TRÍPTICO DQP –- O
sonho era ela e a vida... - Imagem: arte da
escultora e artista chinesa Luo Li Rong, ao som de Louise
(Erato/warner, 2007), do compositor francês Gustave Charpentier, na interpretação de Rita Gorr & Felicite
Lott, Orchestre Symphonique Opera Belgique, condutor Sylvain Cambreling. - Era ela
a mais linda do universo, a criatura mais perfeita. Uma menina sardenta que me
encantou à primeira vista. Não tínhamos mais que 10 anos de idade – ela nascera
no dia 18 e eu, 22 de abril do mesmo ano. Com ela a quentura da vida, um
precoce bigodinho e pelos nas axilas e púbis. Era a minha Anabel em carne e
osso, a Dolores idealizada e eu o Humbert Humbert, só que da mesma idade. Se eu
já tinha folheado o catecismo de Zéfiro,
as páginas do Kama Sutra e sarrado
com outras meninas e meretrizes, ela
era o meu ideal de vida e, por causa dela, levei sério a vida e comecei a
trabalhar, beber e fumar. Bastante requestada por sua lindeza, cada vez mais me
via impelido por aquela escultura helenística em carne viva: deusa grega que eu
sonhava vê-la nua em meus braços. Meus dedos de Donatello imaginavam correr a sua efígie, busto e quadris – todas as
linhas geográficas delineadas no meu afã de onírico Brancusi. Mais afoito, retribui seus beijos sardentos, tostado pela
volúpia. Os anos se passavam, a timidez reinava e ela cada vez mais atirada. Ousamos
abraços, embolamos na cama, até me convidou para tomar banho. Ousadia demais.
Estava tão obcecado que rompi e ela tomou um chá de inseticida recheado de
comprimidos. Retomamos e não durou, os ciúmes corroíam. Vieram viagens,
mudanças, a prisão da paixão. Emigrei para não mais voltar. Estava impregnado
dela, negando-me a todo custo. Aprendi a jogar xadrez, mas nunca cassei
borboletas de Zembla e nem tinha a mínima vocação para entomologista, muito
menos para charadista de truques simplórios, quanto mais para escritor, mas me
valia dos garranchos como se fosse um promissor Vasil Sirin-Shishkov e ela era
a quimera embalada pelas minhas histórias metidas a Sebastian Knitht, nos meus
versos de suposto John Francis Shade e nos meus inúmeros escritos perdidos de pretenso
Kimbote. Por ela eu vestia todas as máscaras e carapuças. Tornei-me camaleônico
e a roda da vida me fez depará-la quase 20 anos depois, um redemoinho no idílio
e uma canção. E ela, o tempo e tudo sepultado no passado.
A pessoa em questão... – Imagens
da artista polonesa Magdalena
Abakanowicz (1930-2017) – Li Lolita
na minha plena adolescência. E isso porque ouvia dos adultos sobre uma comédia
dramático-romântica de 1962, dirigida por Stanley Kubrick. Contavam de uma ninfeta muito flertiva mascando chicletes a
provocar a libido deles. Era a atriz estadunidense Sue Lyon (1946-2019) enfeitiçando o coração de muitos. O filme eu
só vi quase aos 30 anos e eu continuava enredado com as maestrias literárias do
autor, enquanto me encantava com a atuação da estrela. Confesso, bastante
provocante. Algumas décadas depois tentei rever e na exibição dei conta de
outro filme homônimo, do cineasta britânico Adrian Lyne, estrelado pela atriz estadunidense Dominique Swain.
A impressão foi a mesma, supremacia do livro. E dele ficou a frase de Nabokov: É preciso que seja um artista e um louco, uma criatura de infinita
melancolia, comum borbulhar de veneno no lombo e uma chama supervoluptuosa a
arder permanentemente na delicada espinha (oh, como a gente tem de se avultar e
ocultar-se!), para se discernir imediatamente, mediante sinais inefáveis...
Neste mundo implacável de entrecruzadas linhas de causa e efeito... E desde
que eu lera pela primeira vez, as pessoas, para mim, eram como se fossem seres
vigorosos e radiantes, sobressaindo-se os músculos corporais e exibindo nenhuma
cabeça.
Entre sopapos & carrancas – Muitas
vezes me surpreendi na vida. E uma das vezes foi quando vi de perto a obra da
artesã ceramista Ana das Carrancas,
dona Ana Leopoldina dos Santos (1923-2008), também conhecida como a Dama
do Barro, a Ana louceira e outros codinomes mais, com a sua arte expressa no
barro. Ela disse-me que começou com panelas de barro na feira e, depois de um
pedido devotado aos seus protetores, deu de cara com a imponência das carrancas
nas proas das embarcações do Francisco nordestino. Foi ali às margens do Velho Chico que nasceram as ideias para tirar do barro o que era de madeira e
transformá-las todas em obra de arte. Ao apreciá-las de perto e notá-las todas
com os olhos vazados, ouvi dela: O barro
é a minha vida, eu me sinto realizada com meu barro. Lá longe, ouvia-se Assum Preto, do mestre Luis Gonzaga: Mas Assum Preto, cego dos olhos, não vê a luz, ai, cantar de dor...
Até mais ver.