ANDEJO DA NOITE
E DO DIA (Imagem: foto Ali havia uma árvore, LAM/2016) – Sou pedestre ao amanhecer. A
cidade ainda dorme alheia ao espetáculo da alvorada. As ruas livres pros
gorjeio de pássaros peraltas e pros meus passos erradios entre poças e batentes
das irregulares calçadas alinhadas ou esburacadas entre o calçamento e barro
batido, todas lisas e cuido para não escorregar. Gosto de me perder nas
encruzilhadas, pelas curvas das ruas a sensação do desconhecido. Sou caminheiro
visionário e percebo na ausência de tudo que as pessoas roncam quase
silenciosas pelas frestas das residências, enquanto os motores adormecem nas
garagens, antes de invadirem o trânsito para transformarem a vida numa loucura
desorganizada. Na primeira esquina dobro a esmo, não sei precisamente onde
estou nem se chegarei a algum lugar, apenas caminho pelo meio fio, fitando
muros, portões, casas, prédios, até, quem sabe, encontrar no caminho de volta. Divago
na perdição, e me encontro de mim mesmo. Brinco como se entrasse pela perna de
pinto e saísse pela perna de pato, é o meu jeito de ser. E a cada passo refaço-me,
até que em certa altura do trajeto, tenho a sensação de que já estive por essas
paragens e vou relembrando partes do logradouro, quando me dou por certo num
ponto de parada da condução, sem sinalização, sem abrigo nem nada por
identificá-lo, lembrei-me disso, sim e havia uma árvore aqui por referência,
não há mais. Divisei com o primeiro morador no portão e ao perguntá-lo me
respondeu que há mais de quarenta anos que residia ali e já havia um pé de não
sei quê que seus avós e pais falavam de tempos, nem ele sabia ao certo quanto
nem de que era mesmo, mas que havia sido cortado ontem. Que coisa!?! Havia
tempo que eu não passava ali, acho que era um pé de amêndoa, não sei bem. Uma
vizinha ao ouvir nossa conversa disse que aquela árvore frondosa era o amparo
dos passageiros pra pegar o ônibus, agora nem sabe mais se é ponto de parada.
Outra moradora da mesma casa dizia que a árvore estava causando danos ao muro e
à residência em frente, uma casa pro dono dela muito frienta e cheia de bichos
de todas as espécies, levando-o a requerer por diversas vezes a sua derrubada,
até que lograra êxito e ela foi demovida ontem com raiz e tudo, por um
guindaste que removeu suas toras para o caminhão de uma empresa lá, parece que
da prefeitura ou prestadora de serviços, ninguém sabia direito. Arrancaram e
logo fizeram o serviço bem feito, como se nada antes houvesse ali. Ninguém dera
conta, pra eles nada demais. Alguém que pergunta qual a serventia de uma árvore
mesmo plantada numa calçada, atrapalhando o passeio e tudo na vida. É, pelo que
vejo, preferem a ausência dela. Realmente, pra eles, nada demais. © Luiz
Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais aqui.
UMA
MÚSICA
Enquanto caminhava soavam na ideia os acordes
do álbum Tacuchian: Música para piano
(ABM, 2005), do compositor, professor e maestro Ricardo Tacuchian, na interpretação de José Eduardo Martins, Max
Lifchitz, Anne Kaasa, Ingrid Barancoski, Sérgio Monteiro & Regina Martins.
PESQUISA:
MOMENTO DE REFLEXÃO - [...] A
cultura é superorgânica, mas ela também molda a mente de indivíduos. Sua
expressão individual é parte da produção de significado, a atribuição de
significados a coisas em diferentes contextos em ocasiões particulares.
Produzir significado envolve situar encontros com o mundo em seus contextos
culturais apropriados a fim de saber “do que eles tratam”. Embora os
significados estejam “na mente”, eles têm suas origens e sua importância na
cultura na qual são criados. É esta localização cultural dos significados que
garante sua negociabilidade e, no final das contas, sua comunicabilidade. Não
se trata, aqui, da existência, ou não, de “significados particulares”; o
importante é que os significados constituem uma base para o intercâmbio
cultural. Nesta visão, saber e comunicar são, em sua natureza, extremamente
interdependentes, de fato praticamente inseparáveis. Por mais que o indivíduo
pareça operar por conta própria ao realizar sua busca de significados, ninguém
pode fazê-lo sem o auxílio dos sistemas simbólicos da cultura. É a cultura que
fornece as ferramentas para organizarmos e entendermos nossos mundos de maneira
que sejam comunicáveis. A característica distintiva da evolução humana é que a
mente evoluiu de uma forma que permite que os seres humanos utilizem as
ferramentas da cultura. Sem ferramentas, sejam simbólicas, sejam materiais, o
homem não é um “macaco nu”, mas uma abstração vazia. [...]. Trecho extraído
da obra A cultura da educação
(ArtMed, 2001), do psicólogo e professor estadunidense Jerome Bruner (1915-2016), líder do movimento denominado de
Revolução Cognitiva, ocorrido na década de 1960, introduzindo novas
perspectivas ao estudo da mente na superação do behaviorismo que focava apenas
os fenômenos observáveis.
UM LIVRO: A
ALEGRIA
Meu coração
esbanjou vaga-lumes / se acendeu e apagou / de verde em verde / fui contando / Com
minhas mãos plasmo o solo / difuso de grilos / modulo-me / com / igual submisso
/ coração / Bem-me-quer mal-me-quer / esmaltei-me / de margaridas / enraizei-me
/ na terra apodrecida / cresci / como um cardo / sobre o caule torto / colhi-me
/ no tufo / do espinhal / Hoje / como o Isonzo / de asfalto azul / me fixo.
Aniquilamento, poema extraído da obra A Alegria (Record, 2002), do poeta e professor italiano Giuseppe Ungaretti (1888-1970).
PENSAMENTO DO DIA:
UMA GATA EXTRAORDINÁRIA – Em uma casa, de certo país, há um rato enorme e muito
perigoso. Para libertar-se dele, o proprietário da casa apela para todos os
mestres-gatos que ele conhece. O primeiro gato que se apresente é um grande
atleta, um gato muito forte. Mas, para surpresa de todos, este gato, que sempre
fora vitorioso, é vencido pelo rato. Apresenta-se um outro gato que diz ao
primeiro: “É perfeitamente normal que você tenha sido vencido, porque à sua
força opôs-se uma outra força. É preciso se servir da força do inimigo para que
ele se autodestrua”. Este gato conhece bem as artes marciais. Entretanto,
apesar de aplicá-las com toda competência, é vencido. Chega ainda um outro gato
que diz: “Todos os meus predecessores não compreenderam. Este tipo de tato só
pode ser vencido com o poder do espírito”. Senta-se em uma postura adequada par
hipnotizar o rato. Mas isso de nada adianta. Então, eis que chega uma velha
gata que não tem um ar extraordinário. Entra no quarto, vai diretamente ao
rato, pega-o pela pele do pescoço e joga-o fora. Todos os mestres-gatos lhe
perguntam: - “O que você fez? Qual foi a sua técnica? Quem é o seu mestre? Qual
é a sua energia? Como isso é possível?” E ela lhes responde: - “Eu não tenho
técnica. Quando entrei neste quarto não tinha nenhuma ideia, nem sobre o rato
nem sobre o modo de vencê-lo. Simplesmente escutei o movimento do meu ventre, o
movimento da vida em mim e fiz o que me pareceu certo”. esta é a força do hara.
E completa: - “Nada tenho de especial. Conheço em um país vizinho, alguém que é
muito mais forte do que eu. É um velho gato, muito gentil, que passa seus dias
dormindo, deitado em um banco. Mas no país onde ele mora não existem ratos”. Trecho extraído da obra Practica del camino interior: lo cotidiano como ejercicio
(Mensajero, 1994), do psicoterapeuta, Mestre-Zen e diplomata alemão Graf Dürckheim (1896-1988), um adepto
do nazismo veterano da I Guerra Mundial que, ao ser preso no Japão na II Guerra
Mundial, transformou-se espiritualmente, tornando-se defensor da esotérica
tradição espiritual ocidental ao sintetizar ensinamentos do misticismo cristão,
Psicologia Profunda e Zen Budismo.
UMA IMAGEM
A arte da premiada fotógrafa e fotojornalista Ana Carolina Fernandes.
Veja mais sobre Começar e recomeçar todo dia e o dia todo,
Caio Fernando Abreu, Palmares,
Celso Furtado, Geraldo Vandré, Karl Marx & o suicídio, Auta Souza, Marisa
Orth, James Foley, Elsa Schiaparelli, Huan Zheng Yang & Literatura Infantil
aqui.
E mais:
Fecamepa: de Pindorama à carta
de Sardinha aqui.
Ratadas &
atassalhaduras,
Honoré de Balzac, Jean-Luc
Godard, Montaigne, Direito de amar
& danos de amor, Suzana Salles, Charlotte
Wolter, Cécile
Camp, Milo Moiré, Louis Maeterlinck, Louis
Hersent & Pessoa
de Araújo Lopes aqui.
DESTAQUE: CÉLIA GOUVÊA
A arte da bailarina e coreógrafa Célia Gouvêa que integrou o grupo belga Chandra e uma das
fundadoras do grupo Chandra.
CRÔNICA DE AMOR POR ELA
Reclining
nude, do artista plástico neozelandês Tess Gubrin.
CANTARAU: VAMOS APRUMAR A CONVERSA
Inner Peace, by Kerry Lee
Paz na Terra
Recital Musical Tataritaritatá - Fanpage.