TRÍPTICO DQP –- O
espelho no travesseiro... - Ao som de Castor & Pollux - A Dance for the Twin Rhythms of Gemini (1952), do compositor estadunidense Harry Partch (1901-1974), na performance do Prism Quartet (2016) - Despertei, acho; ou não, sonhando, talvez. A
cena, um libelo a céu aberto e eu não entendia o motivo para tanto, as causas
desconhecidas, as ações injustificadas. O que é isso? Ali diante de mim militares
truculentos desabrigavam desvalidos. Havia um rumor unânime: a pobreza é
suspeita, dela sai latrocidas e outros facínoras. Será? Talvez não, alguém
asseverou que era a secular proteção ao patrimônio criminoso dos suntuosíssimos
privilégios dos deuses do mundo de hoje. Também acho. Sim ou não, no meio do pandemônio
emergiu Bertha von Suttner: A organização militar da nossa sociedade
foi fundada sob a negação da possibilidade de paz, desprezando o valor da vida
humana e aceitando o desejo de matar. E passou a
gritar: Abaixem suas armas:
falem para todos, para todos! A guerra é a negação da evolução em todas as
direções… Uma imensa ofensa cometida pelo homem de hoje contra o homem de
amanhã! Apareceu quem a puxasse livrando-a de uma coronhada, de raspão. Afastei-me
para não atingido. A tudo via: resmungos, estapeamentos, arrastados e ordens,
uma desordem. Logo, ao lado, apareceu Voltairine de Cleyre engrossando as demandas gritantes: Deuses do Mundo! Suas bocas são idiotas! Suas armas falaram e são pó.
Queimem as palavras vivas dos mortos escritas em vermelho. Escrito em vermelho,
seu protesto está para os Deuses do Mundo verem! A classe
trabalhadora tem de aprender, que seu poder não está necessariamente na força
do voto! Empurrões e gestos obscenos, armas em
riste. Era tudo muito confuso e eu sabia ali o espelho e o travesseiro:
o que de mim diante da crueldade daqueles que pisam seus semelhantes, abrindo
caminho às cotoveladas, tudo miseravelmente sujo pelas privações calamitosas, a
cidade cheia de conjurações secretas e corrupção ubíqua desvelada fabulosamente,
a desintegração da comunidade e a população derrotada pelos desmandos, esmagada
entre belicosos, este o porvir. Sei mais nada. Foi Ambrose Bierce quem me alertou: A política é a condução dos negócios públicos para proveito dos
particulares. Trouxe-me para um canto e confidenciou: Prudente: um homem que acredita em dez por cento daquilo que ouve, num
terço daquilo que lê e em metade daquilo que vê. Assenti como se entendesse
e nem ouvia direito a cena atroz, cotidiano para o
noticiário. E cá comigo: quantos eus, quantas vidas.
Dois mundos aterram-me... - Imagem:
arte do artista canadense Rob Gonsalves
(1959-2017) – O que de real parece sonho, confundo datas e momentos. A vida é
quase a mesma desde que nasci: loucura minha na confusão de outrora e agora - o
mundo e seus imperativos ásperos. Restava-me ao menos só e, ao que parece,
quase feliz, talvez. Inventei o diário nas minhas horas intermitentes: garranchos
rascunhados, nem sei para o que servia. Foi a escritora portuguesa Maria Velho da Costa (1938-2020) quem
me deu o mote: Sabe, durante muitos anos
mantive um diário. Não que o tenha estudado ou pensado muito, mas uma coisa de
que estou convencida é que ao registar por escrito os dias, é como se a memória
se desobrigasse. Ouvi e a ela disse da intuição, simples associação livre e
isso enquanto eu me via na pele do poeta estadunidense Edwin Arlington Robinson (1869-1935): O mundo não é uma prisão; é um jardim espiritual de crianças, onde
milhões de pequenos desnorteados procuram formar a palavra “Deus” com letras
erradas. E eu claudicava entre étimos, enquanto elucubrava no meio de solecismos.
Estava deveras perdido. Nessa hora o escritor Juan José Sauer (1937-2005) me socorreu: O momento presente não tem outro fundamento a não ser seu parentesco
com o passado. E eu não sabia como lidar com tudo isso, havia de fugir na invisibilidade.
O defunto LAM... - Imagem:
arte da pintora e escritora estadunidense Bunny
Pearlman & ao som de Paradoxo,
do álbum De ponta cabeça (2015), de Renato Bandeira & Som da Madeira - Ah,
seguinte: morri há uns cinco anos, por aí; na verdade, quase seis: um golpe no
meu país varou meu coração. Só anteontem me dei conta: não era invisível coisa
nenhuma. Era a certidão: bati as botas, de mesmo. Tá. Ainda bem que não tenho
mausoléu, nem túmulo algum, muito menos necrológio ou epitáfio: como dissolvi
no éter, não sobraram nem cinzas, graças – menos trabalho pros familiares. Como
tudo se parecia como se eu estivesse nas páginas do Agá de Hermilo, fiz tal H. G. Wells e lavrei meu auto-obituário
ou faz de conta, já tinha ido pro saco mesmo, ora. Era coisa tipo as memórias
de Brás do Machado, só que sem valia alguma. Pudera, do que fiz durante
a existência, na prova dos nove, dava nada. Além do mais, eu passava e ninguém me
via – razão pela qual me achava invisível. Entretanto, mesmo assim, saudava a
todos: Bom dia para os defuntos de Scorza. E, com o Literatura: primeiro território livre da América (Mariátegui, 2006), foi
ele mesmo quem me disse: As estruturas de poder repousam na infraestrutura da palavra e, ao
revés, somente a palavra pode corroer a estrutura de poder. Nenhuma mudança,
nenhuma revolução é possível sem imaginações redutíveis às palavras. Para
conquistar o paraíso requer imaginá-lo. Ah, do que imaginei, tudo se
apagou. E fiquei mudo – logo eu que tinha a língua pelo cotovelo -, tímido,
lacônico, esquivo. Relegado ao esquecimento, fugia das palavras hostis,
mergulhado em nenhuma contrição de meus fracassos transpassados por sonhos
triunfantes. E se parecia tudo muito penoso, não era: quem eu via parecia mais
morto que eu. Como durante toda a vida me valia das encontradiças ninfas e
bacantes, era o que havia de bom ou sobrava por troco, enquanto gozava da reputação
de anarquista por dias sombrios, degenerado pelos detratores. Passou. O que
tirei de mim foi a verificação de, mesmo tendo andado mundo afora, jamais transpus
os muros do jardim. E foi justamente por isso que voltei à terra natal: um insuportável
regresso, qual convalescente. E se fui recusado pelas minhas ilusões mais vãs,
não podia mais dormir nem trabalhar, aterrorizado pelo passado que sequer lembrava
e temendo o futuro que jamais verei. Coisa de doido. Apesar de tudo, mantenho minha
férrea força de vontade diante das adversidades, afinal, como já estiquei as
canelas faz tempo, ainda me rio de tudo isso. Até mais ver.