quinta-feira, outubro 15, 2020

OLALLA COCIÑA, GREENAWAY, HANNAH ARENDT, CACILDA BECKER, BESSA-LUÍS, NÍNIVE CALDAS & RODOLFO LOEPERT


  

TRÍPTICO DQC: PRIMEIRO ATO: O ÁTIMO DO ENCONTRO - Meu quarto e o mundo: a parede acendeu para meu espanto! Não me acostumara ainda com isso, a solidão persistente. A imagem refletida desta vez era do Coliseu e lá longe uma mulher vestida tal qual a coreógrafa belga, Anne Teresa de Keersmaeker na Rosa de Greenaway, gesticulava sozinha, dançava, fazia acrobacias e gesticulava. Pude ver-lhe o talhe, estonteantemente sensual. Aproximou-se e recitou Hannah Arendt: O novo sempre aparece contra esmagadoras chances estatísticas e suas probabilidades, que, para todos os efeitos práticos, todos os dias equivale a certeza; o novo, portanto, sempre aparece sob o disfarce de um milagre. Novos passos e a bailarina radiante às piruetas, rolando no chão e com expressões performáticas a explorar todo espaço do monumento. Bailarina? Demorou a responder e, depois de se contorcer aos rebolados remexendo-se descalça, chegou bem perto dos meus lábios e disse-me ser o seu sonho: o de bailar ao ar livre. De repente, virou-se e tornou a virar como se fosse Augustina Bessa-Luís: Que é amar senão inventar-se a gente noutros gostos e vontades? Perder o sentimento de existir e ser com delícia a condição de outro, com seus erros que nos convencem mais do que a perfeição? A frivolidade é também uma forma de hipocrisia porque as pessoas não são aquilo. A pessoa, quanto mais frívola nos parece, mais esconde a sua natureza profunda. Aproximou-se mais ofegante e inesperadamente beijou-me com sofreguidão. Quase sem fôlego me rendi ao seu ataque sedutor, vasculhando sua escultural compleição. Abraçou-me com fervor incendiando todo meu ser eletrizado pela cobiça de tê-la mais que inteira e nua. Soltou-me bruscamente, saiu até um recanto extremo e distante, apanhou um par de sapatos e voltou apressada: Vamos! Quem era ela, qual o seu nome, não sei. Queria saber. Olhou-me compenetrada, deu-me a mão e saímos enamorados sem rumo tarde afora.

 


SEGUNDO ATO: O FOGO DO FECAMEPA - Imagem: O Coliseu, Roma - Itália, do fotógrafo Rodolfo Loepert – Personagens da cena: Máscara que chora (MQC), Máscara que ri (MQR) e Coisomínion (C) – MQC: Eita, os cometas estão tirando cada fino na terra, hem? MQR: Vixe! Aquela num é a atriz Cacilda Becker? Pelo vestido colado no corpo, ela está sem calcinha! Nossa que pernas! C: Quero que todos se fodam! MQC: Se um meteoro desse cai aqui, babau! MQR: Hahahahahaha! C: Tou com Jesus, os outros que se fodam! (Ouve-se manchetes do noticiário. Som de BG) Locutor em off: No Fecamepa as últimas notícias: Fogo dizima a Amazônia, o Pantanal e várias áreas do território brasileiro! (Aumenta o BG - Labaredas tomam conta do coliseu, ao fundo matas queimadas se sobressaem. Som de música tétrica). MQC: O noticiário aqui é muito deprimente, além de falso e trágico, também é tendencioso. MQR: Ora, ora, vamos todos consumir, maior queima nas vitrines! Tudo vira cinzas no carnaval do capitalismo! C: Queria mesmo que desse uma enchente dessas bem avassaladoras com fogo, trovões, relâmpagos, explosões e tudo pra dizimar de vez com a raça dos comunistas, dos pretos, gays, pobres e principalmente da desgraça nordestina, ô pragas! MQC: Essas notícias são de matar um do coração! MQR: Vamos comprar mais, vamos queimar as promoções! Tem cada coisa barata, liquidação dessa nunca se viu, essa é a hora de comprar mesmo, ou agora ou nunca! C: Se eu fosse o presidente eu botava esse povo todo numa câmara de gás, tudo amarrado em nome de Jesus, aleluia! Aleluia! (Baixa o pano).

 


TERCEIRO ATO: QUEM DELA ERA - Anoiteceu um céu de nenhuma estrela. Não sabia onde estávamos, havíamos envolvidos por uma multidão atenta a uma encenação histriônica. Ela ria e mais apertava minha mão contra o seio. Sussurrou ao meu ouvido da saudade de tudo e queria saber como andava o país depois da ditadura militar, não havia tido notícia e entristecida ao tomar conhecimento das últimas que lhe contara do retrocesso todo e desgoverno geral. Fez-me sentar ali mesmo na calçada ao seu lado, uma lágrima escorreu na sua face e consternada incorporou a si mesma: Viver é ir ao encontro. Não se pode viver em estado de contemplação. Tudo está a nossa espera É uma questão de coragem e amor. Cacilda? Sim, sou eu: Eu não sou mais só eu, eu sou um pouco mistura com o teatro. Sou um instrumento da minha arte, sou meu próprio violino. De cada personagem que representei guardei uma "descoberta" para mim, de mim mesma. Quando quero, quero. Quero de fato. E vou buscar. Não espero nada de ninguém com relação às coisas materiais, é claro. Tenho confiança cega em mim, apesar das insuficiências toco tudo para a frente. Sempre foi assim. Ouvi atentamente suas palavras e sua voz embargada encostando seu semblante ao meu ombro, chorosa, falou-me da sua molecagem em Pega Fogo (1950), da estreia da menina n’A morte da borboleta (1930), do Ritual do Fogo do ginasial, dos palcos e cenas peças e filmes, das Paredes de Sartre (1950), da Dama das dos Seis de Pirandello (1951), das Camélias, Antígona, da Stuart de Schiller (1955), da Jornada de O’Neill (1958), da Moeda de Abílio (1960), da Velha Senhora de Dürrenmatt (1962), da Noite de Tennessee (1964), do Medo de Virginia Woolf (1965), da fúria santa, do diário e da ditadura militar e do aneurisma naquela fatídica tarde junina como Estragon do Godot de Beckett. Contou-me mais como se vingasse a vida aos prantos, levantei-lhe a face e não era ela, era a linda Olalla Cociña, a Tigresa: o teu amor vivendo nas jaulas dos circos / ou no teatro / (chamaram-te dramática seguido, acabaste sendo). / os ossos que adoras amarrando o cabo da vida / ao da morte / (a morte prematura / a morte desejada e que não chega / não querer viver assim mas também esse medo a morrer). / ir virando-a: ser / inconsistente. Um beijo e naqueles lábios eu flutuava o poema por infinitas galáxias do não sabido. Até mais ver.

 

A ARTE DE NÍNIVE CALDAS

A arte da atriz Nínive Caldas que iniciou a sua carreira no teatro em 2009 e desde então vem atuando com destaque em vários espetáculos e com vasta experiência em cinema, teatro e publicidade. Atualmente é apresentadora do programa Na direção delas, da TV Brasil. Veja mais aqui e aqui.


 



PATRICIA CHURCHLAND, VÉRONIQUE OVALDÉ, WIDAD BENMOUSSA & PERIFERIAS INDÍGENAS DE GIVA SILVA

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