TRIPTICO DQP – Uma: a morte no espelho... - Ao som da Harold in Italy - Symphony in Four Parts with Viola Obbligato (1834), op. 16, H. 68, do
compositor francês Hector Berlioz (1803 - 8
de março de 1869), na interpretação da violista japonesa Nobuko Imai & London Symphony
Orchestra, regência de Kazuki Yamada.
– Que coisa! Anteontem foi um general,
ontem um ladrão e hoje, imagine: a
morte. Pode? Agora deu. Logo me vi naquela antológica cena do Sétimo selo - Det
sjunde inseglet, do
Bergman: era nada mais que Bengt Ekerot,
disfarçado de monge da morte: presente por todo lado no cadáver do pastor e na
dança macabra do afresco da igreja numas imagens que flutuavam por trás dele.
Tinha outro espelho para invadir não? E logo me tratou como se eu fosse o
quixote Block, na verdade, um ladrão de joias dos mortos, sem a presença do fiel
escudeiro Jons, e que havia encabeçado a procissão dos flagelados, convencido por um decadente
de que devia partir para a cruzada, agora retornando para dar de cara com o quadro desolador
da sindemia: a violência nas ruas, a ira dos religiosos imprimindo medo e cura,
a fumegante tortura e o desespero dos flagelados, o hecatombe com todos os
malefícios da humanidade: todos matam e enriquecem em nome de um deus que nunca
reconheci. Por trás dele vi o voo da águia e, logo em seguida, o som das guerras, bombas, discórdias, genocidas do agronegócio, o
holocausto. Deus está longe,
mas o diabo está por todo lado – foi o que ele sussurrou. O meu interlocutor
sorria e diante das suas sombrias predições, propus um jogo de xadrez. Depôs o
tabuleiro na hora, enquanto imaginava a minha antipatia com a escatologia cristã porque alguém -
sabe-se lá quem - desatou os seus sete selos apocalípticos: a morte está caçando
os vivos e algo me diz que o mundo será dizimado
gradualmente pela peste. Ouvia lá longe não sei quem, nem onde e muito menos pra quê, alguém se
manifestava pregando a punição em nome do sagrado. Ora, bolas! O que há de
moribundo e desespero: o agouro implacável. Enquanto
jogávamos falou-me do sentido da vida e da morte, como se eu fosse o cavaleiro que voltou da cruzada da fé
e havia encontrado o sétimo selo e o medo: um visitante inesperado com a
personificação mortal para vencê-la. Foi na vida, a experiência para
enfrentá-la. Encarou, então, meu destemor como um escárnio e me expôs a imagem
daquela escultura de um túmulo do Poblenou, em Barcelona: El Beso de La Muerte (1930), atribuída a Jaume
Barba ou Joan Fontbernat, com um epitáfio de Jacint Verdaguer: E seu jovem coração não pode ajudar; / Em suas
veias o sangue para e congela / E o encorajamento perdido a fé abraça / Cai
sensível aos braços da morte. Ao recitá-lo a música
me envolveu com a imagem e senti que alguém se aproximava. Era Berlioz: Na vida de um artista, às vezes um trovão segue-se
rapidamente a outro... Eu acabara de receber as sucessivas revelações de
Shakespeare e Weber. Agora, noutro ponto no horizonte, vi surgir a forma
gigantesca de Beethoven. O choque foi quase tão grande quanto o de Shakespeare.
Beethoven abriu diante de mim um mundo novo da música, tal como Shakespeare
revelara um novo universo de poesia. Hem? Virei-me para vê-lo e era
Bergman com um meio sorriso: Quando eu era jovem, eu tinha muito medo de
morrer, mas agora penso que é muito, muito sábio se preparar. É como uma luz
que se extingue. É preciso aprender a viver. Eu treino todos os dias. Todos
precisam aprender a viver. A cada dia, me esforço um pouquinho. A dificuldade
principal está em saber quem eu sou e onde estou. É como procurar na escuridão.
Se alguém me amasse como sou, talvez, finalmente, me pudesse encontrar. Era como se toda cena fosse ao final, no qual só o casal de atores da trupe
mambembe escapava, tudo o mais estava perdido: apenas o Sol brilhava no horizonte abrindo caminho para a
vida. Sei não.
Dois beijos na
princesa do escultor de Trilussa - Imagem: a
polêmica escultura O idílio ou Beijo
eterno (1922), do escultor sueco William
Zadig (1884-1952), recolhida em 1936; instalada depois em 1956, no Largo do
Cambuci e, depois, reinstalada na entrada do túnel 9 de Julho, e, finalmente,
em 1966, no Largo de São Francisco, em frente à Faculdade de Direito, em São
Paulo, representando um francês e uma índia, em referência à obra de Olavo Bilac. – Sardenilza é uma
daquelas moças que nasceu com a bunda pra lua e para admiração de todos. Desde a
hora que nasceu, seus familiares apelidaram logo de priquituda, devido
descomunal desenvolvimento do seu capô de fusca: Essa menina é só boceta,
gente! Mas com o tempo, ela foi tomando jeito e, na adolescência, as suas
proporções corporais foram distribuídas, removendo de vez o apelido de
infância. Com o tempo passou a ser a gostosuda da cidade, ganhando a simpatia
dos marmanjos e se ajeitando na vida com a sua própria beleza. Muitos pretendentes
gastaram fortunas para serem contemplados com o seu sim num casório, enquanto ela
permanecia solteiríssima e cobiçada. Um dia lá, desfilava no seu conversível,
quando perdeu o controle e achou de esfregar a face num poste. Ficou desfigurada.
Era uma vez uma beldade: tornou-se a coisa mais feia do mundo. E agora? Sai pra
lá, jaburu! Um admirador, o Jadonaldo, que não tinha nem onde cair morto, foi a
salvação: cedeu seus glúteos para reembelezá-la numa cirurgia de horas. Em compensação,
o desbundado foi contratado como seu motorista particular. Ao reaparecer, filas
e alvoroços para a banda dela. Sem saber o que acontecia, procurei saber do
primeiro que encontrei: Hehehehe! É fila dos machos que querem beijar a
boazuda. Não havia entendido a risada dele, só com relato que coincide com a
história contada pelo Trilussa – na verdade,
o escritor satírico italiano Carlos
Alberto Salustri (1871-1950) -, no seu conto O beijo do escultor: Fui
submetido a uma operação delicada e dolorosa. Devo dizer que sofri tudo de boa
vontade, para agora ter a compensação de haver retribuído pessoalmente com a
conservação da beleza do rosto da minha senhora. Pois é, é do sofrimento de
um que aparece a felicidade de outro e finda tudo empatado. Vá entender.
Três sustos nos
semáforos do Recife... – Imagem de Heraldo Cunha ao som de Luiz Bandeira: Voltei, Recife,
foi a saudade que me trouxe pelo braço... - Sempre transitei
pela Pracinha do Diário, era meu caminho ao largar do trabalho no Cais do
Apolo, rumo à Livro 7. Isso até os anos 1990, mais ou menos, quando arribei
estrada mundo afora. Não sabia eu que 30 anos depois, a coisa mudara, e muito. A
cada passada pela faixa de pedestres nos semáforos, refazendo o itinerário, eu
tinha um susto. Certas abordagens não chegaram a ser de fato, mas bem que
passaram para premiar outro transeunte, cuidava para estar pronto na minha
hora. Hoje não tem mais a livraria predileta, nem condição de se andar certas
horas pelo itinerário que eu costumava fazer todos os dias do final dos anos 1970
até quando fui embora. Para minha sorte nunca fui assaltado. Consegui chegar
ileso no nono andar do Pernambuco, aboletando-me no sofá e pegando o primeiro
livro que estava ao alcance: era o volume Trabalho
precário no meio urbano: semáforos do Recife (Fundaj/Massangana, 2007),
coordenado por Tarcísio Patrício de Araújo,
flagrando esta parte do texto: [...] uma
ideia das condições de vida das pessoas que trabalham nos semáforos de Recife,
um contingente que tem crescido [...] uma
alternativa à impossibilidade de inserção no mercado formal [...] consequência direta da insuficiência de absorção
de mão-de-obra pelo mercado de trabalho formal. [...]. Fui até a janela,
olhei pros lados, todos os prédios antes reconhecidos de grande movimento,
todos abandonados. Bem, a Guararapes não é mais a mesma, nem a Boa Vista. Outros
tempos, até mais ver.