TRÍPTICO DQC: BATISMO DE FOGO - Há muito que o meu coração espera! Por um
cêntuplo de vezes evitei sem firmar: não abjurei meus sonhos, nenhum perjúrio
lavou-me o pecado e a inquisição. Quem me acolherá ou direi assim tão só, compungido,
minguando nas cinzas da primeira vez, do primeiro amor, do que foi para não
mais. Há muito que o meu coração poreja na pia e no nome, aniquilado e só não
serei jamais consagrado em qualquer sacramento, apenas confirmado como ex-humano
na minha pletora alucinação. É nessa hora que ela chega Zélia Duncan cantarolando Alma
de Antunes e Pepeu: Alma, deixa eu ver /
Deixa eu tocar (alma, alma, alma) / (Deixa eu ver) / (Deixa eu tocar) / (Alma,
alma, alma) / Superfície (alma, alma) / Deixa eu ver sua alma (alma, alma) /
Alma (alma, alma, alma). E me beija sorridente com a frase do filósofo e
poeta francês Jean-Marie Guyau
(1854-1888): A vida é como o fogo: só se
conserva, quando se propaga! E com a comiseração pelos miseráveis incapazes
e decadentes, as labaredas do seu fogo incendiou o que de mim restava corpalma.
DANÇA DO TIPITI – Imagem: Tempo (2012),
arte do escultor, fotógrafo e artista multimídia Wagner Malta Tavares.
– Do meu quarto um local desconhecido e ae longe as vozes: Dança, dança,
dançador, / dança com valor, / dancemos todos juntos, / cada qual com seu amor.
/ Traça e retrança, / volta a trançar, / que o tipiti / vai começar. Lá-lá, um
passo pra lá, / Lá-li, um passo pra qui, / dancemos todos em roda, / tecendo o
tipiti. / Destrança as tranças, / ó meu amor, / que o tipiti / já se acabou. Fui levado por ela e ao dobrar a esquina pude constatar
a festança. Já havia visto o pau-de-fita, sabia lá esse auto era índios
tarianos ou aimorés, uma ciranda com translação em ziguezague e trançando fitas
coloridas com palmas, queda, anta, rede e croché, trança do lenço e destrança o
trancelim, cacetão, cacetinho cruzado ou doido com bastões nos moçambiques, pra
findar no florão ou tope, em reverência ao renascimento da árvore depois
da invernada, prenúncio da primavera na sanfona, violão e pandeiro, violas e
rabecas. Será vilão ou moinho, engenho ou traçado, jardineira ou mastro no
Crato, Cariri, Varginha ou Pernambuco, do sudeste pro sul, noutra cantoria: O amor quando nasce / Parece uma flor / É
tão delicado / Tão cheio de amor / Seria tão bom / Que ele fosse uma flor / Sem
ter espinhos / Da dor / Depois que tudo / É sonho ao luar / Começam os
desencantos / O amor passa a existir / Nessa voz do nosso canto. E ela me
puxava para mais perto, como se quisesse participar das comemorações que só
muito depois tomei pé no Roteiro do folclore amazônico (Sérgio
Cardoso, 1964) e Os supostos
festivais folclóricos do amazonas
(CNFL/IBECC, 1962), ambas as publicações do historiador, professor, escritor e
advogado Mário Ypiranga Monteiro (1909-2004). Ela encantada
com tudo aquilo, abraçou-me forte como se quisesse ao saracoteio sussurrar Margaret Atwood: Na primavera, no final do
dia, você deve cheirar a terra. E do seu corpo o perfume das flores, frutas,
lavouras e rincões para minha vida.
ELA, PÁSSARO NA PIRANDRIA – Imagem: a arte da bailarina inglesa Julia Farron (1922-2019) – E era da
pele dela em chamas o incenso do bailado no Pássaro
de Stravinsky em plena Pirandria – aquela ilha do Supplément de l’histoire véritable de Lucien
(Paris, 1654), do historiador, geógrafo e diplomata francês Frémont d’Ablancourt (1621-1696) -, e a
se transformar em centelha flutuante no ar, para que em mim fogo-fátuo, ser a
vida, a iluminação e o renascer, a paixão e o destrutivo infernal, a intuição e
o incêndio criminoso, o ritual de passagem para purificação, a regeneração e as
cinzas, a fricção e o sexo, o arquétipo da poética e da metafísica, para me
acordar no real da vida com William Golding: Pior do que a loucura, a
sanidade. E por três vezes ininterruptas, quando ao talento curto de
imaginação sem fôlego e inspiração nenhuma, ela me levou incólume em suas mãos
aladas pela travessia da fumaça tóxica da distopia de ontem e agora; e
por seis vezes consecutivas em que a casa desabou sobre minha sombra antes de
posar para retratos na parede e a voz que é minha e o braço que é meu
envolveu-a como se eu fosse um fantasma de fogo pobretão e morto de fome a
ressuscitar no domingo de todas as semanas e meses e anos vindouros; e por nove
vezes sucessivas, depois de cantar e contar as minhas histórias arruinadas sem
adornos nem louvores, os pulmões que são meus tiveram o privilégio de ser
ocupado pela fragrância de sua carne nua na colina das estrelas para acudir o
destino no reino da esperança. E nela sou e me realizo. Até mais ver.
A ARTE DE LULA CARDOSO AYRES
A arte do pintor vanguardista, desenhista, cenógrafo e programador visual Lula Cardoso Ayres (1910-1987), que participou de exposições no Brasil e no exterior, executando cerca de cem painéis e murais em diversas cidades brasileiras, entre as quais Recife, Salvador, Santos, São Paulo e Natal. Seus quadros fazem parte do acervo de alguns museus brasileiros e de coleções particulares da Europa, América do Norte e América do Sul. Veja mais aqui e aqui.