O DESPACHO DAS
PEDREIRAS - Um pandemônio ocorreu naquela manhã
pelas bandas das Pedreiras. O zoadeiro se dera porque no cruzamento principal
do bairro ribeirinho, um despacho tinha de tudo: carne defumada, galinha preta,
farofa, cachaça, velas, santo de barro, fumaça de incenso, brebotes e o
escambau. Quem era doido de passar? Vôte! Macumba pesada na encruzilhada,
tinham certeza todos dali. É que exatamente nesse entroncamento, já houvera muitos
envultamentos e sortilégios, diziam, uma maldição. Entre temerosos e crédulos,
o que dá no mesmo, todos toravam aço e se agoniavam da sina: Teve gira nessa
pega. E agora? No desespero, só havia uma solução, convocar a maior autoridade
nesses assuntos: Sebastião Esprita. Não demorou muito, chegou ele para socorrer.
Encarou a troçada: Ah, nada, isso é oferenda aos ancestrais e santos da devoção
dos fiéis do catimbó, nada demais. O povo estremeceu e logo muitos reclamaram: Tais
brincando, meu? Rapaz, não te mete na bronca alheia, isso dá atraso de vida. E
ele com aquela mansidão peculiar: Gente, o medo não existe, a gente que cria. E
caía às gaitadas expondo o dente de ouro com aquele ar de quem sabe das coisas e
sempre arrumando um jeito de resolver o que fosse pra sair do aperto, douto que
era de escapar ileso de qualquer perigo. Ah, isso é um santo de pau oco! Tá
enrolando a gente, viagem perdida. A-há! Xá, comigo, isso é coisa de Exu, se
vocês querem, resolvo isso em dois tempos, peraí. Pois desfaço tudo e volta tudinho
pro espírito ruim que emborcou esse negócio aqui, destá. E danou-se a desfazer o
troço já que tinha estreita intimidade com as coisas sobrenaturais, tendo até
quem garanta o compadrio dele com o criador. Não era de errar na dose nem no
remédio, prescrevia receituário em tacos de papel ou pules de bicho, com uma
garrancheira triste e ilegível, dos da botica terem dor de cabeça para
adivinhar e traduzir o quê que droga de nove era aquilo que desescreveu pros
enfermos solicitantes. Conhecia todas as Escrituras sagradas e profanas, e
guardava conhecimento profundo sobre religiões, das leis de Deus e dos homens,
coisas do outro mundo e ocultidões irreveláveis, afora ser um poliglota
insuperável de idiomas inventados e línguas desaparecidas, ensinando o bêabá com
palavras edificantes e pregando com invulgar competência, baixando espíritos,
dando passes e curando doente e são de nó pelas costas. Por via de dúvidas, portava
um revólver nos quartos escondido pelo paletó bufento que ninguém sabia que cor
que era de tão surrado, acaso esgotassem seus recursos mediúnicos, além de um
par de algemas nos bolsos e um molho de dinheiro na algibeira: Ninguém é besta
de sair à toa, né? Era um curioso benfeitor, posto que se fazia de engenhoso
com muitos prodígios e milagres que já obrara praquela gente de boa fé e
idiotas sossegados da região. Entre as suas práticas estavam a de estancar sangue
efusivo dos escravos da cana, desencantamento da perna cabeluda, a poesia do
senador-presidente, a salvação da lavoura nas enchentes de antigamente e de
agora, a água milagreira do Cocão do Padre, as duas mil caveiras de
Japaranduba, a ressurreição das almas de Catuama, o aterro do açude de Santa
Luzia, a cura de Frei Damião, as duzentas mil mortes nas caldeiras da usina, os
dois milhões de acidentes da BR 101-Sul, o incêndio das barracas de fogos de
artificio, o deslizamento das barreiras de Bigode, a safra da fruteira de Paul,
a farra de Cantochão, os afogamentos do Una e Pirangi, a falência de Serro
Azul, o êxodo de Santantoin das Trempes, o aluamento de Vênus, o extermínio dos
bichos da mata de Xareta, a derrocada de Sapucaia, a febre dos esquálidos, a
prenhez das parideiras, o peixe dos pescadores, a salvação dos pecadores, a adimplência
dos trambiqueiros, a menstruação das piniqueiras, a saúde dos doentes, o perdão
dos capatazes, os tons dos bordões, o êxito dos caçadores, o refúgio dos
ladrões e a porratoda do que aparecesse pela frente. Pois nessa hora, não teve
dúvidas, ele tomou uma meiota de cachaça duma vez só, fez quatro nas pernas, espritou-se
todo arrepiado, pinotou, plantou bananeira, fez que ia e não foi, deu uma
doidice, engrolou a língua, sapecou gestos obscenos e benzeduras, deu
estrimilique e caiu duro no chão. Dali a pouco ele se levantou, bateu a poeira
da roupa e disse: Pronto, podem trabalhar em paz. E foi-se. Mal deu as costas,
o povo começou a se agitar com o acometimento de um e outro cair em
maledicências, da gritaria arrastar as vítimas de carro de mão pro hospital
regional. Oxe! Que é que é isso, gente? Aí ele aumentou a dose: respirou fundo,
fechou os olhos e levitou na frente de todo mundo, subindo mais de metro a
girar e falando coisas que não dava pra ninguém entender. Não deu outra, logo
os acamados se levantaram e vieram se ajoelhar onde ele fazia a sua performance
de escolhido dos deuses. Tudo voltou à paz, ainda bem. Houvesse o que fosse,
ele intervinha e resolvia em poucos minutos, isso por décadas, o que lhe
crescia na reputação. De tanto salvar gente, bichos, coisas e desejos, um dia
deu ele de morrer e virar um inesquecível fantasma do bem que passa o dia
brincando com as crianças ou evitando algum desavisado de acidentes ou situação
difícil. Por isso até hoje o povinho dali recorre dos seus préstimos. © Luiz
Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais aqui.
DITOS & DESDITOS
[...] o fragmento é a
forma mais comum pela qual o implícito se manifesta. Daí decorre seu uso frequente
em poesia, quando a imposição discursiva, o corpo fixo e estrito da linguagem
estão suspensos. Daí também decorre seu uso não menos frequente em pintura: o
detalhe incongruente, insignificante em si, surge não se sabe de onde, e até
mesmo as interpretações mais aguçadas não conseguem enquadrá-lo inteiramente. O
paradoxo do fragmento deriva do fato de ele ser ao mesmo tempo único, fechado
em si mesmo como um porco-espinho, e reflexo do conjunto que ele condensa e
traz à luz. De certo modo, ligado e desligado; nisso, ele atua no limite entre
aparição e desaparição – aparição enquanto corpo bem definido, desaparição
enquanto se deixa reabsorver pelo conjunto de que é signo. Ao marcar o
interstício imperceptível entre um todo – o mundo – e aquilo que o acompanha
sem ruído nem existência – o vazio -, o fragmento deriva do corpo e do
incorporal, sempre no limite de voltar a ser sem consistência, ou de apresentar
em um único ponto e em um só momento, estoico, a consistência do todo. [...]
aquilo que chamo de momento estoico
aflora aqui, a nosso alcance, com a condição de haver uma inversão ou uma
abolição da perspectiva – aquilo que o ciberespaço, mas também o big nothing,
nos ensinou a fazer. Desse modo, assim como o fragmento é a forma literária por
meio do qual o implícito se manifesta, e assim como o implícito é a forma
familiar do virtual e do exprimível, a paisagem é, para nós, a figura familiar
do incorporal, do lugar e do vazio.
Trecho
extraído da obra Frequentar os
incorporais: contribuição a uma teoria da arte contemporânea (Martins
Fontes, 2008), da filósofa, romancista, ensaísta e artista francesa Anne Cauquelin. Veja mais aqui.
ACORDES DE ZÉ CELSO
O
musical Acordes (2012), do dramaturgo
e ator José Celso Martinez Corrêa, pelo Teatr®o Oficina Uzyna Uzona, é
uma versão de “A peça didática de Baden-Baden sobre o Acordo”, de Bertolt
Brecht, abordando sobre o altruísmo humano. O espetáculo foi acusado por crime
de desrespeito a objeto religioso, com pena prevista de detenção de um mês a um
ano ou multa, por conta da cena de decapitação de um boneco representando o
papa. A ação proposta em juízo foi julgada extinta pelo juiz José Zoéga Coelho.
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A FOTOGRAFIA DE JOEL-PETER WITKIN
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