terça-feira, junho 01, 2021

MARIO PERNIOLA, ROSANA MONNERAT, PATRÍCIA MELO & NASH LAILA

 

 

TRÍPTICO DQP – Uma: à sombra de diferentes lugares... - Ao som de Alfonsina y el mar, do compositor argentino Ariel Ramírez (1921-2010). Ah, se não perdi a memória errei o caminho, estava no fim da estrada. Sabia que ali era do litoral, mas para onde eu me virasse só dava no canavial de um lado a outro. E se não era miragem, havia aqui e ali um sinal de resto de oásis que dava para matar a sede e limpar as vistas. De fato, estava perdido ou prestes. Na cabeça martelava o frevo do amor imortal que dizia do Pontal de Coruripe só céu e mar. De onde eu vinha, nem sabia direito, quase esquecia já ter passado pela Lagoa do Pau e, pelo que já andei, ainda faltava muito no destino, parece. Do que pude saber, tinha que passar por Piaçabuçu, era o que diziam os poucos passantes solícitos que cruzavam meu trajeto. Talvez fosse possível dar Boa noite, Penedo, cantando às margens do Velho Chico. Talvez. Antes disso, não havia mais a faixa do asfalto. Ué? Olhei direito, não me haviam dito que a faixa recomeçava do outro lado, depois de um pedaço de rodagem no areal. Segui e depois de tantos passos e paisagens, um povoado. O coração bateu mais forte, dei fé nas passadas, logo vencer a distância e passar pelas edificações todas com suas janelas e portas abertas, procurando no interior delas um pé de gente para remédio. Às ruas não havia a quem perguntar, acho ser ali uma localidade fantasma. De vivo mesmo só a cana ao redor e intermitentes pés de coco. Ou uns pedaços de taboa da entrada à saída do local. Deu-me uma sensação Rimbaud: De manhã, eu tinha o olhar tão perdido e a postura tão morta, que aqueles que encontrei talvez não me vissem. Só que todos, ninguém. Acho que enlouqueci, mas não. Não, não era fantasma aquelas paragens, já distante do lugar um menino me dissera que ali em abril ocorrera um dilúvio de dois dias, causando muita destruição e desabrigados. Onde estão todos? Não sei, em casa. Não vi ninguém. Ah, o povo vive entocado. Que lugar é este? Feliz Deserto. Vi-lhe o beiço virado apontar por ali para lá longe aonde eu deveria ir. Lembrei Bukowski: Não é morrer que é ruim, é estar perdido que é ruim. Sim, procede. Mais assustado fiquei ao ouvir Mário Perniola: Não é necessário sermos grandes viajantes para perceber que o mundo contemporâneo oferece um panorama no qual está dissolvida a rígida contraposição entre sagrado e profano, entre simbólico e pragmático, entre selvagem e racional... Procurei girando as vistas ao redor, não havia ninguém. Estou, deveras, perdido.

 


Duas: A festa do fim de ano... – Imagem: arte da escultora, gravadora e artista visual Rosana Monnerat. – Ali não era uma miragem. O menino brincava no oitão da casa. Ouvimos estalidos, ou melhor, disparos. E ele: São fogos da festa! Abriu bem os olhos de alegria e correu em desabalada para um cajueiro, subindo por seu tronco, pés nos galhos e lá em cima, olhava para um lado e outro. Sabia que não eram fogos de artifícios, eram tiros. E ele, mão sobre os olhos, procurava inquieto descobrir de onde vinham. Dali a pouco ouvi uma correria e no meio dela, uma mulher desesperada chamando por Nino! Tou aqui, mãe, olha os fogos da festa! Desce daí menino, não é fogo de festa, desce já! Peraí, mãe, deixa eu ver! Desce já! Outros estampidos cruzavam o ar, procurei me proteger escondendo-me, deitado, ao lado de uma mangueira. A mulher aos gritos deitou-se, nem deu tempo insistir pela descida do menino: ele despencou lá de cima, entre galhos e folhas, caindo com um baque no chão, de costas, braços abertos, jorro de sangue na testa e no peito direito. Ao meu lado, Patrícia Melo falava de Inferno: ...o pior veio depois, um silêncio longo, um nada, nem mesmo os cachorros latiam. Agua até o nariz. É a pior parte... não há nada pior na guerra do que o silêncio. E eu já não sabia o ponto de partida, muito menos de chegada, tudo estava perdido.

 


Três: Onde o deserto feliz... - Estava desolado e caminhei a esmo, se não perdido já havia esquecido o destino e mais ainda ao me deparar com uma jovem que chorava à beira da estrada. Prudentemente procurei saber se precisava de alguma coisa e ela me escorraçou aos gritos. Está bem, se precisar de alguma coisa é só falar. Peraí. Sim? Estava desorientada, procurava por um alemão, acho. E desabafou sobre a ruina da família, a fuga para o Recife e se desdizia desesperada, a prostituição, a loucura do amor, o tráfico de animais, a dureza da vida, o sofrimento. Não sabia o que fazer, ela não tinha mais que uns quinze anos de idade e fora violentada pelo padrasto e era o que mais a repugnava, a ponto de esmurrar meu peito e deitar a cabeça ao meu ombro aos prantos. As pessoas apareceram e se reuniam interrogativas ao redor, nem tinha tempo de me explicar direito, não sei se me acusavam ou se compreendiam o que estava ocorrendo. Havia uma hostilidade no ar. Para minha salvação, ela se recompôs e era a atriz Nash Laila a me dizer: Tanta coisa… A gente está vivendo um momento muito sensível. O mundo está muito caretão. A gente tem que quebrar tudo, para ter um pouco de afeto. No nosso trabalho, mexemos com fogo. Gente é uma coisa que amo e odeio. Admirado fiquei com sua desenvoltura. Era como se ela atuasse na Valsa nº 6, do Nelson Rodrigues. Cada vez mais não sabia o que fazer. À minha cabeça cenas, frases, desencontros, tudo desconexo, mal conseguia fazer uma leitura do momento. O que sei, melhor dizendo, quem tem o amor ao alcance, tem outra chance de ouvir todos os seus sentimentos para a pluralidade real da vida. O amor ainda faz sentido hoje?

 


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