quarta-feira, junho 23, 2021

FRANÇOISE SAGAN, ALÍCIA DUARTE PENNA, ANZANELLO CARRASCOZA, SIMOA & VALUNA

 

 

TRÍPTICO DQP –- Uma vez & ela... - Ao som do Harpconcerto - E minor op. 182 (1884), do compositor alemão Carl Reinecke (1824-1910), na interpretação da harpista belga Anneleen Lenaerts, Symfonieorkest Vlaanderen, regência de Jan Latham-Koenig - Deitei a cabeça ao travesseiro e era a Nascente do Bacuna, noutro lugar do agreste. Eu que vivia na mata, estava agora no descampado escuro e senti o toque de uma mão de mulher ao meu braço. Virei-me imediatamente e quem era ela, olhos vivos e um sorriso amável. Segurando a minha mão, me fez seguir o trajeto das estrelas. Sua cadenciada passada enfeitiçava a paragem até repousar numa pedraria para que eu sentisse o reinado da lua. Na verdade, ela que reinava ali. Então me disse ser Simoa, a filha mameluca de Kariri e do cabo Miguel do sítio da Tapera do Garcia, neta do desalmado bandeirante que desmantelou Palmares. Teve uma infância feliz e, moça feita, casou-se com o coronel Manoel, com quem viveu e logo enviuvou. E do sítio fez uma fazenda e me fez presenciar a distribuição de alforrias pros quilombolas ajoelhados ao seu redor. Ela levantou-se, foi até eles, chamou a escrava Domingas e fê-la buscar-me para mais perto dela. Todos se curvaram em sinal de respeito e homenagem, e ela se despediu como se jogasse beijos de flores para todos. E me levou por um caminho na noite escura e, nas proximidades de uma gruta, virou-se, apertou-me ofegante contra o peito, encostou sua face à minha, sua carne latejava, sua língua lambia meus lábios, sua boca devoradora a me beijar como se me levasse por Unhanhu, atravessando o sítio do Saco do Tapuia, até a barra do riacho Cajueiro, para que eu visse no seu seio correr o rio Mundaú. Repousou minha mão sobre o seu ventre e me fez conhecer o córrego do Culumin até chegar num local às margens do rio Canhoto para lá me arranchar e souber que foi ali que ela nasceu e queria me amar, porque eu era o notívago perdido pelas altas horas que daria para ela a eternidade. E me contou da viúva Secunda, aquela que foi acometida de doença grave e levada num carro de boi para sepultada pelo carreiro que, depois do enterro, também foi vitimado da mesma doença dela e morreu. Não, não era ela, porque me queria por ser a matriarca que reluzia no céu das Sete Colinas de Ronildo Maia Leite, com as ilustrações da sua gestação na arte de Sérgio Lemos, perpetuada na pintura de Renato Pantaleão e nas gravuras de Renato Silva. E era mesmo, porque naquele momento ela ascendeu encoberta pelos véus e, antes do amanhecer, desceu desnuda ao Brejo das Flores e me fez nela emergir a cidade.

 


Dois espelhos num só... - Imagem: Espelho diário de Rosângela Rennó. – Ela estava todo dia, no espelho. Conversas desconexas de eus e outras, convivência dela em mim. Vez em quando assaltava minha cama para me dizer um trecho do Morituri mortuis (Por uma vida sem catracas!), da Alícia Duarte Penna: A hora do enterro é, ainda, a hora da morte, que ainda será a da visita ao túmulo (nos Finados, nos aniversários, nas saudades). Fica na terra, da morte, das mortes, ainda um lugar, sempre o mesmo, a que se volta. E me dizia para que eu pudesse suportar o genocídio do desgovernado Fecamepa: milhares por dia sucumbiam e a irresponsabilidade doía e sangrava aqui, ali e acolá. De repente ela trouxe o bailarino e coreógrafo francês Patrick Delcroix: O espelho nos dá todo dia a mesma imagem, mas o que você vê não é sempre o que você sente, a sua imaginação pode levá-lo muito longe, porém o espelho não mente, o reflexo é sempre o mesmo. Ela sorriu e se fez Reflexos do Espelho como se estivéssemos no palco da Cisne Negro, para sussurrar ao meu ouvido um trecho de Por uma contradisciplina da história (UFPE, 2016), da professora e jornalista Christine Greiner: A dança, de certa forma, sempre soube este oficio de narrar cartografando memórias, uma vez que as suas histórias sempre foram histórias do corpo, do movimento e das singularidades das formas de vida. E dançamos até nos esquecer de tudo e de nós.

 


Três danças no espelho... - Imagem: Reflexo no Espelho (2004), da Cisne Negro Companhia de Dança - Amanheci com seus beijos de Sol, a me dizer Françoise Sagan: Amar não é somente querer, é sobretudo compreender. Amei até a loucura.  O que chamam de loucura é, para mim, a única forma sensata de amar... E falou de vida e flores, de rios e ontens, de gente e de nada, para que eu soubesse que de seu corpo toda a vitalidade e razão de viver. Já entardecia e ela era Valuna quando ela me chamou atenção para uma frase do escritor e professor João Anzanello Carrascoza: Somos todos histórias que se misturam, se alteram e se acabam. E me beijou atravessando a noite madrugada adentro para me ensinar o dia imenso de viver e amar. Até mais ver.

 

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