O QUE FIZ DE MIM E NÃO SEI – Imagem: arte da artista
visual canadense Elly Smallwood. - No
topo de um imenso morro, um cenário paradisíaco: o regato, as matas, o encontro
do mar, será o fim do mundo? Como cheguei aqui nem o que fazia agora, não sabia.
Mais parecia um filme, eu o protagonista perdido numa linda paisagem que não
sei se amanhecia ou se preparava o anoitecer, o Sol escondido apenas seus raios
no céu, tudo parecia parado, embora uma brisa fresca me envolvesse. Procurei
identificar aquelas paragens, não era a Serra da Prata nem da Russa, as mais
próximas, nem nenhuma das que já tivesse passado, porém familiar. Inquieto, não
parava de me perguntar como fui parar nesse ponto do mundo, e me desesperava
porque não sabia como sair dali. Fiz a volta em torno de mim mesmo, não havia
caminhos por onde pudesse ter chegado ou pudesse voltar. Parei no mesmo ponto
de antes, fitei todos os limites e uma voz soou do nada: Lindo cenário. Era uma
voz que não era desconhecida e não havia ninguém. Arrepiei e tornei a procurar
ao meu redor, intrigado. Sabe você quem é? Estava próximo de mim, não conseguia
ver quem era. Sabia ali, não visível. Veja ali você ontem, disse-me. E de
repente vinha alguém no matagal denso, e via perfeitamente, andando, à procura
de algo que não consegui distinguir. Ontem? Sim, na eternidade, um dia é igual a
todo tempo de uma encarnação. Ao dizer-me isso, uma cobra enorme e ameaçadora
passou-me entre as pernas em direção àquele outro eu que subia investigando
todos os lugares que pisava. Fiquei assustado. Não se assuste, olhe ali seus
familiares. Ao virar, constatei uma reunião de muitas pessoas desconhecidas: Não
conheço ninguém ali. Sim, você não se lembra nada do que fez ontem, não há como
rememorar as tantas coisas feitas, nem a família, os amigos, os prazeres, os
caprichos, nada, mesmo assim você é hoje o que fez ontem. Ao dizer-me isso,
percebi que a serpente alojou-se justamente em local que aquele eu se
aproximava, ela pronta pro bote. Tentei gritar, avisando. Não adianta, disse-me
a voz invisível. E dali a pouco presenciei o ataque: a víbora voou ao pescoço
daquele eu, enroscou-se ao tronco coibindo qualquer ação dos braços e desferiu
golpes às mordidas na jugular, até vê-lo cair imóvel à sua sanha venenosa. Como
pode? Você não pode fazer nada. Dois estranhos apareceram naquele instante e
avistaram aquele eu sendo atacado. A malacatifa logo se desenrolou daquele eu e
fugiu rastejando. Logo tentaram socorrê-lo e gritaram por ajuda. Os estranhos
que se reuniam lá embaixo, logo se dirigiram subindo ao encontro dos outros
dois que tentavam reanimá-lo. Foram vindos homens, mulheres e crianças, todos
que nunca tinha visto, choravam e se lamentavam agarrados ao morto que, após
algum tempo, foi levado morro abaixo para onde não sei. Acompanhei a descida, quando
a voz me disse: Aquele ali é você anteontem. Anteontem? Sim. Onde? Ali. E me
virei e era aquele eu remando desesperado pela corredeira, sozinho escapando de
não sei quê. Você não se lembra do que fez anteontem. Não, não me lembrava de
nada, mesmo, nem daquele eu tão agoniado para salvar-se. Da mesma forma, não se
lembra dos parentes, achegados, vitórias e derrotas, luxúria e malquerenças,
não há de ter a menor noção, porque hoje você é o que foi ontem e anteontem. Impressionado
eu acompanhava a pugna com as águas revoltas, a noite escura, nenhum lugar. Só muito
depois que vi o voo, a cachoeira, um corpo em queda, uma jangada desgovernada
que caía e um remo que levitava para se enterrar no chão, ao lado de um corpo
inchado e sem vida. Quando vi direito, aquele eu boiava na margem, até ser encontrado
por pessoas estranhas: Esses são seus familiares de anteontem. Também não
reconheci. A voz então disse: Hoje você está aqui, se lembra do que fez hoje?
Virei-me, ninguém do lado, respondi assim mesmo negativamente, não recordava de
nada. Quer ver seu futuro? Abri os olhos espantados esperando uma resposta. Por
um instante não disse nada, um silêncio absoluto tomou conta de tudo por ali. Um
porco rosnou distante, pássaros em revoada, um cheiro de rosa, um vulto de
mulher passou rente, mãos apertadas, olhos no vazio, faces perdidas. Então, ele
me falou: Não, não há mais futuro, chegou a hora. Vamos. Baixei a cabeça e não
sabia o que fazer. Como de um sonho, acordei; e estava tão desencontrado quanto
perdido. Apenas me sabia vivo. © Luiz
Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais aqui.
RÁDIO TATARITARITATÁ:
Hoje na Rádio Tataritaritatá especial com a música do compositor, música e
mult-instrumentista japonês Kitaro: Live in America, Live na Enchanted Evening, Daylught
Moonlight Live & Oasis & muito mais nos mais de 2 milhões de acessos ao
blog & nos 35 Anos de Arte
Cidadã. Para
conferir é só ligar o som e curtir. Veja mais aqui e aqui.
PENSAMENTO DO DIA – [...] E
quando todos tenham passado novamente através de mim, porque embora eu não me
lembre, eles já passaram uma vez; e além de outras considerações, quando todos tenham
passado de novo através de mim, será uma imensa satisfação, porque eu lhes
poderei dizer a todos que são o primeiro, que aquelas coisas que faço com eles
não as fiz nunca com ninguém [...]. Pensamento extraído da obra Tiresia (Silva, 1968), do filósofo
italiano Mario Perniola (1941-2018), que noutra obra, Do sentir
(Presença, 1993), expressa: [...] Não nos devemos deixar arrebatar pelo impulso exterior e
devemos refletir com tempo e deixar que o repouso acalme completamente a
emoção! [...]. Veja mais aqui.
SONHO & SEMELHANTE – [...] O sonho
é o despertar do interminável [...]. O
sonho toca a região onde reina a pura semelhança. Tudo nele é semelhante, cada
figura nele é uma outra, é semelhante a outra, e ainda a uma outra, e esta a
uma outra. Procura-se o modelo original, quer-se ser remetido a um ponto de
partida, a uma revelação inicial, mas nada disso existe: o sonho é o semelhante
que remete eternamente ao semelhante. […] Viver um acontecimento em imagem não é ter desse evento uma imagem nem
tampouco dar-lhe a gratuidade do imaginário. O acontecimento, nesse caso, tem
lugar verdadeiramente e, no entanto, terá ele lugar “verdadeiramente”? O que
acontece nos arrebata, como nos arrebataria a imagem, ou seja, nos despoja, de
si e de nós, mantém-nos de fora, faz desse fora uma presença em que o “Eu” não “se”
reconhece. [...] Essa duplicidade não
é tal que se possa pacificá-la por meio de um ou isto ou aquilo, capaz de
autorizar uma escolha e de apagar da escolha a ambiguidade que a torna
possível. Essa duplicidade remete ela própria a um duplo sentido sempre mais inicial.
[...] Aqui, o sentido não escapa para um
outro sentido, mas para o outro de todo sentido e, por causa da ambiguidade,
nada tem sentido, mas tudo parece ter infinitamente sentido: o sentido não é nada
além de uma aparência, a aparência faz com que o sentido se torne infinitamente
rico. [...]. Trechos extraídos da obra L’espace littéraire (Galimard, 1955), do escritor, ensaísta e crítico de literatura
Maurice Blanchot (1907-2003). Veja mais aqui e aqui.
AÇÃO DIRETA – Do ponto de vista
daquele que se julga capaz de discernir uma rota constante para o progresso
humano, e segue por ela, e desenha tal rota no mapa de sua mente, certamente
resolverá indicá-la aos outros; fazê-los ver as coisas como ele vê;
convencê-los com argumentos claros e simples que expressem seus pensamentos --
diante disso é um sinal de pesar e de confusão de espírito o fato da frase
«Ação Direta» adquirir de repente na mente das pessoas em geral um significado
circunscrito, que não tem, e que certamente nunca teve, nem mesmo no pensamento
de seus adeptos. Porém, essa é mais uma ironia que o Progresso lança naqueles
que se julgam capazes de fixar metas e lutar por alcançá-las. Inúmeras vezes,
nomes, frases, lemas, divisas, palavras de ordem, são viradas ao avesso,
colocadas de cabeça para baixo. [...] Logo após a
chegada dos Quakers em Massachusetts, os Puritanos os acusaram de “aborrecer
todo mundo com seus discursos”. Os Quakers não aceitavam jurar submissão a
governo algum e nem admitiam que sua igreja pagasse impostos. (Fazendo essas
coisas eles eram praticantes da ação direta, coisa que poderíamos chamar de
ação direta negativa.) Assim, os Puritanos, sendo ativistas políticos,
aprovavam leis para excluir, deportar, multar, encarcerar, mutilar, e
finalmente, até mesmo para enforcar os Quakers. Todavia, os Quakers continuaram
praticando suas idéias (que era ação direta positiva); há registros na história
que depois de enforcarem quatro Quakers e de arrastarem Margaret Brewster presa
ao para-choques de um carro pelas ruas de Boston, “os Puritanos desistiram de
tentar silenciar os missionários; a persistência e não-violência quacre acabou
prevalecendo”. [...] pessoas que perderam o hábito de lutar por si
mesmas enquanto indivíduos, pessoas que se submetem a toda injustiça esperando
que uma maioria seja formada, são metamorfoseadas em humanos de alto poder explosivo
por um mero processo de empacotamento! Eu concordo totalmente que as fontes da
vida, e toda a riqueza natural da terra, e as ferramentas necessários à
produção cooperativa, tem que estar livremente acessíveis a todos. [...]. Trechos extraídos de The Voltairine De Cleyre Reader (AK Press, 2004), da escritora e ativista anarquista estadunidense Voltairine de Cleyre (1866-1912). Veja
mais aqui.
A SINCERA - Você quer comprar? / Coração à venda. / Você quer comprar, / Sem ter que
brigar? / Deus o fez de aço; / E você que o renda; / Deus o fez de aço / Para
um só abraço! / Eu decido o preço; / Você quer saber? / Eu decido o preço; / Não
fique surpreso. / Você tem o seu? / Dê! ganhe meu ser. / Você tem o seu, / Pra
pagar o meu? / Se seu não é mais, / Só tenho um desejo; / Se seu não é mais, / Pra
mim não há paz. / O meu seguirá, / Cerrado sem pejo; / O meu seguirá, / E Deus
o terá! / Pois para a paixão, / A vida é tão rara; / Pois para a paixão, / Não
há duração. / A alma só corre / Como a água clara; / A alma só corre, / Só ama!
e morre. Poema da poeta maldita francesa Marceline
Desbordes-Valmore (1786-1859). Veja mais aqui.
A ARTE DE NICOLE KIDMAN
A arte da sempre linda e extremamente talentosa
atriz australiana Nicole Kidman. Veja mais aqui, aqui e aqui.
O Centro
Cultural Vital Corrêa de Araujo informa:
Fábio de
Carvalho & banda em show & muito mais na Agenda aqui.
&
Imagem: arte da artista visual canadense Elly Smallwood.
&
&
A bolsa da vera bandoleira, Civilização e barbárie de Jean-François Mattei,
a poesia de Marceline
Desbordes-Valmore, a ação direta de Valtairine de Cleyre, a Venus Aphrodite Callipyge & a música
do OuroBa aqui.
APOIO CULTURAL: SEMAFIL
Semafil Livros nas faculdades Estácio de Carapicuíba e Anhanguera de São
Paulo. Organização do Silvinha Historiador, em São Paulo.