MUITAS & TANTAS VEZES - Imagem:
arte do pintor e escultor espanhol Pablo
Palazuelo (1916-2007) - Muitas e tantas vezes ajustei o relógio e esqueci,
perdi a hora, passei do ponto. Ô cabeça oca essa minha. Não era desfaçatez, nem
desconsideração, parecia mais que eu vivia no mundo da lua, tantas coisas remoendo
no quengo de transbordar as ideias e não acertar uma sequer. Vai ser doido
assim por aí, ora. Outras, saía com rumo certo e me perdia no caminho, via-me
tonto, fazer o quê, juízo nos pés, até. Não era indolência nem má-vontade,
pensamentos muitos revirando tudo, perdia a noção. Não conto das vezes em que
sorri para não chorar, das tripas coração, pacientemente: queriam, teimavam,
mesmo aos desnivelados pelo contra, enxergavam prós, condescendia, torcendo
pelo êxito diante do fracasso, só arrependimentos dos temperamentais. Mesmo que
depois restasse a covardia, a impostura, a insolência, isso no meio de um monte
de adversidades, gestão de conflitos, só em palpos da aranha, procurando um
buraco no chão pra me esconder, evadir de nunca mais voltar. Como é que fui me
meter nessa, hem? Não entendia como o que era de bom alvitre, podia causar
tanto desentendimento, muito menos o que na maior boa vontade podia chegar a
ressentimentos irreconciliáveis. Não sei quantas fiz o que não queria prevendo
o retrocesso, e mesmo sob protestos de minha parte, insistências além da conta,
só para me ver livre do peditório, tudo certo. Por isso disse infinitamente não
e por diversas e justas razões, tendo de aquiescer ao final. Depois, depois.
Num disse? Era tarde, remediar, mais nada. Nenhuma culpa. Nenhuma certeza,
contudo, sabia: cada qual, seus caprichos, seus percalços. Ah, a incompreensão,
quanta gente menor que o próprio tamanho, tolerava, relevava. Pensava em
ajudar, nem pediam, já mandavam ver e depois com o desacerto, aí eu era
convocado para resolver o que sequer sabia feito, pelas minhas costas, o que é
pior. Superei, sorri até, nada como o dever cumprido e a satisfação da
solidariedade. A vida passa e o melhor é viver. © Luiz Alberto Machado.
Direitos reservados. Veja mais aqui.
RÁDIO TATARITARITATÁ:
Hoje
na Rádio Tataritaritatá especiais com a música do cantor e compositor Milton
Nascimento:
Planeta blue na estrada do sol, Crooner ao vivo & Quem sabe isso quer dizer
amor; da violinista russa Viktoria Mullova interpretando Tico tico de
Zequinha de Abreu, Brasileirinho & Concert Violin Prokofiev; do guitarrista
estadunidense Joe Satriani: The
extremist & Surfing Wind the alien; e da excelente cantora, atriz,
jornalista e produtora Marianna Leporace:
Valsa
brasileira, Paraíso, Fazer a mala, Perdido no meio das ondas, If, O velho e o
mar & Dia a dia. Para conferir é só ligar o
som e curtir.
PENSAMENTO DO DIA – Duplipensar: guerra é paz, liberdade é escravidão, ignorância é força,
do romance distópico clássico 1984 (Nineteen eighty-four 1949,
Companhia Editora Nacional, 1979), do escritor e jornalista britânico George
Orwell (Eric Arthur Blair – 1903-1950), do qual destaco o trecho: [...] A voz da teletela
estava ainda falando de prisioneiros, presa e matança, mas lá foraa gritaria
diminuíra um pouco. Os garçons tinham voltado ao trabalho. Um deles aproximou-se
com a garrafa de gin. Winston, imerso num sonho bem aventurado, não reparou
quando lhe encheram o copo, Já não corria nem dava vivas. Estava de volta ao
Ministério do Amor, tudo perdoado, a alma branca de neve. Estava na tribuna dos
réus, confessando tudo, implicando todos. Ia andando pelo corredor de ladrilhos
brancos, com a impressão de andar ao sol, acompanhado por um guarda armado. Por
fim penetrava-lhe o crânio a bala tão esperada. Levantou a vista para o rosto
enorme. Levara quarenta anos para aprender que espécie de sorriso se ocultava
sob o bigode negro. Oh mal-entendido cruel e desnecessário! Oh teimoso e voluntário
exílio do peito amantíssimo! Duas lágrimas cheirando a gin escorreram de cada
lado do nariz. Mas agora estava tudo em paz, tudo ótimo, acabada a luta.
Finalmente lograda a vitória sobre si mesmo. Amava o Grande Irmão. Veja mais aqui e aqui.
O PASSADO DE ONTEM PARA AGORA – Vivemos num mundo estranho. Mundo em que o
editor da importante Harper’s Magazine aparece na CNN afirmando que a imprensa
americana conspirou com o governo Bush, na construção de uma farsa – a farsa da
ameaça iminente das armas de destruição em massa do Iraque, justificativa para
a tomada de poder naquele país. Um mundo em que precisamos de alguém como
Michael Moore e seu jornalismo humorístico para derrubar a linguagem
oficialesca da imprensa e das salas de relações públicas e expor o grotesco por
trás das decisões políticas e corporativas (agora mais do que nunca, com o
acúmulo dos meios de comunicação nas mãos de poucos). Mundo em que o assento do
poder parece ditar a política do Estado, e não as ideologias ou os votos do
eleitorado. Estranho mundo em que há uma guerra eterna contra um inimigo
invisível. [...]. A tendencia para o
autoritarismo (de esquerda ou de direita) persiste em nosso mundo orwelliano de
latifúndios midiáticos e de pressão para novos alinhamentos, agora em torno da
guerra eterna contra o inimigo invisível do terrorismo. O grito de George
Orwell para que nos acautelemos continua válido. Trechos extraídos do
artigo As distopias de George Orwell
(Cult, Ano VI, nº 71, 2003), do escritor Roberto
Sousa Causo.
FRACASSO HUMANO –[...] Este século é muito diferente do século 20.
Se compararmos o que eu vivenciei quando jovem, cheio de esperanças e
expectativas, com o que vivencio agora, em retrospecto, comparando, revisando
expectativas e esperanças, eu diria que estamos num estado de interregno. Esse
é o termo que gosto de usar. No “interregno”, não somos uma coisa nem outra. No
estado de interregno, as formas como aprendemos a lidar com os desafios da
realidade não funcionam mais. As instituições de ação coletiva, nosso sistema
político, nosso sistema partidário, a forma de organizar a própria vida, as
relações com as outras pessoas, todas essas formas aprendidas de sobrevivência
no mundo não funcionam direito mais. Mas as novas formas, que substituiriam as
antigas, ainda estão engatinhando. Não temos ainda uma visão de longo prazo, e
nossas ações consistem principalmente em reagir às crises mais recentes, mas as
crises também estão mudando. Elas também são líquidas, vêm e vão, uma é
substituída por outra, as manchetes de hoje amanhã já caducam, e as próximas
manchetes apagam as antigas da memória, portanto, desordem, desordem. [...] Trecho da
entrevista concedida pelo sociólogo polonês Zygmunt Bauman (1925-2017),
ao jornalista Marcelo Lins, do programa Milênio, da GloboNews. Veja mais aqui.
PECADO ORIGINAL
Ah, quem escreverá a história do que poderia
ter sido?
Será essa, se alguém a escrever,
A verdadeira história da humanidade.
O que há é só o mundo verdadeiro, não é nós,
só o mundo;
O que não há somos nós, e a verdade está aí.
Sou quem falhei ser.
Somos todos quem nos supusemos.
A nossa realidade é o que não conseguimos
nunca.
Que é daquela nossa verdade — o sonho à
janela da infância?
Que é daquela nossa certeza — o propósito à
mesa de depois?
Medito, a cabeça curvada contra as mãos
sobrepostas
Sobre o parapeito alto da janela de sacada,
Sentado de lado numa cadeira, depois de
jantar.
Que é da minha realidade, que só tenho a
vida?
Que é de mim, que sou só quem existo?
Quantos Césares fui!
Na alma, e com alguma verdade;
Na imaginação, e com alguma justiça;
Na inteligência, e com alguma razão —
Meu Deus! Meu Deus! Meu Deus!
Quantos Césares fui!
Quantos Césares fui!
Quantos Césares fui!
Poema extraído das Poesias de Álvaro de Campos – Fernando
Pessoa (Ática, 1993). Veja mais aqui.
Veja mais:
A arte musical de Marianna Leporace aqui.
&
A ARTE & ENTREVISTA DE
JANILSON SALES
[...]
O que podemos esperar da vida?
Nada além de uma colheita do que semeamos.