O SOL E A LUA - No tempo
em que o Sol e a Lua eram gente, certo dia, o curumin caeté Fiietó brincava de
caçar na mata, quando encontrou uma linda menina e se aproximou dela: Você está
brincando de caçar? Tô não, tô perdida. Perdida? Sim, saí atrás de uma linda
bobroleta e perdi o caminho de volta pra casa. Onde você mora? Não sei, estou
perdida. Qual a sua tribo? Sou caingang. Nunca ouvi falar. Acho que corri
demais atrás da borboleta de não perceber tão longe que fui. E você, é de qual
tribo? Ah, sou caeté. Nunca ouvi falar, também. E agora? Não sei, estou
perdida. Vamos brincar por ali pela lagoa, aí você, quem sabe, não encontra o
caminho de de sua casa, hem? É, vamos. Como é seu nome? Iaravi. E o seu?
Fiietô. Ah, tá, vamos pra lagoa? Vamos. E saíram os dois até chegarem à lagoa e
ficaram brincando de mergulhar com os peixes. Pulavam, timbungavam, maior
festa. Vamos ver de nós dois quem atira cipó mais longe dentro d’água? Nunca
brinquei disso. Ah, porque você é menina, não sabe como é brincar coisa de
menino. É, então vamos, quero aprender. E ficavam pegando gravetos e cipós no
chão da mata e jogavam dentro d’água. Os peixes pulavam pra pegar as coisas
jogadas no ar. Virou uma competição. Aí Fiietó gritou: Saiam, não é pra vocês
pegarem, estamos apostando quem joga mais longe. Ah, os peixes nem deram conta,
pulavam mesmo assim e interceptavam tudo no ar. Vocês estão atrapalhando nossa
brincadeira! Ah, deixa, eles estão brincando com a gente, vamos nadar com eles?
Então, vamos. E saíram nadando com os peixes e estes, para provocar os dois,
ficavam apenas com o rabinho fora d’água só pra provocá-los a virem nadando
atrás deles. Iaravi ia prum lado atrás dos que via, Fiietó ia pro outro com o
mesmo objetivo. Tanto foram pra lados opostos que se distanciaram e, quando
menos esperavam, esbarraram um no outro. Eita! Batemos com a cabeça. Foi. Estou
cansada com esses peixes, eles me botaram para nadar muito. Eu também, vamos
voltar pra margem? Vamos. E retornaram, ficaram olhando o brinquedo dos peixes
pulando fora d’água e se riam muito com isso. Já estava escurecendo quando
Iaravi ficou preocupada em voltar: E agora? Como volto pra casa? Ah, a gente se
esqueceu de procurar o caminho, vamos ver se a gente encontra. Saíram, andaram,
andaram, nada de Iaravi achar, quando Fêetó resolveu levá-la pra tribo dele. Lá
chegando os dois se juntaram aos demais, cearam e foram dormir. No outro dia
acordaram, tiraram o jejum e foram ver se achavam o caminho de volta pra casa
dela. Foram pra mata e lá começaram a brincar de esconde-esconde, o que é que
é, até que encontraram uns pica-paus e ele pediu um chapéu daquele cor de fogo
feito os deles. Logo um dos pica-paus retirou um e deu pra ele, fazendo-o de
leque. Bonito? Sim. E pra ela? Outro pica-pau deu um pra Iaravi. Eu estou bonita
agora? Está. Vamos? Vamos. E ambos brincaram comos pássaros, de pula-pula e
correr e voar. Lá pras tantas os pica-paus se despediram e foram embora, eles
estavam felizes com os leques feitos chapéus cor de fogo na cabeça. Ah, agora
você se faz de cega preu brincar de lhe guiar pela mata, tá bom. Nessa brincadeira
ela muito tropicou nos galhos quebrados e secos, nas raízes e muitas pedras, a
ponto de invocar-se e não querer mais brincar disso não. Ao abrir os olhos
avistou uma casa de marimbondos. Vixe! Vamos embora, corre, olha ali uma casa
de marimbondos. Era tarde, correram tanto que findaram mergulhados dentro da
lagoa. Alguns peixes pularam e comeram alguns dos marimbondos que não
resistiram e foram embora. Visse? Não fosem os peixes, a gente ia morrer
afogado. Era mesmo, ainda me ferraram. E Fiietó realmente constatou inchaço nas
faces e nas costas de Iaravi. Está doendo? Está. Vamos lá pra minha tribo
cuidar disso. E voltaram. Chegaram lá, foram pro feiticeiro que passou uns ungüentos
na pele de Iaravi e lhe deu um remédio para beber, demorou um pouquinho, a dor
passou, mas continuava com a face e as costas inchadas. Ela então se deitou no
chão da oca e ali adormeceu. Será que ela vai ficar boa? Vai, é só efeito do
remédio que eu dei, logo ela acorda e volta a brincar com você. No outro dia
Iaravi acordou e foram brincar de esconde-esconde de novo, ela tanto se
escondeu que Fiietó não mais encontrou. Perdeu-se, sumiu-se. Caçou ele por tantos
lugares e lonjuras, não mais encontrou Iaravi. Ele ficou muito triste, estava
com saudades dela. Encostou-se numa pedra perto da lagoa e logo os peixes
apareceram pulando na água. Ela desapareceu, não achei mais não. Queria era
crescer, ficar grande, para encontrá-la. Quem sabe, ela esteja perdida na mata.
Nessa hora um peixe deu um pulo maior e com um toque de barbatanas fez Fiietó
crescer, agora um rapaz forte, bonito, guerreiro. Obrigado, amigos peixes,
agora vou procurar Iaravi, se vocês encontrarem me avisem, viu? Vamos. E saiu morro
acima, montanha abaixo, terras distantes nunca vistas. Bem distante dali,
estava Iaravi soluçando na beira de um rio distante, quando os peixes pularam
foram d’água. Ah, amigos peixinhos, que bom encontrar vocês por aqui. Viram Fiietó?
E um dos peixes pulou, bateu a barbatana e Iaravi cresceu, tornando-se uma
linda cunhã. Os peixinhos ficaram pulando como se a chamassem para nadar. Vocês
sabem onde está Fiietó? Eles mais pulavan, ela entendeu que era pra segui-los.
E ela nadou dias e noites. E Fiietó procurou por ela noites e dias. Cansavam,
descansavam, tornavam a procurar um pelo outro, ao cabo de uma semana, quando
ambos já haviam perdido as esperanças, sentaram cada qual na beira oposta de um
grande rio, extenuados e sem mais esperanças. Estavam desapontados por não
reencontrarem um ao outro. Ela olhava tudo ao redor, o céu, a terra, o mato,
quando percebeu os peixes pulando de novo e não entendia. Vieram os pica-paus
em bandos cantando, ah, os amiguinhos pica-paus, que vocês querem? Não
entendia. Da mesma forma, na outra margem do grande rio, também os peixes e os
pica-paus faziam o mesmo com Fiietó e ele não entendia. O que vocês querem? Os
peixes mais pulavam e os pica-paus mais bicavam no ar, como se mandando ele a segui-los.
E assim foi, ele mergulhou no grande rio e pôs-se a nadar acompanhando os
peixes e os pássaros. Lá longe Iaravi avistava outros pica-paus voando aos
pulos dos peixes na água, enquanto os que estavam com ela aumentavam no bater
das asas e nos pulos na água. Demorou pra ela perceber umas braçadas firmes de
gente na água, acompanhando os pulos dos peixes e o vôo dos pássaros, vindo em
sua direção. Mais um pouco os braços se aproximavam e os pica-paus que vinham
se encontravam com os outros que estavam com ela e, na água, aumentou em muito
os pulos com muitos peixes até a chegada dele na beira do rio. Era Fiietó. Ela
ficou feliz. Fiietó? Iaravi? Era o reencontro. E se abraçaram, se beijaram e
juraram nunca mais se afastarem um do outro. Tanto é que passaram a tomar conta
do mundo, ele de dia passou a ser o soberano Sol brilhando do amanhecer até o
final das tardes, e ela, de noite, tornou-se a radiante Lua com suas fases para
iluminar o caminho dos que se perdem. (Recriação a partir das lendas indígenas
amazônicas recolhidas de Notícia dos Ofaié-Xavante
(Revista Museu Paulista, 1951), de Darcy Ribeiro, e Os apinajé (Boletim do Museu Paraense Emiolio Goeldi, 1956), de
Curt Nimuendaju). © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais
aqui.
RÁDIO
TATARITARITATÁ:
Hoje na Rádio
Tataritaritatá
especiais com a música do compositor,
regente orquestral, professor e jornalista Gilberto
Mendes (1922-2016): O
anjo esquerdo da história, Alegres trópicos - um baile na mata atlântica &
Qualquer música; a saudosa cantora Elis
Regina
(1945-1982) ao Vivo, em Montreaux & Trem azul; do multi-instrumentista,
músico, compositor e ativista nigeriano Fela
Kuti (1938-1997): Afordisiac, Go slow & Gentleman; e da cantora Irah Caldeira: Flor do dia, Quero ter
você, A natureza das coisas, Sem segredo & Avoante com Santanna, o
Cantador. Para
conferir é só ligar o som e curtir.
PENSAMENTO DO DIA - Houve
também quem, embora literato da cabeça aos pés, não sentiu nenhum complexo de
inferioridade diante da história, mas, antes, teve certeza de que foi ele a
nutri-la e enriquecê-la com toda a sua fantasia e cultura. Trecho de Assunto encerrado (Companhia das Letras,
2009), do escritor italiano Ítalo Calvino (1923-1985). Veja mais aqui.
TEMPOS SOMBRIOS - [...] Em nossa época,
parece-me, nada é mais dúbio do que nossa atitude em relação ao mundo, nada
menos assente que a concordância com o que aparece em público, imposta a nós
pela homenagem, a qual confirma sua existência. Em nosso século, mesmo o gênio só
pôde se desenvolver em conflito com o mundo e o âmbito público, embora, como sempre,
encontre naturalmente sua concordância própria particular com sua platéia. Mas
o mundo e as pessoas que nele habitam não são a mesma coisa. O mundo está entre
as pessoas, e esse espaço intermediário — muito mais do que os homens, ou mesmo
o homem (como geralmente se pensa) — é hoje o objeto de maior interesse e
revolta de mais evidência em quase todos os países do planeta. Mesmo onde o
mundo está, ou é mantido, mais ou menos em ordem, o âmbito público perdeu o
poder iluminador que originalmente fazia parte de sua natureza. Um número cada
vez maior de pessoas nos países do mundo ocidental, o qual encarou desde o
declínio do mundo antigo a liberdade em relação à política como uma das
liberdades básicas, utiliza tal liberdade e se retira do mundo e de suas
obrigações junto a ele. Essa retirada do mundo não prejudica necessariamente o
indivíduo; ele pode inclusive cultivar grandes talentos ao ponto da genialidade
e assim, através de um rodeio, ser novamente útil ao mundo. Mas, a cada uma
dessas retiradas, ocorre uma perda quase demonstrável para o mundo; o que se
perde é o espaço intermediário específico e geralmente insubstituível que teria
se formado entre esse indivíduo e seus companheiros homens. [...] Bem, a esse respeito, os últimos trinta anos
dificilmente trouxeram algo que se pudesse chamar de novo. [...]. Trechos
da obra Homens em tempos sombrios (Companhia
das Letras, 2008), da filósofa política alemã de origem judaica Hannah
Arendt (1906-1975). Veja mais aqui, aqui, aqui e
aqui.
OS HOMENS & A MORAL - [...] sob
que condições o homem inventou para si os juízos de valor “bom” e “mau”? E que
valor têm eles? Obstruíram ou promoveram até agora o crescimento do homem? São
indícios de miséria, empobrecimento, degeneração da vida? Ou, ao contrário,
revela-se neles a plenitude, a força, a vontade da vida, sua coragem, sua
certeza, seu futuro? [...] Já em
princípio a palavra “bom” não é ligada necessariamente a ações “não egoístas”,
como quer a superstição daqueles genealogistas da moral. É somente com um
declínio dos juízos de valor aristocráticos que esta oposição “egoísta” e “não
egoísta” se impõe mais à consciência humana. [...] Na origem, toda a educação e os cuidados do corpo, o casamento, a
medicina, a agricultura, a guerra, a palavra e o silêncio, as relações entre os
homens e as relações com os deuses, pertenciam ao domínio da moralidade: esta
exigia que prescrições fossem observadas, sem pensar em si mesmo como indivíduo.
[...] Em toda a parte onde existe
comunidade e, por conseguinte, moralidade dos costumes, reina a ideia de que a
punição pela violação dos costumes recai em primeiro lugar sobre a própria
comunidade. [...] Para poder dispor
de tal modo do futuro, o quanto não precisou o homem aprender a distinguir o acontecimento
casual do necessário, a pensar de maneira causal, a ver e antecipar a coisa
distante como sendo presente, a estabelecer com segurança o fim e os meios para
o fim, a calcular, contar confiar – para isso, o quanto não precisou antes tornar-se
ele próprio confiável, constante, necessário, também para si, na sua própria representação,
para poder enfim, como faz quem promete, responder por si como porvir! [...].
Trechos da obra Genealogia da moral: uma
polêmica. (Companhia das Letras, 1998), do filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900). Veja
mais aqui, aqui, aqui e aqui.
ENSINO & ESCOLHAS –Vivemos
uma enorme demanda de conhecimento qualificado, cientifico, acadêmico. Isso é
ótimo: o berço rico, a propriedade da terra, a carteira em banco não bastam
mais para o sucesso na vida sem a inteligência e o estudo. [...] O acesso ao melhor conhecimento nem sempre é
democrático, porque fica diferenciado pelo dinheiro que se tem. A demanda é
democrática, a oferta nem tanto. [...] Da
cabeça aos pés, cada um de nós veste a ciência que não existia cinco anos
atrás. Mas a ciência também leva a uma consciência mais apurada do mundo.
[...] Num país preconceituoso com o
conhecimento (Monteiro Lobato sobre a preguiça mental: se desse a cem
fazendeiros a escolha de ler meia hora ou derrubar uma mata de peroba, num
instante ouviria 101 machados retumbando!), isso é formidável. A universidade
também sabe, hoje, que para se legitimar precisa firmar alianças com a
sociedade – inclusive, mas não só, o mundo empresarial. Isso diz respeito à sua
estratégia. Deveria montar cursos de extensão oferecidos à larga, presenciais
ou não. Mas falta dinheiro. Por isso, hoje é fora da academia que se supre essa
necessidade. [...]. Trecho do artigo A
corrida do ensino: a crise da universidade e a voga dos cursos de extensão
(Bravo, março 2005), do filósofo, escritor e professor da USP,
Renato Janine Ribeiro.
A ARTE DE CECILIA KERCHE
A arte da bailarina
Cecília Kerche.
Veja mais:
&
DOIS POEMAS DE E. E. CUMMINGS
I
quando o meu amor vem ter comigo é
um pouco como música,um
pouco mais como uma cor curvando-se(por exemplo
laranja)
um pouco como música,um
pouco mais como uma cor curvando-se(por exemplo
laranja)
contra o silêncio,ou a escuridão….
a vinda do meu amor emite
um maravilhoso odor no meu pensamento,
um maravilhoso odor no meu pensamento,
devias ver quando a encontro
como a minha menor pulsação se torna menos.
E então toda a beleza dela é um torno
como a minha menor pulsação se torna menos.
E então toda a beleza dela é um torno
cujos quietos lábios me assassinam
subitamente,
mas do meu cadáver a ferramenta o sorriso
dela faz algo
subitamente luminoso e preciso
subitamente luminoso e preciso
—e então somos Eu e Ela….
o que é isso que o realejo toca
II
a lua esconde-se no
cabelo dela.
O
lírio
do céu
cheio de todos os sonhos,
desce
cabelo dela.
O
lírio
do céu
cheio de todos os sonhos,
desce
encobre a sua brevidade em canto
cerca-a de intricados débeis pássaros
com margaridas e crepúsculos
Aprofunda-a,
cerca-a de intricados débeis pássaros
com margaridas e crepúsculos
Aprofunda-a,
Recita
sobre a sua
carne
as pérolas
sobre a sua
carne
as pérolas
da chuva uma a uma murmurando.
Poemas extraídos da obra Livro de poemas (Assírio
& Alvim, 1999), do poeta estadunidense Edward
Estlin Cummings ( e.e.cummings 1894-1962). Tradução de Cecília Rego
Pinheiro. (Imagens: arte da fotógrafa polonesa Laura Makabresku). Veja mais aqui.
A ARTE DE WOLF VOSTELL
A arte do pintor, videoartista e escultor suíço
Wolf Vostell (1932-1998).