULIO TAVARES & SALLIE NICHOLS

 

 

TRÍPTICO DQP – Popoesialar... - Ao som da vinheta Tataritaritatá. - Poesia Popular? Eita! Ah, era quando ia com mãe ou vó pra feira e lá dava de cara com dois repentistas com seu trabalho feito e descascando cada qual a honra e a feiúra um do outro, morria de rir, a ponto de ser arrastado pra casa, de nem poder vê-los rapar a viola. Coisa boa de ver, visse? Ou quando via aquela figura gigantesca do Ascenso cantando das suas, umas e outras, para lá e para cá, chega dava gosto! Lá em casa era pai achegado no meio das suas estantes. Ele até cometia uns sonetos bissextos, enrolado com as lições do Bilac, sapecando uns solos ao violão e a me falar noutras horas do romanceiro dos cordelistas, do cancioneiro popular. Eu que já era de ficar entretido com os trava-línguas, parlendas, pastoris e quadrinhas, ouvia dele coisas de Leandro Gomes de Barros, do Pavão Mysterioso, de Zé da Luz e doutros causos e graças das Literaturas ditas de Cordel. Era galope, martelo, oitava e mourão; era décima, ligeira, sextilha, parcela e quadrão. Era gabinete, toada, gemedeira e rojão pernambucano, quando uma dupla com bandeiro no coco da embolada, quando não outros com dez de adivinhação. Olhos grandes e todo espalhado. Se aprendia? Só Deus sabe o que eu não sei. Até que um dia, no meio da itinerância, lá fui eu noutras voltas, cheio de nó pelas costas a recitar outras Severinas do João Cabral.

 


Lunário perpétuo... – Ao som de Abusão. - De primeira foi assim: inadvertidamente dei de cara com um livrão, sabia lá o que era o Non plus ultra do lunário e prognostico perpetuo, geral e particular para todos os reinos e províncias. Vôte! Nunca tinha visto, apareceu assim do nada sobre a mesa. Estava lá, misterioso. Cá comigo: Que droga é nove? Não era só um livro. Bastou abri-lo assim do nada, logo dele, isso mesmo, das páginas dele uma coisa assim que meio evaporou e fez volume esfumaçado no ar. Só depois de muito tempo é que pude ver que era Vivagina – explico: era como se fosse aquela cabeluda de Bráulio Tavares e a da porteira de Courbet, entende? Pois é. Não demorou muito e a coisa foi ficando mais perturbadora. Logo ouvi a voz de Sallie Nichols: Todas as noites, a Senhora Lua reúne todas as lembranças jogadas fora e todos os sonhos esquecidos da humanidade, guardando-os em sua taça de prata até o despontar da aurora. A seguir, aos primeiros albores, continua a história, todos os sonhos esquecidos e todas as lembranças desprezadas são devolvidas à Terra como seiva da Lua ou orvalho. Misturado às lacrimae lunae, o orvalho nutre e retempera toda a vida sobre a Terra. Graças ao desvelo compassivo da deusa, nada de valor se perde para o homem. Além de precavido, estava cada vez mais curioso. Foi, então, que uma voz de um vulto que emergia do ventre, agigantando-se. E começou a falar de Plutarco: É a morada dos homens bons de sua morte. Levam aí uma vida que não é nem divina, nem feliz, mas, contudo, isenta de preocupação, até a sua segunda morte. Porque o homem deve morrer duas vezes. Danou-se! Procurava entender quando ouvi um poema de Giuseppe Ungaretti: Que estás fazendo, Terra, no / céu? / Diz-me, que estás fazendo, silenciosa / Terra? Entendia patavina! Pensei comigo: melhor fugir. Não deu, algo me trancava naquilo e ouvi do poeta árabe Ibn al-Mottaz (861-908): Olha a beleza do crescente que, acabando de aparecer, rasga as trevas com seus raios de luz. Como uma foice de prata que, entre as flores brilhando na obscuridade, colhe narcisos. A primeira lembrança que ocorre, quando se deseja descrever algo excessivamente belo e mostrar sua extrema perfeição, é dizer: uma face semelhante à Lua. Quanta doidice duma vez só! Era como se a imagem me dissesse tudo isso lido das páginas daquele volume misterioso. De repente a imagem foi ficando mais nítida, a ponto de identificar duas torres, um lago azul e nada mais que conseguisse distinguir no meio da névoa onírica que imperava no ambiente. E era Tales mencionando o corpo sem luz própria que apenas refletia a luz solar. Era Demócrito dizendo que ali era um mundo de montanhas e vales. Era Aristóteles falando das fases lunares. Eram Arisparco de Alexandria e Hiparco medindo a distância entre a Terra e a Lua. Era Newton descobrindo a relação gravitacional. Era Galileu com seu Siderius Nuncius, confirmando Demócrito. E tudo me assustava, nada entendia, impedido de retroceder. Cada vez mais visíveis as duas torres de ouro sedutoras, havia um caminho escuro, não sei se antes alguém já havia passado por isso, acho que sim. O caminho dava numa encruzilhada e eu precisei domar a besta fera que havia em mim – um lobo uivador, nada encoleirado -, e percebia que de um lado estava o dia claro e, do outro, o umbral das horas feiticeiras da noite. Uma imagem de mulher se insinuou mais nítida: em silêncio ela me contemplava – não alcancei suas fases, mas quando a vi, parecia ser a deusa da Lua na Noite Terrível, a me dar sonhos de mistérios ocultos. Só podia ser. Duma feita, ela era Ixchel, a deusa com seus quatrocentos coelhos astecas, a filha de Tialoc. Doutra, uma desconhecida irreconhecível que me mostrava a festa de Heng-Ugo, enquanto me falava que a noite era uma rocha que escondia a história patética dos ritmos da vida e que eu havia de descobrir a iluminação das profundezas, no Mapa da Jornada. Foi neste exato momento que me apareceram os tártaros de Altay, para me contar que ali se escondia um velho canibal que foi raptado da Terra pelos deuses, para poupar a humanidade: eu estaria na boca do lobo. Onde estou? Nem se deram ao trabalho de me responder. Um deles disse: O vir-a-ser - as águas, a chuva, a fertilidade, a vegetação, a fecundidade, os destinos humanos sob a lei da variação periódica. No meio disso, emergiu a raposa Yurugu dos dogons, que me trouxe a primeira palavra divina num sonho iniciático. Foi quando de uma das torres apareceu Ártemis, envolvida por um colar de arco-íris a me apontar o escaravelho e era como se ela dissesse que ele iria me devorar para regeneração moral. Na verdade, pelo que pude adivinhar, ela queria mesmo era me castigar com sua virgindade, a me fazer Hipólito destemido diante de seus cães devoradores, para depois me supliciar. Pensei no seu intento e me surpreendeu ao se tornar Selênia: mostrou-se ciumenta e dominadora, e que eu tinha que pagar pelo que fiz à rainha Artemisa. Eu? Ela tão pálida e fria quanto inconstante, com todo recato virginal, vingava-se sem que eu sentisse por alguma coisa que não sei nem jamais saberia. E ao perceber meu amedrontamento, tomou bruscamente a minha mão e voamos numa revolução elíptica por vinte e sete dias. E me contou da rotação de Domenico Casini, da órbita kepleriana, da carta de Riccioli, da selenografia de Ibn Al-Haytham e Leonardo da Vinci, até a alunissagem, quando me levou pela face oculta até me mostrar os onze mares dali. E me apontou para a outra torre que resplandecia. Sim, eu vi, estava cada vez mais viva e brilhante. Ao me voltar para ela, desaparecia como se morresse na passagem da vida pra noite e vice-versa. O que me esperava, sequer imaginava. Da outra torre, veio-me Hécate: era a Noite Negra da Alma – a Jornada Noturna do Mar. A deusa poderosa sobre o céu e a terra, pareceu-me mais amigável. Não era, engano meu: uma tocha em cada mão e acompanhada de fantasmas e sortilégios, o inferno vivo. Quando olhei pros lados buscando saída, ela mais se agitou e me sequestrou por vinte e oito dias e, ao final, me deu o Nirvana, para que os brâmanes me levassem pelos vinte e oito estados paradisíacos. Ao retornar, ela me abraçou, beijou-me e nos possuímos longa e demoradamente: ela estava insaciável. No horizonte a claridade dava sinal de que eu não havia morrido, prestes ao próximo dia. Foi quando ela me concedeu a propriedade material, o dom da eloquência, e a vitória no jogo e nas batalhas. Presenteou-me com tudo isso, um beijo demorado e voou. Vi-me sozinho, fechei o livro. Tudo desapareceu. Sabia lá que aquilo estava entre Los libros malditos (Edaf Antilhas, 2005), da historiadora Mar Rey Bueno, que, aproveitou o ensejo, e me mostrou o Malleus Maleficarum, o Necronomicon de Abdul Alhazred por Lovecraft de Cthulhu, o Código de Voynich da Lei de Zipf que ninguém conseguiu ler, e eu lá queria saber, dissimulando feliz pela exposição daquelas publicações. Ofereceu-me todos e mais outros volumes que nem tive tempo de sacar quais eram e se foi com um adeus para sempre.

 


Repenteando... – Ao som do cordel Tataritaritatá - Foi aí que tomei pé da situação, depois das muitas e tantas leituras e revivescências, me danei a afinar a viola sem saber direito se cebolinha, cebolão, quatro pontos ou oitavado, qual? Dei aperto na canotilha, ajustei a toeira, dei um grau na turina, já comparando com a requinta, para chegar na prima e me ajeitar pro melhor dedilhado. E fui logo de Manuel Bandeira: Como qualquer violeiro / bom cantador do sertão, / a todos os quais, humilde, / mando minha saudação. E saí repenteando até com um olho só! Isso no embalo da vida, embolando solto, mandando ver na enrolação. Pudesse vir quem quisesse e de qualquer jeito sapecando mote preu glosar de leixa-prem: Não sei se fico ou se corro. Se corro ou se fico. Não sei se fico aqui ou se corro prali. Assim começava, recomeçava e nada de findar. Tudo só para ganhar a simpatia de Iaravi, com coisas impossíveis de Sol e de Lua, presenteando um repente da mulher. Só queria era ver o sorrido dela, coisa mais linda! Afinal, o que é um peido para quem está cagado, hem? Por isso, vou de repente qualquer jeito para ver como é que fica. E feito xexéu: no ano passado eu morri, mas este ano eu não morro. Solto na buraqueira, Cantador no desnorteio & tatataritaritatá! Aí vou contando desde menino que tomou água de chocalho na beira do rio, do que viu da Mãe da Lua e do Urutau, do Lunário Perpétuo e da sua autoria, do que vi e não vi, do que fiz e não fiz, só de uma coisa eu sei: só a poesia torna a vida suportável. Até mais ver.

 

Neste sábado, dia 25, às 16hs, estarei no Ciclo de Poesia Brasileira do Bacellartes, comandado pela Renata Barcellos, contando ainda com a presença da professora e poeta Marcia Ruth Kanitz, do Severino Honorato da Caravana Tin Tin Alves, da pesquisadora Arusha Kelly Carvalho e da doutora Lia Testa.

 

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domingo, setembro 19, 2021

DOLORS FERNÁNDEZ, MUNTANÉ, GOLDING, KAZANTZAKIS, ALMODÓVAR, BORTOLOTTO & MARCUS ACCIOLY

 

 

TRÍPTICO DQP – Movediçáguas... - Ao som do Concerto nº2 – Metamorphosen, de Krzysztof Penderecki, na interpretação da violinista coreana Ju-Young Baek & Korean Chamber Orchestra at Concert hall, Seoul Art Center (2013). - Era domingo e a noite viera com a procela antecipando a invernada. Ainda era outono e quem ofegava com as águas que transbordaram e invadiram as ruas da beira, lavando os pés com alarme e subindo pelo calcanhar daquela quase sem poder andar, perdera a conta, já na canela pelos joelhos e ela se arrastando até a porta, estava tudo inundado e ela aflita, até o portão emperrado e ninguém por socorro, ganhou a calçada, cuidado com as bueiras dos esgotos submersas, as dilatações, chegava a hora, contrações, tontura e inquietação, encostada à parede, tudo escuro na vertigem, nada mais nem ninguém, e escapava o sentimento da perda do que poderia ser a vida eterna, não, uma mão e a salvo: um riso que jamais esqueci. E era de Carma como se fosse Kazantzakis em cima da hora: Novamente sou criança para que me seja possível enxergar o mundo sempre como de uma primeira vez. Dessa vez não sabia, nascera ali, nada vira até que crescesse e tomasse conta das paragens e de todo mundo, aquelas águas e aquele sorriso salvador por toda minha vida, como se Mika Waltari com trechos do The Egyptian: ... Meu amigo, nascemos em tempos estranhos. Tudo está derretendo - mudando de forma - como a argila na roda de um oleiro. As roupas estão mudando, as palavras, os costumes estão mudando e as pessoas não acreditam mais nos deuses... talvez tenhamos nascido para ver o pôr-do-sol do mundo, pois o mundo já é velho e já se passaram... Quando penso nisso, quero enterrar minha cabeça em minhas mãos e chorar como uma criança. Ter nascido em águas movediças, náufrago emergencial que não sabia das duas faces de Janus, só agora saberia sem passado, muito menos futuro, um presente incerto, como se William Golding repetisse: Meus dias de ontem caminham comigo. Eles acompanham o passo, são rostos cinzentos que olham por cima do meu ombro. Talvez haja uma besta ... talvez sejamos apenas nós. O que havia esquecido perdera na primeira esquina, a vida era só o instante e tudo o mais tão movediço quanto a loucura presente e eu me visse na pele de Marcus Accioly: Falar de mim mesmo é escrever com a outra mão. Esqueci até que andara demais, só o coração acima e o que de mim restara farrapos de emoção coberta de dores.

 


Pegadédalos...- Imagens: arte da escultora e gravadora Rosana Monnerat. - Aquela como agora era a minha primeira solidão nas pegadas deixadas na areia da beira do rio, de mares outros e margens perdidas de longe, até que uma onda passasse a borracha e nenhum sinal mais que por ali passara, assim como as fotos que se apagaram com as lembranças dissipadas pelo arquivo morto que sumira e não sabia onde havia esquecido. Aquelas pegadas e os meus dédalos, prova exclusiva de que passei por ali, morto-vivo ou vice-versa, integrante da paisagem e aos indiferentes, nenhum aceno, cansei o gesto. Minha carne é só algumas lembranças fortuitas que se parecem com a trêmula de Almodóvar: um recém-nascido abandonado na cidade naufragada. Só que minha mãe não fora num ônibus assistida por parteira e motorista, não, não foi; minha estava exausta no meio da enchente, sozinha em casa, a cidade alagada, ruas e ninguém para que eu pudesse sair dali, no meio do rio, escapando não sei como, o sorriso e as águas, sou eu na rua do rio e agora é como se Los Lunes al Sol (2002), de León de Aranoa, o flagelo da usina falida e a cana sobrasse inválida nas mãos miseráveis de canavieiros e fornecedores – a quebra de braço com os mamoeiros -, e a polícia protegesse a massa falida e afugentasse vítimas que, em última instância, recorriam aos magistrados e os braços cruzados não podiam mais fazer nada, era a entressafra instaurada e não fosse mais que as cenas de Açúcar (2017) da Renata Pinheiro e Sérgio Oliveira, e tudo que vivi na desgraça das últimas décadas em que a cidade era apenas um nome, como no diálogo platônico, mas que sequer nada mais representaria além da bancarrota e penúria. E eu acompanhava os passos daquela que se evadia dos reclamos gerais com todas as culpas açucarocratas e o poeta e sociólogo catalão Miquel-Lluís Muntané puxava a conversa com versos de La esperanza del junco (1980): A cada momento aprendo novos modos de você; / fico dentro de você e, ao mesmo tempo, em todos / junto com quem amamos, pouco ou muito, a nevasca que nos endurece. / E invejo-te uma pouco, enfim e no final... E eu ouvia enquanto presenciava os meus se sujeitarem aos informais ambulantes e o Sol do meio dia queimando o juízo e dificultando a visão do equívoco geral e ele, mão ao meu braço, concluiu: ... A cada momento aprendo novos modos de você / e de você passar o ritmo ditado pelos séculos... Ele viu nos meus olhos quando a usina encerrou suas atividades, safra e tudo, nunca mais que um fogo morto se alastrando por toda região: as ferragens, a sucata, as dores da pobreza, a retomada inglória, a inadimplência, a inviabilidade. A loucura no Judiciário e na insolvência: quem tinha para receber temia por represálias, uma mão na frente e outra atrás, era o colapso da cidade e da região dolorida, a carestia e a outra seca, o meu desassossego. E era Damon Knight ditando a sentença: Não perca a paciência, é sua pior culpa, exceto pela ignorância. Nenhum progresso, seja moral ou material, pode ser feito em um mundo que está congelado, como o nosso, em um molde rígido de supressão de liberdades. Nem ouvi direito, compreendia apenas, como do futuro só restava o passado, nenhuma saída.

 


Vozabissais...- Tal como naquele dia inaugural, era o crepúsculo num dia de outono e eu comigo mesmo indagava: a chuva é o choro de quem? Ouvi uma voz em resposta, era a atriz Thaís de Barros na voz da Frances Farmer: Chega um ponto em que um sonho se torna realidade e a realidade se torna um sonho. Ou pesadelo, ou se nunca acordasse e o sonho fosse bem real. Ela sorriu e me levou pro Hotel Lancaster de Bortolotto, como se me escondesse embaixo da sua saia e mostrasse o sigilo do álbum da fotógrafa Monica Borges, enquanto encostava o seu queixo ao meu ombro, alisando-me as faces e deslizando sorrateira para tocar fogo na minha carne arrepiada. Aproveitou o ensejo para me enredar na Casa dos Budas Ditosos, do João Ubaldo, e pude enveredar por seus segredos incendiando sua alma até morder seu coração e ela me recitar nua a poeta espanhola Dolors Fernández: Eu acordei hoje com a mão estendida para a frente na fechadura teimosa de um punho. Eu senti os socos na perfuração dos meus dias eles se tornaram uma miragem na chave de um pesadelo. Eu vi isso meu coração mordido pelos seus lábios bate hoje entre abraçar diástoles. E nos reviramos lábios paredes pernas nuvens sexo chão e com o seu infinito orgasmo me disse como se recomeçasse a viver a partir daquele instante, sussurrando Roland Barthes: A vida é, assim, feita a golpes de pequenas solidões... Era solidão demais e me vali para tê-la Barca de Ísis, a me levar argonauta pro seu Shekinah. Até mais ver.

 

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segunda-feira, setembro 13, 2021

MÁRIO BENEDETTI, BARNES, CANGUILHEM, CECILIA ROTH, FARTEIN VALEN, & YVES PIRES.

 

 

TRÍPTICO DQP – Et in orbis terrarum egoAo som Complete Symphonies (Simax, 2008), do compositor norueguês Olav Fartein Valen (1884-1952), na interpretação da Bergen Philharmonic Orchestra & Aldo Ceccato. - A noite é longa e desfio ideias, olhos acesos, quantas horas obscuras. Não sei o que há, desorientado e mudo, diante das estatísticas e hesitações: há em mim um incorrigível senso de equidade, sinal de lealdade e de justiça, acho. O mundo é um tapete despedaçado: os laços, desnovelados. O calendário é um semáforo apagado e se acende diante do perigo repugnante, alerta demais. Algum sentido nisso tudo, nenhum. Nem procuro mais. Valho-me das páginas d’O amor, etc (Rocco, 2002), do escritor inglês Julian Barnes: Eu disse que o que você encontra não é necessariamente o que você quer. Vamos falar de amor. Ele não é como nós achávamos que seria. Podemos todos concordar com isso? Melhor, pior, mais longo, mais curto, superestimado, subestimado, mas não o mesmo. Também, diferente para pessoas diferentes. Mas isto é algo que você só aprende aos poucos: o que é o amor para você. Quanto você tem dele. Do que você abrirá mão por ele. Como ele vive. Como ele morre... Decerto, a vida faz a sua parte, não ignoro a minha dor: ainda há tempo.

 


O amor, de novo... – Imagem: My body, my blood, arte da professora, pesquisadora e artista multimídia Diana Domingues. – A solidão e o que fazer, reunia tentativas de assemblages na minha caixa de sombras (cassemblas: memória e poéticas) – inspiradas na arte do artista e cineasta estadunidense Joseph Cornell (1903-1972). Para minha surpresa apareceu La Rochefolcauld com uma advertência: As pessoas fracas não podem ser sinceras. Sim: nunca esperei nada de ninguém, sigo só. E prosseguiu: Há pessoas que nunca teriam se apaixonado se não tivessem ouvido falar no amor. O amor é como fogo: para que dure é preciso alimentá-lo. O prazer do amor é amar e sentirmo-nos mais felizes pela paixão que sentimos do que dela inspiramos. Todas as paixões nos levam a cometer erros, mas o amor faz-nos cometer os mais ridículos. Ouvia-o atentamente, anuindo. Deveras, o insondável. Retomei os apetrechos e continuei na tarefa, ouvindo-o a zanzar de um lado a outro: Quem vive sem loucura não é tão sábio como pensa. O verdadeiro amor é como os fantasmas. Todos falam nele, mas ainda ninguém o viu. Quem não encontra a felicidade em si mesmo, é inútil procurá-la em outro lado. Parei o que estava fazendo e dei-lhe mais atenção. Ele abriu um sorriso tímido e voltou a caminhar passando um dos dedos sobre os livros das estantes, conferindo um a um, ora fazendo ar de rejeição, ora dissimulando alguma satisfação, contornou todo ambiente – havia estantes por todas as paredes -, até voltar-se, mando-me prosseguir no que eu estava fazendo. Atendi e, tempos depois, ao procurá-lo no recinto, estava o lugar mais limpo.

 


Doutra feita... – Imagens: arte do escultor francês Yves Pires.Profundamente só, fiquei entretido com a composição da obra. Não sei quanto tempo, mas não demorou muito e o ambiente foi ocupado por ela, linda de sempre, surpreendente: uma fera solta, voluptuoso fascínio. Era como se de repente tudo mudasse de nome e lugar com o Sol reluzindo dos seus olhos, seus lábios gulosos vermelhos e brilhosos com a emanação que provinha dos seios ao decote, como se uma cachoeira retumbante destampasse o ventre exato nos quadris fartos realçando o ventre ardente e acumulado de vitalidade, uma fonte precisa, tremendamente misteriosa, a recitar um verso de Mário Benedetti: Estávamos, estamos, estaremos, / às vezes em pedaços, / distantes, / às vezes, / até as pálpebras dos sonhos... Chegou como se jamais tivesse partido, desvestindo-se, adivinhando meu coração desordenado, sobrecarregado de incertezas e assombrações, enquanto citava o poeta de cor, como se falasse pelos cotovelos: Mas existe verdadeiramente outro rumo? Na verdade, só existe a direção que tomamos. O que poderia ter sido já não conta. Saber esperar é uma virtude. Aceitar que cada coisa tem um tempo certo para acontecer é ter fé. Eu não sei se sou uma pessoa triste com vocação pra ser alegre, ou vice e versa, ou do avesso. O que sei é que, sim, há sempre alguma tristeza nos meus momentos mais felizes, da mesma forma que há sempre um pouco de alegria nos meus piores dias. Girou na ponta dos pés, tomou pé de tudo por ali e desfilou lenta e graciosamente até mim. Envolveu-me em seus braços, sondou com olfato aguçado todos os meus infernos e ronronou ferina exaltada ao meu ouvido. Puxou-me para si e, ao primeiro beijo, o seu corpo estremecido e arrepiado tomou conta de mim. E beijou-me mais, a entrega. Era o milagre: estava em paz com todos os bichos do universo. E nos revolvemos e eu me recusava a dormir, precisava respirar sem medo, viver cada segundo daquela vez.

 


Aí, deu noutra... Era só o que me faltava... – Imagem: Arte de Perron. - Entre as horas, nuvens e lençóis, ela instigou-me com seu jeito de atriz argentina, Cecilia Roth, a me chamar atenção com o folder da peça Olhe pra Trás com Raiva à mão, um texto autobiográfico do dramaturgo britânico John Osborne. Repassava de cor os monólogos raivosos das cenas que havíamos assistido: a angústia da solidão, as divergências, a mediocridade, devastações. Ela levantou-se nua, remexeu a papelada sobre o meu birô e encontrou uma foto que dera por perdida: Quem é? Era a atriz e professora Clenira Bezerra de Melo, que atuou no Teatro de Amadores de Pernambuco, em espetáculos como Um sábado em 30, A Vítima, Zuzu, entre outras. Mencionou que gostaria de ter visto. Depois pegou na mesa um livro do Georges Canguilhem e leu em voz alta: Uma vida sã, uma vida confiante na sua existência, nos seus valores, é uma vida em flexão, uma vida flexível... Viver é organizar o meio a partir de um centro de referência que não pode, ele mesmo, ser referido sem com isso perder sua significação original... Ao ler o trecho, indagou-me sobre o que eu esperava da vida. Ora, o que resta fazer entre omissos, impassíveis, retardatários, oxidados, invasores e desgovernados, uma vez que os inquietos se cansaram e os refratários tão oblíquos quanto desconfiáveis imprevidentes, estão todos sem saber para onde, porque todos, digo todos, são unânimes em gesticular com seus maxilares torturantes na trapaça da comoção, o espanto nas sobrancelhas altas atrás da porta; todos como se fossem leões desdentados, com suas jubas raspadas pela superfície das circunstâncias; como se milhões de famélicos emergissem do nada, ataviados na vigília dos simulacros, desastres, loucuras carimbadas de normose desumanizada, guerras deflagradas, mártires e vilões, veludos e urtigas, aglomerações e esquemas, conluios, extremos, perplexidades. O que fazer se a vida é como se fosse uma chave escondida e a palavra perdida restasse com todos emudecidos porque uma granada incógnita está prestes a explodir, roubaram a espoleta, o sinistro iminente. O que se sabe de mesmo é que quem abre as pernas engorda a carteira de benesses, usura e hipocrisias, ninguém se compraz. Só pigarros, carniças, atraiçoamentos. De lá para cá e vice-versa, tinos embotados vomitando leseiras entre adiamentos e evidências: não há equilíbrio nem simetria, nem poderia; o caos prevalece ameaçador - quem da semente colhe nada. Ninguém sabe, são levados carniceiros uns sobre os outros, o ataque ao pescoço alheio, almas depenadas. É bom lembrar, fora de questão qualquer tratado de paz, impossível.

 


De uma vez por todas... Imagens: arte do escultor francês Yves Pires. – Ela envolveu minha aflição e se deu conta que, de olho aberto, quase não percebia nada, sei o que se passa; fecho-os e me fortaleço, apuro melhor, como quem pudesse superar e não precisasse deter a sucessão das coisas nem evitar o que desse no desabamento ou no triunfo. Não há como respirar nesse mundo cristão – que todas as religiões se afundem e sucumbam na sua intolerância -, nem com a sedução do dinheiro sobre todas as necessidades. Impossível viver ao lado de quem só sabe matar. Por isso, rompo com a mitologia do presente, enfrento e sigo. E ela mais se aninha porque me sabe envolvido no que se dissolveu com o ardil ubíquo das ideologias difusas. Nem ligo, tolero a sedução do mundo e sigo brincando desleixadamente com todas as tentações. Indaga do meu sofrimento e digo-lhe que a vida é isso: superar-se! E superar a tudo, jamais como um professor que exige dos alunos o que jamais foi capaz de praticar, qualquer disfarce e fica tudo para amanhã, quem sabe. Preciso do agora, enquanto as paralelas dicotômicas, jamais convergentes seguem direções opostas. Olhar para trás, jamais, só se eu quisesse buscar de qualquer arrependimento ignorado; jamais voltar, mesmo que adiante só o abismo. Não estou nem nunca estarei satisfeito, apenas grato com o intranquilo. Sigo como quem perdeu o leito, às voltas com todas as inundações espaciais, ao vento além do tempo e à deriva. O que resta fazer, apenas viver você, nada mais. Até mais ver.

 

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domingo, setembro 05, 2021

LAWRENCE FERLINGHETTI, ALEX CAPRILES, ANKE FEUCHTENBERGER, LILLIAN CONSTANTINE & CAROL ITO

 

 

TRÍPTICO DQP – Entre ditos & desditos... - Ao som do Jubileu das Cordas 50 Anos de Violão (2019), do violonista e compositor Henrique Annes. - Os fantasmas brincalhões da minha convivência hibernaram num vasto e quinquenal silêncio. Para quem vive de trela com os visinvisíveis, nenhuma graça emerge na álgida noite que povoa os amanheceres desde então. É tudo tão noturno, da sombria sobrevivência, um ou outro insone abantesma aparece entre tantos trogloditas raivosos vivinhos da silva atrapalhando a conversa, de logo desaparecem neste tempo de Fecamepa do mico Coisonário. Para mim uma primavera perdida se aproxima apesar de hesitante e tão longínqua, de restar apenas uma indagação: qual independência de mesmo é a deste dia 7 de setembro, hem? Equivocações reiteradas, parece. Sim, isso mesmo. Para minha extemporânea satisfação, constato a chegada do poeta Lawrence Ferlinghetti a me dizer que O mundo é um ótimo lugar e, diante da minha anuência para lá de desconfiada, recita um verso: Piedade para a nação - óh, piedade para os homens / que permitem que os próprios direitos sejam corroídos / e suas próprias liberdades levadas embora. / Minha Pátria, lágrimas de ti / doce terra de liberdade!... Com ele, ao mesmo tempo, a sensação de júbilo pela interlocução, enquanto um coveiro à espreita interrompe e é muito difícil manter a compaixão, nada impossível. Salve-se quem puder, sou outro a cada passo.

 


Uma & outra... - Imagem: For the Love of Money (2020), da artista estadunidense Katherine Gianaclis (1924-1999), ao som de Epifanie, per voce e orchestra su testi di Proust, Machado, Joyce, Sanguineti, Simon, Brecht (1961), de Luciano Berio, na interpretação de Cathy Berberian & Orchestra della RAI di Roma, 15 Marzo 1969. - Estou atordoado e não poderia ser diferente: meu país naufraga inevitavelmente pelas intermitentes e mais terríveis tormentas desde que Pindorama se perdeu. Sou como todos os demais: vivo à deriva, agarrado a uma boia imaginária que ameaça se dissolver para minha completa exaustão. Vivo de talvez, vez em quando. E me surpreendo com a presença inesperada de Alex Capriles a decodificar este tempo muito louco, insistindo risonho que existe muito mais loucura, crimes e doenças associadas ao dinheiro do que ao sexo ou qualquer outro conteúdo mental. Sorrio amarelo, tento disfarçar, impossível: agora é um mundo complexo e arriscado. Ele então segura firme o meu braço e adverte: É utópico pensar em acabar com o dinheiro. Mas os sofisticados instrumentos financeiros estão desfigurando a noção habitual de dinheiro. Hoje, o conhecimento é mais importante que o capital. O poder, a sexualidade e a fama sempre existirão como paixões humanas. O importante é analisar o lugar que elas ocupam nas nossas vidas... Fiquei sem saber o que dizer nem fazer, olhei pros lados e ele tagarelou persistente enumerando patologias monetárias, comparando situações da potencializada avareza com os pobretões de espírito soberbamente endinheirados, da compulsão pela acumulação e as taras monetárias como graves distúrbios psicossociais. Para quem náufrago sem saída, era como se ocorresse instantaneamente a releitura de Huberman ou revisse as veias abertas de Galeano. Viu-me espantado e fitou meus olhos: Ninguém está imune à decepção. Tornou-se um flagelo e para me livrar passei a encarar semblantes passantes: cifrões ditavam sorrisos e consternações. Ele sorriu, abraçou-me e se despediu com umas palmadinhas nas costas: levou de mim a ignorância do olhar e me deixou olhos agudos de peito aberto.

 


Duas ou mais de amores & violência... - Imagem: arte da quadrinista, ilustradora e jornalista Carol Ito. - Os pensamentos eram os passos dos outros povoando minha mente. Desconcertado, recorri ao banco da praça e nem me dei conta de uma bela jovem já ali aboletada. Era Lillian Constantine, disse-me seu nome e de chofre: Filmei meu próprio estupro e consegui a prisão do meu agressor. Nossa! Baixou os olhos, vi-lhe as mãos e lábios trêmulos. Virei-me para ela, uma jovem britânica na flor dos seus 21 anos, acredito. Tentei demonstrar meu apoio e, com seu jeito cabisbaixo, contou-me daquela noite numa rua escura de Ramsgate, Kent, há 5 anos atrás, lembrando dos mínimos detalhes e a sua opção: havia renunciado o direito à privacidade e filmara o ataque, relatando... Em primeiro lugar, virei a gravação do vídeo no meu telefone e acendi a luz também porque estava escuro como breu onde eu estava e pensei: 'Ok, se ele me ver' estou gravando '- e gritei para ele: Estou gravando você, estou gravando você - ele vai fugir, vai assustá-lo, não vai querer ser pego. Mas ele não se importou nem um pouco. Eu estava tão chocada. Eu estava gritando com ele, xingando, gritando por socorro. Eu pensei: este deve ser um maníaco absoluto. Foi completamente bárbaro. Percebi que ao me contar buscava forças dentro de si para superar o trauma. Enquanto isso, um caleidoscópio de imagens rondava ao nosso redor: da Aracelli de Louzeiro, da bela Inés do Goya de Milos Forman, da Lolita de Nabokov, e outras tão reais e que ocorrera por perto, como a das Sombras do Coração de Gilvanícila, de Telma & Todas as Filhas da Dor, até mesmo das oriundas da Nota Técnica nº 11 - Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os dados da Saúde (Ipea, 2014), de Daniel Cerqueira e Danilo Santa Cruz Coelho, dando conta da dramática situação apurada pelo Ministério da Saúde, de que 15% dos estupros registrados foram cometidos por duas ou mais pessoas, e que 11,3% dos casos envolvem crianças vitimadas pelos próprios pais. Era tudo muito perturbador. Ela e eu, suspensos no tempo. Então ela deitou a cabeça desamparada ao meu ombro e, cá comigo, eu teimava, sem dizer palavra alguma, que poderia ser tudo tão diferente, não fossem os impunes Ashraf Miah que vão e voltam escondidos em suas máscaras humanas.

 


Outra a mais & o amor assim... - Imagem: a arte da artista Maria Angela Biscaia. - Naquele encontro nos demoramos e eu me vi Émile e ela transformada na estonteante doméstica, Jeanne Rozerot, como se fosse paixão à primeira vista e ao meu dispor. Na minha cabeça ela era Nana e sequer dali imaginava Germinal. Da praça à intimidade, foi como estalar os dedos e logo cenas dela nos afazeres, provocantemente varrendo a casa, lavando roupa, limpando os móveis, cuidando da casa nas férias em Royan, eu fotografando tudo dentro de casa na rue Saint-Lazare, conversando curiosamente sobre sua vida – era a filha do moleiro e órfã de mãe, castigada pela madrasta, fugiu com sua irmã para viver com a avó e tornar-se a criada ideal dos meus sonhos e desejos. Não fossem tantos acontecimentos, como o Caso Dreyfus, as ameaças de morte, o empreiteiro de fornos e os vapores do monóxido de carbono na perturbada noite com Alexandrine, poderia ter sido feliz por muito mais tempo ao lado dela.

 


Cada um diga o que quiser falar... - A arte da artista, professora e cartunista alemã Anke Feuchtenberger. – Nada pudera, não era abril, nem mesmo o paraíso. Quando me vi sozinho perdido no meio da minha noite interminável, ela reapareceu e era a poeta Leila Ferraz que fez outra escrita da pele para digitar na minha língua um recado de amor. Ela então bailou como se fosse a coreógrafa cubana Alicia Alonso (1920-2019) a recitar suas Lágrimas insuspeitas: Algumas mulheres de minha geração sofreram muito / com a usurpação do tempo que devia ser delas. / Não há ouvidos para meus apelos. / É como se eu tivesse enraizado meus pés em uma terra devoluta / e meus braços se agitassem unicamente com a força dos ventos em fúria. / Doem-me as feridas de um tempo que passa levando consigo / meu corpo e flagelos da alma para a cova rasa do esquecimento. / Mais do que nunca hoje eu fui embora. / Para bem longe, onde a liberdade me escolta presa à arquitetura da satisfação solitária. / Sou uma civilização perdida e isolada do mundo. / Presa em um retângulo de sacrifícios. / Meu desgosto é trágico como uma ópera de cavernas. / Só me resta pouco tempo neste corpo cativeiro de almas. E mais tivemos além da entrega mútua e viva nas mãos que soltaram pela bifurcação dos passos. Dela, o milagre da flor: a escolha de ser livre. Cada um o seu momento, o que vale é o que vai de um coração a outro. Sempre disse sim, cuidei do ouro das cicatrizes. Não ofendi minha sorte, tudo valeu a pena, até o silêncio de uma ideia perdida. Até mais ver.

 

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JUDITH BUTLER, EDA AHI, EVA GARCÍA SÁENZ, DAMA DO TEATRO & EDUCAÇÃO LINGUÍSTICA

  Imagem: Acervo ArtLAM . A música contemporânea possui uma ligação intrínseca com a música do passado; muitas vezes, um passado muito dis...