domingo, junho 27, 2021

EDWIN ROBINSON, JUAN SAUER, MARIA VELHO, HARRY PARTCH, ROB GONSALVES & SOM DA MADEIRA

 

 

TRÍPTICO DQP –- O espelho no travesseiro... - Ao som de Castor & Pollux - A Dance for the Twin Rhythms of Gemini (1952), do compositor estadunidense Harry Partch (1901-1974), na performance do Prism Quartet (2016) - Despertei, acho; ou não, sonhando, talvez. A cena, um libelo a céu aberto e eu não entendia o motivo para tanto, as causas desconhecidas, as ações injustificadas. O que é isso? Ali diante de mim militares truculentos desabrigavam desvalidos. Havia um rumor unânime: a pobreza é suspeita, dela sai latrocidas e outros facínoras. Será? Talvez não, alguém asseverou que era a secular proteção ao patrimônio criminoso dos suntuosíssimos privilégios dos deuses do mundo de hoje. Também acho. Sim ou não, no meio do pandemônio emergiu Bertha von Suttner: A organização militar da nossa sociedade foi fundada sob a negação da possibilidade de paz, desprezando o valor da vida humana e aceitando o desejo de matar. E passou a gritar: Abaixem suas armas: falem para todos, para todos! A guerra é a negação da evolução em todas as direções… Uma imensa ofensa cometida pelo homem de hoje contra o homem de amanhã! Apareceu quem a puxasse livrando-a de uma coronhada, de raspão. Afastei-me para não atingido. A tudo via: resmungos, estapeamentos, arrastados e ordens, uma desordem. Logo, ao lado, apareceu Voltairine de Cleyre engrossando as demandas gritantes: Deuses do Mundo! Suas bocas são idiotas! Suas armas falaram e são pó. Queimem as palavras vivas dos mortos escritas em vermelho. Escrito em vermelho, seu protesto está para os Deuses do Mundo verem! A classe trabalhadora tem de aprender, que seu poder não está necessariamente na força do voto! Empurrões e gestos obscenos, armas em riste. Era tudo muito confuso e eu sabia ali o espelho e o travesseiro: o que de mim diante da crueldade daqueles que pisam seus semelhantes, abrindo caminho às cotoveladas, tudo miseravelmente sujo pelas privações calamitosas, a cidade cheia de conjurações secretas e corrupção ubíqua desvelada fabulosamente, a desintegração da comunidade e a população derrotada pelos desmandos, esmagada entre belicosos, este o porvir. Sei mais nada. Foi Ambrose Bierce quem me alertou: A política é a condução dos negócios públicos para proveito dos particulares. Trouxe-me para um canto e confidenciou: Prudente: um homem que acredita em dez por cento daquilo que ouve, num terço daquilo que lê e em metade daquilo que vê. Assenti como se entendesse e nem ouvia direito a cena atroz, cotidiano para o noticiário. E cá comigo: quantos eus, quantas vidas.

 


Dois mundos aterram-me... - Imagem: arte do artista canadense Rob Gonsalves (1959-2017) – O que de real parece sonho, confundo datas e momentos. A vida é quase a mesma desde que nasci: loucura minha na confusão de outrora e agora - o mundo e seus imperativos ásperos. Restava-me ao menos só e, ao que parece, quase feliz, talvez. Inventei o diário nas minhas horas intermitentes: garranchos rascunhados, nem sei para o que servia. Foi a escritora portuguesa Maria Velho da Costa (1938-2020) quem me deu o mote: Sabe, durante muitos anos mantive um diário. Não que o tenha estudado ou pensado muito, mas uma coisa de que estou convencida é que ao registar por escrito os dias, é como se a memória se desobrigasse. Ouvi e a ela disse da intuição, simples associação livre e isso enquanto eu me via na pele do poeta estadunidense Edwin Arlington Robinson (1869-1935): O mundo não é uma prisão; é um jardim espiritual de crianças, onde milhões de pequenos desnorteados procuram formar a palavra “Deus” com letras erradas. E eu claudicava entre étimos, enquanto elucubrava no meio de solecismos. Estava deveras perdido. Nessa hora o escritor Juan José Sauer (1937-2005) me socorreu: O momento presente não tem outro fundamento a não ser seu parentesco com o passado. E eu não sabia como lidar com tudo isso, havia de fugir na invisibilidade.

 


O defunto LAM... - Imagem: arte da pintora e escritora estadunidense Bunny Pearlman & ao som de Paradoxo, do álbum De ponta cabeça (2015), de Renato Bandeira & Som da Madeira - Ah, seguinte: morri há uns cinco anos, por aí; na verdade, quase seis: um golpe no meu país varou meu coração. Só anteontem me dei conta: não era invisível coisa nenhuma. Era a certidão: bati as botas, de mesmo. Tá. Ainda bem que não tenho mausoléu, nem túmulo algum, muito menos necrológio ou epitáfio: como dissolvi no éter, não sobraram nem cinzas, graças – menos trabalho pros familiares. Como tudo se parecia como se eu estivesse nas páginas do Agá de Hermilo, fiz tal H. G. Wells e lavrei meu auto-obituário ou faz de conta, já tinha ido pro saco mesmo, ora. Era coisa tipo as memórias de Brás do Machado, só que sem valia alguma. Pudera, do que fiz durante a existência, na prova dos nove, dava nada. Além do mais, eu passava e ninguém me via – razão pela qual me achava invisível. Entretanto, mesmo assim, saudava a todos: Bom dia para os defuntos de Scorza. E, com o Literatura: primeiro território livre da América (Mariátegui, 2006), foi ele mesmo quem me disse: As estruturas de poder repousam na infraestrutura da palavra e, ao revés, somente a palavra pode corroer a estrutura de poder. Nenhuma mudança, nenhuma revolução é possível sem imaginações redutíveis às palavras. Para conquistar o paraíso requer imaginá-lo. Ah, do que imaginei, tudo se apagou. E fiquei mudo – logo eu que tinha a língua pelo cotovelo -, tímido, lacônico, esquivo. Relegado ao esquecimento, fugia das palavras hostis, mergulhado em nenhuma contrição de meus fracassos transpassados por sonhos triunfantes. E se parecia tudo muito penoso, não era: quem eu via parecia mais morto que eu. Como durante toda a vida me valia das encontradiças ninfas e bacantes, era o que havia de bom ou sobrava por troco, enquanto gozava da reputação de anarquista por dias sombrios, degenerado pelos detratores. Passou. O que tirei de mim foi a verificação de, mesmo tendo andado mundo afora, jamais transpus os muros do jardim. E foi justamente por isso que voltei à terra natal: um insuportável regresso, qual convalescente. E se fui recusado pelas minhas ilusões mais vãs, não podia mais dormir nem trabalhar, aterrorizado pelo passado que sequer lembrava e temendo o futuro que jamais verei. Coisa de doido. Apesar de tudo, mantenho minha férrea força de vontade diante das adversidades, afinal, como já estiquei as canelas faz tempo, ainda me rio de tudo isso. Até mais ver.

 

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KARIMA ZIALI, ANA JAKA, AMIN MAALOUF & JOÃO PERNAMBUCO

  Poemagem – Acervo ArtLAM . Veja mais abaixo & aqui . Ao som de Sonho de magia (1930), do compositor João Pernambuco (1883-1947), ...