TRÍPTICO DQC: LIÇÕES DA VIDA, DESAFIOS DO FUTURO - Esse o tempo da gangorra, tantos paradoxos: a história
de cada um entre o sonho e o desespero. Quem dera fosse outro o momento, mas
não. Não tenho a mínima ideia de como será daqui pra diante, nem eu, nem você,
nem ninguém, a não ser mastigar emoções se nada mais der certo, ou seja lá o
que for que aconteça. Olho pros lados, não sem antes saber que apesar de partir
e repartir, tudo me faltou e quase tive medo, porque respirar é sempre o melhor
a ser feito, e me faltou oxigênio. Bem... Saída alguma e num lance de dados e
armadilhas acompanho os giros entre o refratário e o reflexivo. Não sei o que
vou fazer agora, o desafio de decidir para onde ir ou não, coisa do tipo que
faço no mote de Pinto de Monteiro: Tiro de onde não tem e boto onde não cabe.
É só o que resta mesmo a fazer nessa insegura passagem que se prolifera à
desgraça e o que desaparece de benesse, a sempre véspera inoportuna, coisa minha,
amor fati. Então Xinran me disse: Quando
alguém mergulha nas próprias recordações, abre uma porta para o passado; a
estrada lá dentro tem muitas ramificações e a cada vez o trajeto é diferente.
Perdi o que se foi e nem acaso virá, diferente mesmo. E muito. Francisco Jarauta alertava: ... O desafio está no futuro e não no passado.
O pior é que me esqueci, nenhum remorso ou sequela, ações de nenhuma escolha e
fora da lógica. Só sei de algo que não cabe no dizer, só compreendê-lo,
senti-lo. Vamos à luta!
DOIS: VEIO & SE
FOI - Giro era meio biruta, isso desde menino. Um tanto estranho: sorria
para tudo, mesmo se malvadassem ou maldissessem dele. Brincava de adivinhar o
dia seguinte e esquecia o que passou. Era uma graça, a gente se dava bem e às
gargalhadas. E cresceu, de rapazola a homem feito, do mesmo jeito: dentes
abertos no quarador para tudo e todas as coisas. E o que viesse, traçava sem
cara feia, maior boa vontade. Mesmo quando aprontavam ou se aproveitassem pra
cima dele, nem ligava. Boa praça, sempre de bem com a vida. Diziam até que sua
chegada curava qualquer enfermo, quando não ressuscitava na hora. Ao procurá-lo
depois, o canto mais limpo. Ninguém sabia onde morava ou vivia esses anos
todos, só do alvoroço da passarada e outros bichos da brabeza mais furiosa,
tudo comendo na mão dele, acompanhando seus passos. Aparecia do nada e sumia
tal como viera: sem dar notícia nem paradeiro. Você viu o Giro? Não. Ah, meu
Deus, por onde ele andará? A senhora é a mãe dele? Sou. E cadê? Nem sinal dele.
Era de vê-la desolada, aos prantos confessionais: O Giro eu encontrei numa
favela, enrolado numa tipoia, com placenta e tudo. Foi numa segunda-feira
fatídica, tudo queimado: gente, barracos, tudo. Só ele lá no meio das cinzas, o
milagre. Havia acabado de nascer, um santo. Hoje é aniversário dele. Nasceu no
dia 5 de fevereiro? Sim, de 1962. Ei, peraí! O que foi? Num diga! Parecia o
sismo de Pompeia de novo: o Anticristo. Como assim? O 666! É mesmo? Valha-me,
gnósticos, cinco vezes! O terreno está preparado, o quarto período. Vôte!
Benzodeus! Como é que é? É o que estou dizendo. Será? O Giro, essa não! Ele foi
encontrado num incêndio, não subiu do mar, não tem cor de escarlate, nem jeito
da besta! Ah, bestão ele é. E o que tem isso a ver com o troço? Sei não, hem? Ouvi Carol Bensimon: Temos que aceitar que não temos mais ídolos.
Temos que aceitar que criticamos os tempos irônicos, mas somos irônicos de vez
em quando. Temos que aceitar que nós também vamos sucumbir às tendências. E o Giro, hem? Sai pra lá, cruz-credo! Ah, ele está
pelo meio mundo, de mãos dadas com a vida dele e a de todo mundo. Ah, tá.
TRÊS: SOMBRAS DO CORAÇÃO - Gilvanícila e as lembranças do pai, coisa boa no coração. Não entendia
a mãe só aos maus tratos, ruindade injustificável com ela, só sendo, mas por
que seria, queimava de interrogações. Não havia ideia alguma que lhe desse a
razão de tanto desprezo por parte da mãe, nem queria vê-la. Pode? Mas desconfiou
do tio que esquecera na marra, doía demais o que passou. Era como se ela fosse Camille O’Sullivan pronta para o The rape of Lucrece: a batalha na noite
de Ardea, enquanto Tarquin e a lindeza dela, a entretia com os feitos
historiados, o desejo dilacerando escondido nele e a invasão do quarto enquanto
ela dormia. Acordou amedrontada com a mão intrusa em seu seio: ou cede ou
morrerá. Isso não, me poupe; inexorável, enfim estuprada. Dela, uma carta para
Collatine voltar como se fosse seu pai salvador. Não teve coragem de contar, a
mãe vingativa que depôs. E uma faca suicida prestes a derramá-la com todas as
culpas do mundo para o pentâmetro iâmbico de rima real e mais de mil oitocentos
e cinquenta e cinco versos, duzentas e sessenta estrofes de sete versos. Era tudo
muito pouco, não fosse o pai sucumbir na hora exata da delação: Ah, meu pai,
por que você me abandonou? O tio era um monstro escorraçado, fez de tudo para apagá-lo
do seu sofrimento, dá-lo por inexistente, nunca visto nem sabido. Só na hora da
mãe às últimas no hospital, teve ciência de tudo. Guardando-se em suas sombras, disse-me usando das
palavras do escritor estadunidense Lyman Frank Baum (1856-1919): Existem coisas piores no mundo do que ser um espantalho. Não há ser vivo que não tenha medo quando
enfrenta o perigo. A verdadeira coragem é enfrentar o perigo quando se tem medo.
Despetalada em
lágrimas, recostou-se ao meu ombro solidário. Até mais ver.
A ARTE DE MANOEL
EUDÓCIO