TRÍPTICO DQP –- Umas
e outras tiradas do espelho - Ao som de Um
tributo ao contrabaixo (2014), da compositora, pianista e psicóloga Silvia de Lucca, na interpretação do Quinteto Puelli, formado por Karin Fernandes (piano), Adriana Holtz
(violoncelo), Luis Amato (violino), Anderson Fernandes (viola), Alexandre Rosa
(contrabaixo), no Centro Cultural de São Paulo, 2014. - O que
aconteceu? Sei lá! Estava eu enredado com o Espelho
cego (Companhia das Letras, 2000), do escritor austríaco Robert Menasse. Como assim? Lá estava
eu em Viena, na pele do aspirante a filósofo, Leo Singer, e às voltas com a paixão
pela musa, Judith Katz, que sequer se dera conta de mim. Pudera, um sujeito
pobre e feio, sobrecarregado de grilos nas ideias um tanto estouvadas, às
tentativas até então inúteis de conquistá-la, jogando-me para ela como quem
tomou água de chocalho nas inúmeras páginas de livros. A esperança residia no seu
riso generoso, decerto que não escondia sua errática condição de existencialista
romântica, o que tornava o idílio minado por meus tropeços intelectuais. Tudo fiz,
tanto pelejar. Daqui pracolá a minha efigie borrou e queimado o filme, ela arrefeceu
e tudo desmoronou: autoestima para a lata do lixo, gargalhadas pelas costas. E eu
mergulhado nas circunstâncias de um Brasil golpeado, sem conseguir escapar, maior
embotamento: impossível ser feliz debaixo de vacilações e fraquezas, misturando
o que vivo e o que penso e dá no mesmo, a mesma coisa: o passado que anima a
crueldade do presente. Só que o tempo não espera e eu me valho do que penso,
nada deu nem dará certo. Deu-se então de o próprio autor dar as caras assim do
nada, a me dizer de uma outra obra sua, A
capital (Dom Quixote, 2019): Haverá
arte que seja importante numa época, mas que depois seja, e com razão,
esquecida? Não entendi. E como um cético refletindo sobre os fantasmas do
seu tempo, em cima da bucha, ele sentenciou: Posso ter uma pátria sem ser nacionalista. Ouvi coisa parecida de Jarauta nalgum lugar, me parece. Ele deu
de ombros, virou-se e fiquei a reboque da surpresa. Parecia que voltava, mas não,
a chegada repentina da escritora irlandesa Jean Iris Murdoch
(1919-1999), como se soubesse de tudo que se passara comigo: O amor é a compreensão extremamente difícil
de que algo diferente de si mesmo é real. O amor e a arte e a moral são a
descoberta da realidade. Um dos segredos de uma vida feliz é a sucessão de
pequenos prazeres. O desejo esmagador de um corpo humano por outro em
particular, e sua indiferença aos outros é um dos maiores mistérios da vida.
E eu fisguei o seu olhar sem saber o que fazer naquela hora. Ela sorriu
percebendo meu embaraço. Só podia transcender: o mergulho no espelho.
Duas ou mais coisas do travesseiro - Imagem:
arte do quadrinista, artista plástico, escritor e arte-educador Nestor
Isejima Lampros,
ao som de Songs from my
Heart: Morigasaki kaiigan - Melody, opus 279; Haha - Fantasy, opus 273; e.
Ningen kakumei no uta/Sekai kofu no uta - Paraphrase, opus 272, do compositor,
pianista, musicólogo e pedagogo Amaral Vieira, live performance
at Tokyo Metropolitan Art Theater, 2010. - Entre um pulo de susto e o
tombo de uma topada, vi Desidério quase se esparramar no chão da calçada. Segurei
firme e ele se restabeleceu. Olhou para mim e como um bom cristão que era, sabia-se
pecador e, por isso mesmo, corruptível, muito embora fincasse pé e não
arredasse um centímetro de nada apalavrado, dito seu era líquido e certo. Ele temia
os mortos e se assustava com facilidade aos trovões e relâmpagos, para ele,
fúria do de lá de cima com alguma falta inadvertida. Como bom devoto, ele se
benzia e batia três vezes na madeira mais próxima, nem faltava à missa
domingueira para redimir seus pecados, lavando a alma na hóstia. Era bastante
cuidadoso, mas resolvia tudo no sopapo - refletir não era lá o seu forte,
pensava como um papa-capim num galho de laranjeira. Mas decidia, nisso era
vaidoso, doesse em quem fosse, só ele pagava o pato no final, coitado. Nunca
achou pérola em ostra e amealhou algum pé de meia oriundo de seus proventos de
exemplar funcionário púbico, nada mais. Posava de probo inarredável: um
assombrado que vivia como se usasse eternamente fraque. Vez em quando chato
empolado, castigando falsa eloquência nos esses e erres, como se quisesse falar
o que nunca conseguia dizer, o juízo atrapalhava. Atrás de um rabo de saia
fácil não era lá tão escrupuloso assim. E se dizia e fazia questão de ser
elevado em tudo, embutia na face amável o íntimo de papel de enrolar prego,
pura tagarelice de só se render diante da exaustão da causa. Encarou na vida as
ironias da realidade e teve de podar os desejos, viu-se a sombra de uma sombra.
Olhou-me ali segurando o seu tombo na esquina, então, abraçou-me, deitou a
cabeça ao meu ombro e chorou. O que houve? Afastou-se, fitou-me fundo aos olhos
e saiu. Ao meu lado a jurista e ativista iraniana exilada, Shirin Ebadi compreendeu: A beleza da vida está em lutar contra as situações difíceis. Comparo minha situação com a de uma pessoa a bordo de um
navio. Quando ocorre um
naufrágio, o passageiro cai no oceano e não tem escolha a não ser continuar
nadando. O que aconteceu em nossa
sociedade foi que as leis derrubaram todos os direitos das mulheres. Eu não tive escolha. Eu não conseguia me
cansar, não conseguia perder as esperanças. Eu não posso me dar ao luxo de fazer isso. Solidário, sabia todos nós exilados: a cabeça
desamparada ao travesseiro.
Três pulos e outras tantas para nada... - Ao
som de Lembrança de um beijo, do
álbum homônimo (1994), do saudoso cantor e compositor Acioli Neto (1950-2000). - Lá estou eu pelos grafites das ruas assobiando
o Recife. Errava sem pressa até que a poeta francesa Leslie Kaplan apareceu e sacou um verso do seu L’Enfer est vert (Luna Parque, 2018): Quem é você, palavra,/ e o que é que você
quer dizer... E o inferno, será que se agarra o inferno/ não, não se agarra, se
experimenta/ como é que se faz para experimentar sem conhecer? Não sei, mas
se quiser eu topo! E veio quando o Sol abriu o dia na Guararapes como se fosse qualquer
lugar no mundo, misturando as pernas e braços no meio do maracatu rural Piaba de Ouro, com os folguedos do
cavalo marinho pelo Cais de Santa Rita, coco por Afogados, ciranda pela
Imbiribeira, brincante pela tarde como dama e eu galante no Boi Matuto e às lorotas do Mamulengo Alegre, se aprontando pro
pastoril no Iluminara Zumbi, da noite
Tabajara na Casa da Rabeca. Lá pras tantas, ela tonta e risonha: Quem é? Ah,
esse o artesão, ator, músico e compositor, Mestre
Salustiano (Manoel Salustiano
Soares – 1945-2008), rabequeiro que desde menino começou a trilhar os
passos do pai, João Salustiano, e hoje se eterniza na arte dos filhos. E ficou
maravilhada com a premiada narrativa dos capítulos da jornalista Mariana Mesquita: Família Salustiano – três gerações de artistas populares recriando os
folguedos da Zona da Mata (FUNDAJ, 1999). E mais curiosa queria saber de
tudo. Já na despedida da noite para outro dia, ela quis saber da minha: A vida entre
um instante e outro – simulacros e bifurcações, emulação dos astros. E assim,
sim. Até mais ver.