TRÍPTICO DQC: PRÓLOGO DA TIRINETA – Perdi a completa noção do tempo. O que fazer, não sabia.
De repente meti a mão no bolso, nenhuma cédula ou moeda, mas havia algo lá
causando incômodo. Puxei do fundo, saquei um punhado de sonhos! Nossa!
Cuidadosamente tive de deixá-los intocáveis, bem acomodados onde estava. Um
deles buliçoso ficou na minha mão. Soltei e fez-se uma sombra de ave
desconhecida que tomava vulto. Ficou enorme, assustei-me. Possivelmente nem era
um sonho meu, devia nem ter mexido. Aos poucos a certidão: todo ambiente
transformou-se no quintal da infância nunca mais visto: o aroma aprazível, o
ruído da pisada agradável nas folhas do chão, o gosto de fruteira no ar, os
galhos do abacateiro que eu gostava de me atrepar, o gorjeio dos pássaros em
polvorosa, os calangos correndo em ziguezague pelo muro, a vaga entre as folhas
da bananeira na parte do muro que eu gostava de me pendurar nas traquinagens,
coisas distantes e inesquecíveis. O desejo da criancice imperou e me fez apoiar
o pé na raiz da mangueira, mãos pelo reboco até avistar, por cima do parapeito,
uma desconhecida a se banhar nua na lavanderia. Aquietei-me. Não era aquela que
meus olhos infantis costumavam apreciar. Essa era mais morena, corpanzil robusto,
formas bem delineadas. Percebi seus grandes olhos negros agateados ao me
flagrar. Foi muito rápido. Outra olhadela e, a constatação, que era muito bonita
com seus lábios ressaltados, seios eminentes, ancas simpaticamente arredondadas
sobre coxas e pernas vigorosas, um verdadeiro milagre da natureza. Ao ser novamente
descoberto, esquivo na timidez e ela pouco se importava, até sorriu-me graciosa.
Com a minha insistência em vê-la, acenou-me: Vem! Eita! Pulei imediatamente e um
lodaçal no outro lado do muro me deixou em apuros, como se estivesse entre
areias movediças. Ela estendeu-me a mão em socorro e não consegui me segurar.
Escapuli para despencar num poço sem fundo de nunca mais parar de cair e
ouvi-la Lou Salomé: A vida humana
– ah / A vida sobretudo – é poesia. ; Inconscientes, nós a vivemos, dia a dia /
passo a passo – mas em sua intangível / plenitude ela vive e se nos traduz em
poesia. / Longe, muito longe da antiga frase / ‘Faz de tua vida uma obra de
arte!’; / Não somos nós nossa obra de arte. Não sabia onde ia parar, sei
que a vertigem foi maior.
A TRAMA ABSURDA – Havia então perdido toda noção de tempo e espaço,
não sabia nem onde estava. Vi um cotoco de vela e marquei para aprumar direção.
Adiantou nada. Pensei haver por ali uma lamparina ou clepsidra ou ampulheta, sandglasse,
merkhet, gnômon, pêndulos, cronômetros, ou os pneumáticos de Popp
e Resch, o acrônimo Atmos, o de Flora, ora, ora, no meio da roda viva nem
preciso mais de nada da horometria, marcador nenhum de tempo é preciso, para
quê? É o mesmo de contar o inexistente. Se não sei mais onde estou, de necessário
mesmo, prefiro o mais curioso deles no lugar onde fui parar: em Alsondons. Sim,
soube por Robert-Martin Lesuire, François-Augustin Quillau e Victor Desenne, na
publicação do L’aventurier français, mémories de Grégoire Merveil
(Paris, 1792 – Nabu Press, 2013): [...] o velho método de medir o tempo, no
qual uma menina de seios nus sobe num pedestal situado na praça principal e um
rapaz põe as mãos nos seis dela, contando em voz alta as batidas de seu
coração: cada batida corresponde a um segundo. E era a minha mão no seio da
vizinha que reaparecera e eu contando as batidas do seu coração. O dia
amanheceu e, de repente, Jacob Boehme
ecoou na minha fantasia: No Amor,
há certa grandeza e expansão do coração que é inexprimível, pois dilata a alma
tanto quanto a inteira criação de Deus. E isso será verdadeiramente
experimentado por ti, para além de todas as palavras, quando o Trono do Amor se
estabelecer em teu coração. Nós, homens, temos um
livro em comum que aponta para Deus. Cada um tem isso dentro de si, que é o
inestimável Nome de Deus. Sim, ouvi atento. Ela ao meu lado a tudo também ouviu,
deitou minha cabeça em seu seio desnudo e cantarolou um sensual acalanto para
que eu dormisse em sua carne e não mais soubesse de nada além da vida nela,
porque lá fora todos se matavam e se beijavam num estrepitoso morticínio.
EPÍLOGO DAS CULMINÂNCIAS – Imagem:
cena da instalação coreográfica de dança, performance e vídeo O banho (2004), da premiada coreógrafa e
bailarina Marta Soares, refletindo
sobre a subjetividade de Sebastiana de Mello Freire (1887-1961), dona Yayá, uma
homenagem à mulher da elite paulistana que foi diagnosticada como doente mental
entre 1919/1961: Eu trabalho nas minhas
criações, entre outras coisas, os traumas de ter crescido em uma pequena cidade
do Interior de São Paulo, durante a ditadura militar, numa sociedade
patriarcal. Acredito ser esse um dos motivos pelo qual venho criando danças
sobre a impossibilidade de dançar. – Estávamos na banheira, seu sexo
aprisionava o meu mordiscando-o deliciosamente, suas pernas me envolvia não me
permitindo qualquer afastamento. Atracados prazerosamente, ela me beijava sussurrando
sua vida, passado, desapontamentos, traumas e frustrações. Na voz dela Katherine Mansfield: Realmente, não creio na alma humana, nem
nunca cri. Tenho a convicção de que as pessoas são como as malas: cheias de
coisas diversas, são expedidas, atiradas, empurradas, lançadas ao chão,
perdidas e reencontradas, até que, por fim um Último Transportador as atira
para o Último Comboio. Beijei-a com poemas e canções que fiz para ela e leu-me
um poema de Cummings: Não ser ninguém a não ser você mesmo, / num
mundo que faz todo o possível, noite e dia, / para transformá-lo em outra
pessoa / significa travar a batalha mais dura / que um ser humano pode
enfrentar; / e, essencialmente, jamais parar de lutar. Dos seus olhos
saltavam estrelas e ela as colocava como adereços nos cabelos, aformoseando-se
para jogá-las aos beijos para mim, deixando-me iluminado com a sua saliva e, desejando-a
cada vez mais, deitou sua cabeça sobre o meu ventre alisando carinhosamente meu
sexo rijo entre os lábios e dedos para que tudo fosse recheado pela magia dos
prazeres. E se entre a vida e a morte redivivos desfalecíamos e tornava-nos a
ressuscitar porque ela bailava nua no meu corpo e eu no dela às voltas do
planeta. Até mais ver.
A ARTE DE HÉLIO FEIJÓ
A arte do premiado poeta, pintor, desenhista e arquiteto Hélio Feijó (1913-1991), um dos mais completos e inovadores artistas na história da arte pernambucana, fundador do Grupo dos Independentes (1933) e da Sociedade de Arte Moderna (1947). Veja mais aqui & aqui.