TRÍPTICO DQP –- Uma
vez & ela... - Ao som do Harpconcerto
- E minor op. 182 (1884), do
compositor alemão Carl Reinecke (1824-1910), na interpretação da
harpista belga Anneleen Lenaerts, Symfonieorkest
Vlaanderen, regência de Jan Latham-Koenig - Deitei
a cabeça ao travesseiro e era a Nascente do Bacuna, noutro lugar do
agreste. Eu que vivia na mata, estava agora no descampado escuro e senti o
toque de uma mão de mulher ao meu braço. Virei-me imediatamente e quem era ela,
olhos vivos e um sorriso amável. Segurando a minha mão, me fez seguir o trajeto
das estrelas. Sua cadenciada passada enfeitiçava a paragem até repousar numa
pedraria para que eu sentisse o reinado da lua. Na verdade, ela que reinava
ali. Então me disse ser Simoa, a
filha mameluca de Kariri e do cabo Miguel do sítio da Tapera do Garcia, neta do
desalmado bandeirante que desmantelou Palmares. Teve uma infância feliz e, moça
feita, casou-se com o coronel Manoel, com quem viveu e logo enviuvou. E do
sítio fez uma fazenda e me fez presenciar a distribuição de alforrias pros
quilombolas ajoelhados ao seu redor. Ela levantou-se, foi até eles, chamou a
escrava Domingas e fê-la buscar-me para mais perto dela. Todos se curvaram em sinal
de respeito e homenagem, e ela se despediu como se jogasse beijos de flores
para todos. E me levou por um caminho na noite escura e, nas proximidades de
uma gruta, virou-se, apertou-me ofegante contra o peito, encostou sua face à
minha, sua carne latejava, sua língua lambia meus lábios, sua boca devoradora a
me beijar como se me levasse por Unhanhu, atravessando o sítio do Saco do
Tapuia, até a barra do riacho Cajueiro, para que eu visse no seu seio correr o
rio Mundaú. Repousou minha mão sobre o seu ventre e me fez conhecer o córrego do
Culumin até chegar num local às margens do rio Canhoto para lá me arranchar e
souber que foi ali que ela nasceu e queria me amar, porque eu era o notívago
perdido pelas altas horas que daria para ela a eternidade. E me contou da viúva
Secunda, aquela que foi acometida de doença grave e levada num carro de boi
para sepultada pelo carreiro que, depois do enterro, também foi vitimado da
mesma doença dela e morreu. Não, não era ela, porque me queria por ser a matriarca
que reluzia no céu das Sete Colinas
de Ronildo Maia Leite, com as
ilustrações da sua gestação na arte de Sérgio Lemos, perpetuada na pintura de
Renato Pantaleão e nas gravuras de Renato Silva. E era mesmo, porque naquele momento
ela ascendeu encoberta pelos véus e, antes do amanhecer, desceu desnuda ao Brejo
das Flores e me fez nela emergir a cidade.
Dois espelhos num
só... - Imagem: Espelho
diário de Rosângela Rennó. – Ela
estava todo dia, no espelho. Conversas desconexas de eus e outras, convivência
dela em mim. Vez em quando assaltava minha cama para me dizer um trecho do Morituri mortuis (Por uma vida sem catracas!),
da Alícia Duarte Penna: A hora do enterro é, ainda, a hora da morte, que ainda será a da visita
ao túmulo (nos Finados, nos aniversários, nas saudades). Fica na terra, da
morte, das mortes, ainda um lugar, sempre o mesmo, a que se volta. E me
dizia para que eu pudesse suportar o genocídio do desgovernado Fecamepa: milhares por dia sucumbiam e
a irresponsabilidade doía e sangrava aqui, ali e acolá. De repente ela trouxe o
bailarino e coreógrafo francês Patrick
Delcroix: O espelho nos dá todo dia a
mesma imagem, mas o que você vê não é sempre o que você sente, a sua imaginação
pode levá-lo muito longe, porém o espelho não mente, o reflexo é sempre o mesmo.
Ela sorriu e se fez Reflexos do Espelho
como se estivéssemos no palco da Cisne
Negro, para sussurrar ao meu ouvido um trecho de Por uma contradisciplina da história (UFPE, 2016), da professora e
jornalista Christine
Greiner: A dança, de certa forma,
sempre soube este oficio de narrar cartografando memórias, uma vez que as suas
histórias sempre foram histórias do corpo, do movimento e das singularidades
das formas de vida. E dançamos até nos esquecer de tudo e de nós.
Três danças no espelho... - Imagem: Reflexo no Espelho (2004), da Cisne Negro Companhia de Dança - Amanheci
com seus beijos de Sol, a me dizer Françoise Sagan: Amar não é somente querer, é
sobretudo compreender. Amei até a loucura. O que chamam de loucura é, para mim, a única
forma sensata de amar... E falou de vida e flores, de rios e ontens, de
gente e de nada, para que eu soubesse que de seu corpo toda a vitalidade e
razão de viver. Já entardecia e ela era Valuna
quando ela me chamou atenção para uma frase do escritor e professor João Anzanello Carrascoza: Somos todos histórias que se misturam, se
alteram e se acabam. E me beijou atravessando a noite madrugada adentro
para me ensinar o dia imenso de viver e amar. Até mais ver.