DESMANTELO SÓ PRESTA GRANDE – Imagem: Silence (1915), do pintor, escritor e
dramaturgo francês Georges
Ribemont-Dessaignes (1884-1974). - A função começou cedo no domingo, bastou
o pé-de-serra ditar o ritmo das horas logo de manhãzinha. Umas aos outros se
achegando com alvoroço: É hoje! Estalos de tampas das garrafas, assados no
fogareiro, correria pra lá e pra cá arrumando as coisas, lapadas de dois-dedos
amargando na garganta, viradas de copo na lavada, caretas, tinindos, papo vai,
papo vem: É hoje que vou lagar a jega! A coisa passou de chegança pra pandemônio:
Vamos nessa, Brasilzilzilzil!, gritou um exaltado. Ninguém revidou, só aplausos
e torcida. Uma risadagem aqui, uma pilhéria ali, e a coisa foi tomando ares
incontroláveis. Não era nem meio-dia e o movimento ganhou pressão. Gente até de
um olho só se amontoava como podia puxando tamboretes, aglutinando mesas, cada
qual dimensionando o seu espaço: Arreda, vai! Aqui sou eu! No fundo havia uma
esfuziante confraternização, abraços, beijos, apupos, enxerimentos, provocações
e ameaças veladas. O rastapé já se insinuava, a poeira comia no centro com o
arrastado dos solados. Segura o trupé, gente!, berrou o sanfoneiro castigando
no dedilhado, a zabumba e o triângulo só na marcação. Rodadas de saias,
encoxamentos, fungados e uma exigência de respeito: Para tudo! Atenção,
mundiça, respeito no salão que isso é de família! E tudo voltava ao normal com o
baticum comendo no centro. Daí a pouco a coisa fervia com o mormaço da tarde.
Suores na pegação, odores de festança, comes e bebes, embeiçadas, arregueiros
de plantão, o fuá corria solto e tudo na santa paz. Havia chegado a hora,
ajeitaram a tevê em cima da mesa, ninguém aí porque ainda era hora dos hinos.
Ao apito do juiz, imperou o silêncio, olhos grudados, nem um pio – cachorro que
latisse ou bicho que aparecesse com o menor zumbido, era enxotado -, só Galvão balançando
as besteiradas e aumentando a tensão. Unhas roídas, pernas inquietas, maior
concentração para não se perder o mínimo lance. Alguns minutos e a explosão:
gol! Dá-lhe, Brasil! Uma ovação. Ah, pelo jeito esse será de lavagem! Não foi,
passou-se o tempo, acusaram o juiz de ladrão, os jogadores de pernas-de-pau, o
técnico de burro, enfim, duzentos milhões de torcedores dando pitaco em cada
jogada. Findou o primeiro tempo e o alívio instalou-se por ali. Filas no
banheiro, pedidos renovados e aos montes, empolgações e ranzinzices: Quero só
ver a lapada agora! Ufanidades à flor da pele: Essa vai ser de lambuja! Segura a
onda, comboio de corno, que a coisa recomeçou! É agora! Não foi. Nem bem
começou o segundo tempo, gol contra: Isso é a porra, meu! Placar empatado:
Vamos partir com tudo! E foi, não deu. Os minutos passavam e os nervos
aflorados: Esse timeco é só de faro! Se fosse o Sport já tava dez a zero! Deixa
de pacutia, alesado! Ôxe, o Sport num ganha nem prum time de várzea, tinha que
ser o meu Santa Cruz pra dá uma goleada medonha! Vixe, nenhum docês sabem nada,
se fosse o Náutico já tinha mandado os gringos pra casa! E a coisa esquentou,
entrou em ebulição: Aparta! Acalmaram os ânimos ainda remoendo e a bola ia e
vinha e nada de entrar: Isso é a cega Dedé! Eu mesmo vou torcer agora pros
gringos! Cala boca, fresco! Fresco é seu pai! Fecha o bico, viado! Puta é a sua
mãe! Pulha pra lá, desaforo pra cá, deu-se a arenga e o pau cantou: cachaça,
tapa e gaia! Segura o pencó, putada! Pega esse corno da gaia mole! Facas e
canivetes empunhadas, bastou um pipoco de bala, correu todo mundo. E o jogo
findou empatado pra prejuízo de todos. © Luiz
Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais aqui.
RÁDIO TATARITARITATÁ:
Hoje na Rádio Tataritaritatá especial com a música do escritor, teatrólogo, compositor,
músico e cantor Chico Buarque: Carioca, Na carreira, As cidades & Le Zenite ao vivo &
muito mais nos mais de 2 milhões de acessos ao blog & nos 35 Anos de Arte Cidadã. Para conferir é só ligar o som e curtir. Veja
mais aqui, aqui, aqui, aqui e aqui.
PENSAMENTO DO DIA – [...] a
experiência da percepção nos põe em presença do momento em que se constituem
para nós as coisas, as verdades, os bens: que a percepção nos dá um logo em
estado nascente, que ela nos ensina, fora de todo dogmatismo, as verdadeiras
condições da própria objetividade: que ela nos recorda as tarefas do
conhecimento e da ação. [...]. Trecho extraído de A linguagem indireta
e as vozes do silêncio (Martins Fontes,
1991), do filósofo fenomenólogo
francês Maurice Merleau-Ponty (1908-1961). Veja mais aqui.
SEIS PROPOSTAS PARA O PRÓXIMO MILÊNIO – [...] A mente do poeta, bem como o espírito
do cientista em certos momentos decisivos, funcionam segundo um processo de
associações de imagens que é o sistema mais rápido de coordenar e escolher
entre as formas infinitas do possível e do impossível. A fantasia é uma espécie
de máquina eletrônica que leva em conta todas as combinações possíveis e
escolhe as que obedecem a um fim [...] que futuro estará reservado à imaginação
individual nessa que se convencionou chamar de “civilização da imagem”? [...] Na sua sabedoria e pobreza molisanas, o
doutor Ingravallo [...] sustentava, entre outras coisas, que as catástrofes
inopinadas não são jamais a consequência ou o efeito, como se costuma dizer, de
um motivo único, de uma causa singular: mas são como um vórtice, um ponto de
depressão ciclônica na consciência do mundo, para as quais conspirava toda uma
gama de causalidades convergentes [...]. Trechos extraídos da obra Seis
propostas para o próximo milênio (Vozes, 2000), do escritor italiano Ítalo
Calvino (1923-1985). Veja mais aqui.
A MULHER DE VILLON – [...] ― Quando a
guerra começou, e os bombardeios passaram a ficar mais perigosos, ainda assim
continuamos em Tóquio. Não tendo filhos nem outros motivos para nos deslocarmos
para o interior, decidimos continuar o negócio até que nos caísse uma bomba na
cabeça. Se mantivéssemos nosso negócio até o fim da guerra, ainda que sofrendo,
teríamos enfim um alívio. Por isso, acabamos produzindo álcool ilícito, por
pouco tempo, apenas o suficiente para reabastecer nosso estoque. E, ainda que
por pouco tempo, não tivemos muita dificuldade — até um pouco de sorte. Mas
essa vida sempre prepara algo de ruim para nós. É como dizem, para cada sun de
felicidade, há um shaku de maldade. É realmente uma verdade. Se, em um ano,
você tiver um dia, ou mesmo meio dia, sem nenhum problema, pode se considerar
uma pessoa de sorte. [...] ―Senhora, esta foi a única vez, de todas, que
recebemos algum dinheiro dele. Desde então, ele só vem, há três anos, nos
enganando e empurrando com a barriga sem pagar sequer um tostão. Bebeu todo o
nosso estoque de álcool quase sozinho, secou tudo, é inacreditável! Então, sem
nem perceber, comecei a gargalhar. Não sei exatamente qual era a graça, mas não
consegui me segurar. Confusa, cobri a boca, mas, ao olhar para a senhora com o canto
do olho, percebi que, estranhamente, ela também ria. E então seu marido também,
sem outra opção, esboçou um riso triste.
[...] Novamente, de algum lugar na história toda, alguma graça
pareceu ter se apossado de mim, e eu ri em voz alta, não conseguindo me
segurar. Gargalhava, enquanto a senhora deu um leve sorriso, ficando com o
rosto vermelho. Eu, sem conseguir parar de rir, comecei a pensar mal de meu
marido e me veio um sentimento estranho e engraçado ao mesmo tempo, e comecei a
chorar, enquanto seguia rindo. Lembrei de um de seus poemas, ―Gargalhada dos frutos
da civilização‖, e pensei se não era a esse
sentimento que ele estaria se referindo.
[...]. Trechos extraídos de La Femme de Villon
(Rocher, 2005), do escritor japonês Osamu Dazai (1909-1948). Veja mais aqui.
MEU ÚLTIMO ADEUS - Adeus,
Pátria adorada, região de sol querida. / Pérola do mar de Oriente, nosso
perdido Éden! / Vou te dar alegre a triste e murcha vida. / E fosse mais
brilhante, mais fresca, mais florida, / Também para ti daria, a daria para teu
bem. / Em campos de batalha, lutando com delírio / Outros te dão suas vidas,
sem dúvidas, sem pesar; / O lugar não importa: cipreste, laurel ou lírio. / Cadafalso,
campo aberto, combate ou cruel martírio. / São iguais quando as pedem a Pátria
e o lar. / Eu morro quando vejo que o céu se colora / E o fim anuncia o dia
atrás, lúgubre capuz; / Se carmesim necessitas para ter tua aurora, / Verte meu
sangue, derrama-o em boa hora / Doura-o com o reflexo de sua nascente luz. / Meus
sonhos quando apenas moço adolescente, / Meus sonhos quando jovem já cheio de
vigor, / Foram te ver um dia, joia do mar de Oriente, / Com olhos sem lágrimas,
de testa reluzente / Sem cenho, sem rugas, sem mancha de rubor. / Sonho de
minha vida, meu ardente anseio, / Salve! Grita a alma que logo irá partir! / À
tua liberdade caio feliz sem receio! / Morrer pra dar-te vida, morrer em teu
seio / Encantada terra, a eternidade dormir. / Se sobre meu sepulcro vieres
brotar um dia, / Entre espessa erva, simples e humilde flor, / Aproxima teus
lábios e beija minha alma / Que sinta no rosto embaixo da tumba fria / De tua
ternura o sopro, de teu hálito o calor. / Deixa a lua me ver com luz tranquila
e suave, / Deixa que a alva envie resplendor fugaz, / Deixa gemer o vento com
seu murmúrio grave; / Se baixar e pousar sobre minha cruz uma ave, / Deixa que
entoe seu lindo cântico de paz. / Deixa que o sol ardente as chuvas evapore / E
ao céu voltem puras com meu clamor de adeus, / Deixa que um ser amigo meu fim
precoce chore / E nas serenas tardes quando por mim alguém ore / Ora também, oh
Pátria, por meu descanso a Deus! / Ora por todos quantos morreram sem ventura,
/ Por quantos padeceram tormentos sem igual, / Por nossas pobres mães que gemem
sua amargura, / Por órfãos e viúvas, por presos em tortura / E ora por ti que
vejas tua redenção final. / Quando noite escura envolve o cemitério / E só,
apenas mortos ficam velando ali / Não perturbes repouso, não perturbes
mistério; / Talvez acordes ouças de cítara ou saltério / Sou eu, querida
Pátria, sou eu que canto a ti. / E quando minha tumba de todos esquecida / Já
não tiver cruz nem pedra que marque seu lugar, / Deixa que a are o homem, que
espalhe com inchada / E minhas cinzas, antes que retornem a nada, / O pó do teu
tapete permite que vão formar. / Então nada me importa que me ponhas no olvido;
/ Teu céu, teus montes, prados e vales eu cruzarei / Vibrante e limpa nota
serei ao teu ouvido, / Aroma, luz, cores, rumor, canto e gemido / Sem cessar a
essência de minha fé ecoarei. / Minha Pátria adorada, dor de minhas dores. / Querida
Filipinas, ouça o último adeus, / Aí te deixo tudo, meus pais e meus amores. / Vou
aonde não há escravos, verdugos, opressores. / Aonde a fé não mata, aonde quem
reina é Deus. / Adeus, pais e irmãos, pedaços de minha alma, /Adeus amigos da
infância do perdido lar, / Deem graças que descanso do fatigante dia. / Adeus,
doce estrangeira, minha amiga e alegria! / Adeus, queridos seres, morrer é descansar.
Poema do escritor, jornalista, oftalmologista e revolucionário nacionalista
filipino José Rizal y Alonso
(1861-1896).
O MIGRANTE
O
documentário O migrante (2007),
direção de Beto Novaes, Francisco Alves e Cleisson Vidal, com edição de Luiz
Guimarães, apresenta as condições trabalhistas desumanas de cortadores de cana
e mostra a hipocrisia do discurso da “modernidade” no campo brasileiro e expõe
realidade dos migrantes nordestinos. É o resultado de parceria entre quatro
universidades federais; a Universidade Federal de São Carlos (UFSCar),
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Universidade Federal do Piauí
(UFPI) e Universidade Federal do Maranhão (UFMA), tendo sido lançando Encontro
Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais
(Anpocs), em 2007, e exibido em uma série de eventos posteriores. Veja mais
aqui, aqui, aqui e aqui.
O Centro
Cultural Vital Corrêa de Araujo informa:
XV Fórum
do Forró & muito mais na Agenda
aqui.
&
A arte do
pintor, escritor e dramaturgo francês Georges
Ribemont-Dessaignes (1884-1974).
&
&
Ad captandum vulgus, Aprender a viver de Luc Ferry, a literatura de Salman Rushdie, o balé de Allison DeBona, a
pintura de Renata Brzozowska & a poesia de Léa Marinho aqui.
APOIO CULTURAL: SEMAFIL
Semafil Livros nas faculdades Estácio de Carapicuíba e Anhanguera de São
Paulo. Organização do Silvinha Historiador, em São Paulo.