quinta-feira, setembro 23, 2021

CORDEL REPENTEANDO, LUA, UNGARETTI, BRÁULIO TAVARES & SALLIE NICHOLS

 

 

TRÍPTICO DQP – Popoesialar... - Ao som da vinheta Tataritaritatá. - Poesia Popular? Eita! Ah, era quando ia com mãe ou vó pra feira e lá dava de cara com dois repentistas com seu trabalho feito e descascando cada qual a honra e a feiúra um do outro, morria de rir, a ponto de ser arrastado pra casa, de nem poder vê-los rapar a viola. Coisa boa de ver, visse? Ou quando via aquela figura gigantesca do Ascenso cantando das suas, umas e outras, para lá e para cá, chega dava gosto! Lá em casa era pai achegado no meio das suas estantes. Ele até cometia uns sonetos bissextos, enrolado com as lições do Bilac, sapecando uns solos ao violão e a me falar noutras horas do romanceiro dos cordelistas, do cancioneiro popular. Eu que já era de ficar entretido com os trava-línguas, parlendas, pastoris e quadrinhas, ouvia dele coisas de Leandro Gomes de Barros, do Pavão Mysterioso, de Zé da Luz e doutros causos e graças das Literaturas ditas de Cordel. Era galope, martelo, oitava e mourão; era décima, ligeira, sextilha, parcela e quadrão. Era gabinete, toada, gemedeira e rojão pernambucano, quando uma dupla com bandeiro no coco da embolada, quando não outros com dez de adivinhação. Olhos grandes e todo espalhado. Se aprendia? Só Deus sabe o que eu não sei. Até que um dia, no meio da itinerância, lá fui eu noutras voltas, cheio de nó pelas costas a recitar outras Severinas do João Cabral.

 


Lunário perpétuo... – Ao som de Abusão. - De primeira foi assim: inadvertidamente dei de cara com um livrão, sabia lá o que era o Non plus ultra do lunário e prognostico perpetuo, geral e particular para todos os reinos e províncias. Vôte! Nunca tinha visto, apareceu assim do nada sobre a mesa. Estava lá, misterioso. Cá comigo: Que droga é nove? Não era só um livro. Bastou abri-lo assim do nada, logo dele, isso mesmo, das páginas dele uma coisa assim que meio evaporou e fez volume esfumaçado no ar. Só depois de muito tempo é que pude ver que era Vivagina – explico: era como se fosse aquela cabeluda de Bráulio Tavares e a da porteira de Courbet, entende? Pois é. Não demorou muito e a coisa foi ficando mais perturbadora. Logo ouvi a voz de Sallie Nichols: Todas as noites, a Senhora Lua reúne todas as lembranças jogadas fora e todos os sonhos esquecidos da humanidade, guardando-os em sua taça de prata até o despontar da aurora. A seguir, aos primeiros albores, continua a história, todos os sonhos esquecidos e todas as lembranças desprezadas são devolvidas à Terra como seiva da Lua ou orvalho. Misturado às lacrimae lunae, o orvalho nutre e retempera toda a vida sobre a Terra. Graças ao desvelo compassivo da deusa, nada de valor se perde para o homem. Além de precavido, estava cada vez mais curioso. Foi, então, que uma voz de um vulto que emergia do ventre, agigantando-se. E começou a falar de Plutarco: É a morada dos homens bons de sua morte. Levam aí uma vida que não é nem divina, nem feliz, mas, contudo, isenta de preocupação, até a sua segunda morte. Porque o homem deve morrer duas vezes. Danou-se! Procurava entender quando ouvi um poema de Giuseppe Ungaretti: Que estás fazendo, Terra, no / céu? / Diz-me, que estás fazendo, silenciosa / Terra? Entendia patavina! Pensei comigo: melhor fugir. Não deu, algo me trancava naquilo e ouvi do poeta árabe Ibn al-Mottaz (861-908): Olha a beleza do crescente que, acabando de aparecer, rasga as trevas com seus raios de luz. Como uma foice de prata que, entre as flores brilhando na obscuridade, colhe narcisos. A primeira lembrança que ocorre, quando se deseja descrever algo excessivamente belo e mostrar sua extrema perfeição, é dizer: uma face semelhante à Lua. Quanta doidice duma vez só! Era como se a imagem me dissesse tudo isso lido das páginas daquele volume misterioso. De repente a imagem foi ficando mais nítida, a ponto de identificar duas torres, um lago azul e nada mais que conseguisse distinguir no meio da névoa onírica que imperava no ambiente. E era Tales mencionando o corpo sem luz própria que apenas refletia a luz solar. Era Demócrito dizendo que ali era um mundo de montanhas e vales. Era Aristóteles falando das fases lunares. Eram Arisparco de Alexandria e Hiparco medindo a distância entre a Terra e a Lua. Era Newton descobrindo a relação gravitacional. Era Galileu com seu Siderius Nuncius, confirmando Demócrito. E tudo me assustava, nada entendia, impedido de retroceder. Cada vez mais visíveis as duas torres de ouro sedutoras, havia um caminho escuro, não sei se antes alguém já havia passado por isso, acho que sim. O caminho dava numa encruzilhada e eu precisei domar a besta fera que havia em mim – um lobo uivador, nada encoleirado -, e percebia que de um lado estava o dia claro e, do outro, o umbral das horas feiticeiras da noite. Uma imagem de mulher se insinuou mais nítida: em silêncio ela me contemplava – não alcancei suas fases, mas quando a vi, parecia ser a deusa da Lua na Noite Terrível, a me dar sonhos de mistérios ocultos. Só podia ser. Duma feita, ela era Ixchel, a deusa com seus quatrocentos coelhos astecas, a filha de Tialoc. Doutra, uma desconhecida irreconhecível que me mostrava a festa de Heng-Ugo, enquanto me falava que a noite era uma rocha que escondia a história patética dos ritmos da vida e que eu havia de descobrir a iluminação das profundezas, no Mapa da Jornada. Foi neste exato momento que me apareceram os tártaros de Altay, para me contar que ali se escondia um velho canibal que foi raptado da Terra pelos deuses, para poupar a humanidade: eu estaria na boca do lobo. Onde estou? Nem se deram ao trabalho de me responder. Um deles disse: O vir-a-ser - as águas, a chuva, a fertilidade, a vegetação, a fecundidade, os destinos humanos sob a lei da variação periódica. No meio disso, emergiu a raposa Yurugu dos dogons, que me trouxe a primeira palavra divina num sonho iniciático. Foi quando de uma das torres apareceu Ártemis, envolvida por um colar de arco-íris a me apontar o escaravelho e era como se ela dissesse que ele iria me devorar para regeneração moral. Na verdade, pelo que pude adivinhar, ela queria mesmo era me castigar com sua virgindade, a me fazer Hipólito destemido diante de seus cães devoradores, para depois me supliciar. Pensei no seu intento e me surpreendeu ao se tornar Selênia: mostrou-se ciumenta e dominadora, e que eu tinha que pagar pelo que fiz à rainha Artemisa. Eu? Ela tão pálida e fria quanto inconstante, com todo recato virginal, vingava-se sem que eu sentisse por alguma coisa que não sei nem jamais saberia. E ao perceber meu amedrontamento, tomou bruscamente a minha mão e voamos numa revolução elíptica por vinte e sete dias. E me contou da rotação de Domenico Casini, da órbita kepleriana, da carta de Riccioli, da selenografia de Ibn Al-Haytham e Leonardo da Vinci, até a alunissagem, quando me levou pela face oculta até me mostrar os onze mares dali. E me apontou para a outra torre que resplandecia. Sim, eu vi, estava cada vez mais viva e brilhante. Ao me voltar para ela, desaparecia como se morresse na passagem da vida pra noite e vice-versa. O que me esperava, sequer imaginava. Da outra torre, veio-me Hécate: era a Noite Negra da Alma – a Jornada Noturna do Mar. A deusa poderosa sobre o céu e a terra, pareceu-me mais amigável. Não era, engano meu: uma tocha em cada mão e acompanhada de fantasmas e sortilégios, o inferno vivo. Quando olhei pros lados buscando saída, ela mais se agitou e me sequestrou por vinte e oito dias e, ao final, me deu o Nirvana, para que os brâmanes me levassem pelos vinte e oito estados paradisíacos. Ao retornar, ela me abraçou, beijou-me e nos possuímos longa e demoradamente: ela estava insaciável. No horizonte a claridade dava sinal de que eu não havia morrido, prestes ao próximo dia. Foi quando ela me concedeu a propriedade material, o dom da eloquência, e a vitória no jogo e nas batalhas. Presenteou-me com tudo isso, um beijo demorado e voou. Vi-me sozinho, fechei o livro. Tudo desapareceu. Sabia lá que aquilo estava entre Los libros malditos (Edaf Antilhas, 2005), da historiadora Mar Rey Bueno, que, aproveitou o ensejo, e me mostrou o Malleus Maleficarum, o Necronomicon de Abdul Alhazred por Lovecraft de Cthulhu, o Código de Voynich da Lei de Zipf que ninguém conseguiu ler, e eu lá queria saber, dissimulando feliz pela exposição daquelas publicações. Ofereceu-me todos e mais outros volumes que nem tive tempo de sacar quais eram e se foi com um adeus para sempre.

 


Repenteando... – Ao som do cordel Tataritaritatá - Foi aí que tomei pé da situação, depois das muitas e tantas leituras e revivescências, me danei a afinar a viola sem saber direito se cebolinha, cebolão, quatro pontos ou oitavado, qual? Dei aperto na canotilha, ajustei a toeira, dei um grau na turina, já comparando com a requinta, para chegar na prima e me ajeitar pro melhor dedilhado. E fui logo de Manuel Bandeira: Como qualquer violeiro / bom cantador do sertão, / a todos os quais, humilde, / mando minha saudação. E saí repenteando até com um olho só! Isso no embalo da vida, embolando solto, mandando ver na enrolação. Pudesse vir quem quisesse e de qualquer jeito sapecando mote preu glosar de leixa-prem: Não sei se fico ou se corro. Se corro ou se fico. Não sei se fico aqui ou se corro prali. Assim começava, recomeçava e nada de findar. Tudo só para ganhar a simpatia de Iaravi, com coisas impossíveis de Sol e de Lua, presenteando um repente da mulher. Só queria era ver o sorrido dela, coisa mais linda! Afinal, o que é um peido para quem está cagado, hem? Por isso, vou de repente qualquer jeito para ver como é que fica. E feito xexéu: no ano passado eu morri, mas este ano eu não morro. Solto na buraqueira, Cantador no desnorteio & tatataritaritatá! Aí vou contando desde menino que tomou água de chocalho na beira do rio, do que viu da Mãe da Lua e do Urutau, do Lunário Perpétuo e da sua autoria, do que vi e não vi, do que fiz e não fiz, só de uma coisa eu sei: só a poesia torna a vida suportável. Até mais ver.

 

Neste sábado, dia 25, às 16hs, estarei no Ciclo de Poesia Brasileira do Bacellartes, comandado pela Renata Barcellos, contando ainda com a presença da professora e poeta Marcia Ruth Kanitz, do Severino Honorato da Caravana Tin Tin Alves, da pesquisadora Arusha Kelly Carvalho e da doutora Lia Testa.

 

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