TRIPTICO DQP – A vida segue adiante... - Ao som de Guinga
Instrumental (2 Vls - Galeão, 2018), do compositor e músico Guinga. - Hoje dei de cara com um
espelho que não era aquele que estava desde sempre afixado ali. Era outro e não
era nada comum. Como foi parar ali, não sei. Como é que pode? Explico: este parecia
ser de bronze, acho. Possuía, mais ou menos, umas oito polegadas de largura,
com um suporte traseiro em forma de unicórnio agachado e, nos quatro cantos da
parte anterior, havia lá figuras pintadas de quatro animais. Depois de muito rever,
identifiquei: um dragão, uma fênix, um tigre e uma tartaruga. Isso mesmo. E mais:
cada um desses animais estava cercado de oito diagramas que, por sua vez,
estavam cercados pelos símbolos, ao que me parece, com certeza, das doze
constelações do zodíaco. Tudo muito estranho. Virei e revirei. Na parte da
frente dava para se ver vinte e quatro caracteres por mim não identificáveis,
numa caligrafia de traços abruptos. Danou-se! Bote estranhice em tudo. Fui pesquisar,
aqui e ali, vixe! Com o tempo identifiquei um a um dos diagramas: era do Yi-king, isso conforme acesso às
publicações Yi-king – Le livre des transformations, um livro em capa dura que achei sem data e editora, traduzido
pelo sinólogo e teólogo alemão Wilhelm
Richard (1873-1930), e também um outro, Yi
King: Les essentiels du bien-être (Grund,
2005), uma edição ilustrada realizada por Gary G. Melyan e Wen-kuang Chu. Repara
só, estão pregando uma peça comigo, só sendo. A caligrafia só identifiquei ao me
apossar de uma tuia de tomos e enciclopédias antigas, dando-me a constatação de
se tratar do estilo Li-Chu, ou seja, do tempo de um certo imperador chinês lá
dos anos 727-729 dC. Queimei noites e dias as pestanas e os neurônios de tanto encará-lo
e percebi que, ao colocá-lo contra a luz, dava para distinguir que, contra a
superfície metálica, havia desenhos no verso. Que é isso? Só faltei arrancar os
cabelos, descobrindo, finalmente que eu estava diante do velho espelho de Wang Tu, um objeto
estranho. Ah, tá. Sim, mas como foi parar ali? Não queiram nem saber: o que
passei depois que dei fé dele, as coisas estranhas é que começaram mesmo a
ocorrer ao meu redor. Primeiro foi uma aparição repentina do Saul Bellow para jogar, assim do nada,
na minha cara: Ah, é uma praga, a vida que se
exibe, uma verdadeira praga! Estamos numa época em que todos os ridículos
filhos de Adão desejam evidenciar-se perante os outros, com todos os seus ditos
espirituosos, esgares e tiques, toda a glória da fealdade auto-adorada,
afirmando aos restantes - num transbordar de narcisismo que os outros
interpretam como benevolência - 'Aqui estou para dar testemunho. Vim para lhes
servir de exemplo'. Pobres espectros tontos! Fiquei mastigando aquilo na ideia e ao tentar expressar
minha opinião a respeito do que dissera, não era mais ele ali, era a Bia Lessa mais que reveladora: Vivemos
uma desconstrução. Valores fundamentais estão sendo derrubados. E sorriu
diante da minha estupefação: Venha. E fui, claro.
Duas vezes sob a luz do palco... – Ao som do álbum Rosinha de Valença ao vivo (Forma, 1966), da compositora e violonista Rosinha de Valença (Maria Rosa Canellas
– 1941-2004). – Ao sairmos, o que
deveria ser a minha sala-estar, era agora um palco com atores e atrizes
seminus, que passavam entre nós. Logo não mais a vi, estava perdido e
procurando onde me amparar em qualquer lugar, para presenciar ao exercício
laboratório, creio. Ouvia alguém gritar para eles algo como transluminescência,
em que o impulso é ao mesmo tempo a reação. Curioso. Agucei a atenção, encostei
num canto e fiquei intrigado acompanhando o movimento. De repente surgiu Jerzy Grotowski: O perigo e a
sorte vão juntos. Não há grande classe se não diante do perigo. No momento do
desafio aparece a ritmização das pulsões humanas. O ritual é um momento de
grande intensidade. Intensidade provocada. A vida então se torna rítmica. O Performer sabe ligar o impulso
corpóreo à sonoridade: o fluxo da vida deve articular-se em formas. Era uma lição do seu El performer – The Grotowski Sourcebook (Routledge, 1997), que eu
estudara anos atrás, a respeito do exercício de conhecimento e transformação de
si, apontando para o horizonte ético do trabalho
de atuação, com base na Arte como Veículo, a relação entre a vida interior e a
espiritual do ser humano, por meio de uma reflexão sobre o potencial da
condição humana na perspectiva do comportamento orgânico – o Teatro Laboratório.
Entendi que falava de interioridade na investigação e o acesso a diferentes
estágios experienciais, como ato de transformação individual por meio de uma
ação e do fazer, além de qualquer função espetacular e sem vender a alma: ofício e ética. Assim, para mim, era
um momento iniciático, jamais arredaria o pé dali.
Três avisos: não só se vive de espelho... – Imagem: arte da premiada fotógrafa Helia
Scheppa. - E não arredaria mesmo, não fosse eu me render ao cansaço e o
sono. Se tudo foi real, me pareceu um sonho para lá de desejável, senão
aprazível. É que ao despertar, ao meu lado estava o volume O teatro moderno em Pernambuco (Desa, 1966), do ator, crítico
teatral, ensaísta e professor Joel
Pontes (1926-1977), livro este que eu nunca havia posto os olhos em cima. Quem
trouxera? Quem ali colocou? Mistério. Mas, pelo menos, gostei de ter esse
volume às mãos, contando a história do Teatro do Estudante de Pernambuco (TEP) e
do Teatro de Amadores de Pernambuco (TAP), afora as atividades do autor como
integrante do curso de Arte Dramática, da Escola de Belas Artes da UFPE, enfim
a trajetória da atividade teatral pernambucana, analisando os principais grupos,
amadores e profissionais, como o Grupo Gente Nossa (GGN), o Teatro Adolescente
do Recife (TAR), o Teatro de Cultura Popular e (TCP) e o Teatro Popular do
Nordeste (TPN). Além disso tudo, realiza um estudo introdutório e panorâmico
dos dramaturgos pernambucanos mais expressivos, entre eles, Hermilo Borba
Filho, Aldomar Conrado, Ariano Suassuna, Aristóteles Soares, Isaac Gondim
Filho, José Carlos Cavalcanti Borges, Luiz Marinho e José de Moraes Pinho. Uma
leitura assaz reveladora, principalmente por me dar a ciência de que ele também
é autor de outras obras, como Ensaios do
visitante (1970), contando da sua ida aos Estados Unidos, e O aprendiz de crítica – 2 volumes
(1955-1960). Ampliei meus conhecimentos acerca das atividades teatrais
no estado e guardei de bom grado entre os outros volumes que possuo da área em
uma das minhas estantes. Mesmo não sabendo quem me presenteou tal volume,
agradeço então à vida, a oportunidade de lê-lo. Até mais ver.