ISADORA DUNCAN - A bailarina estadunidense Isadora Duncan (1878-1927) desde a
infância extremamente pobre, ela já dançava acompanhada ao piano por sua mãe e
aos seis anos ensinava às crianças da vizinhança, chegando a abandonar os
estudos escolares para, com sua irmã Elizabeth, lecionar nas famílias ricas.
Aos 17 anos mudou-se para a Europa, iniciando a carreira de dançarina em festas
da alta sociedade de Londres. Estudou a arte grega, inspirando-se nas figuras
de frisos e vasos. Viveu em Paris, inspirando Rodin e Bourdelle, e tornando-se
quase um mnito. Nos lugares por onde passou, buscava fundar uma escola que
educasse através da arte, porém, só obteve êxito ao seu convidada, em 1917, à
Rússia, quando casou-se com o poeta Iessenin. Sua vida foi marcada por grandes
tragédias, desde a morte de seus dois filhos, afogado no rio Sena, em Paris, o
suicídio de seu marido, até a sua própria morte em Nice, quando viajando em um
carro aberto, a echarpe que trazia ao pescoço se enrolou numa das rodas,
estrangulando-a. Ela foi a precursora da dança moderna no séc. XIX, provocando
verdadeira revolução no panorama da dança de espetáculo, rompendo com os dogmas
do balé e trazendo a improvisação e a espontaneidade como principais
características de seu modo de dançar. Pés descalços, vestida com uma leve
túnica, tendo como cenário apenas uma cortina azul, foi exaltada por uns e
violentamente criticada por outros. Sua dança não pode ser descrita segundo
padrões estéticos, por representar exclusivamente uma projeção de sua
personalidade e de seu temperamento. Em sua época ela foi, como artista e como
ser humano, sob todos os aspectos, o rompimento com a tradição e com os dogmas:
sua vida transformou-se em luta incessante pela realização de seus ideias. Veja
mais aqui.
O SEGUNDO SEXO, DE
SIMONE DE BEAUVOIR - [...] O mito da mulher desempenha um
papel considerável na literatura; mas que importância tem na vida quotidiana?
Em que medida afeta os costumes e as condutas individuais? Para responder a
essas perguntas seria necessário determinar as relações que mantém com a
realidade. Há diversas espécies de mitos. Este, sublimando um aspecto imutável
da condição humana que é o "seccionamento" da humanidade em duas
categorias de indivíduos, é um mito estático; projeta em um céu platônico uma realidade
apreendida na experiência ou conceitualizada a partir da experiência. Ao fato,
ao valor, à significação, à noção, à lei empírica, ele substitui uma ideia
transcendente, não temporal, imutável, necessária. Essa ideia escapa a qualquer
contestação porquanto se situa além do dado; é dotada de uma verdade absoluta.
Assim, à existência dispersa, contingente e múltipla das mulheres,
o pensamento mítico opõe o Eterno Feminino único e cristalizado; se a definição
que se dá desse Eterno Feminino é contrariada pela conduta das mulheres de
carne e osso, estas é que estão erradas. Declara-se que as mulheres não são
femininas e não que a Feminilidade é uma entidade. Os desmentidos da
experiência nada podem contra o mito. Entretanto, de certa maneira, este tem sua
fonte nela. Assim é exato que a mulher é outra e essa alteridade é
concretamente sentida no desejo, no amplexo, no amor; mas a relação real é de
reciprocidade; como tal, ela engendra dramas autênticos: através do erotismo,
do amor, da amizade e suas alternativas de decepção, ódio, rivalidade, ela é
luta de consciência que se consideram essenciais, é reconhecimento de
liberdades que se confirmam mutuamente, é a passagem indefinida da inimizade à
cumplicidade. Pôr a Mulher é pôr o Outro absoluto, sem reciprocidade, recusando
contra a experiência que ela seja um sujeito, um semelhante. Na realidade
concreta, as mulheres manifestam-se sob aspectos diversos; mas cada um dos
mitos edificados a propósito da mulher pretende resumi-la inteiramente. Cada
qual se afirmando único, a consequência é existir uma pluralidade de mitos
incompatíveis e os homens permanecerem atônitos perante as estranhas
incoerências da ideia de Feminilidade; como toda mulher participa de uma
pluralidade desses arquétipos que, todos, pretendem encerrar sua única Verdade,
os homens reencontram, assim, ante suas companheiras o velho espanto dos
sofistas que mal compreendiam que o homem pudesse ser louro e moreno a um
tempo. A passagem para o absoluto já se exprime nas representações sociais. As relações
aí se fixam facilmente em classes, as funções em tipos, assim como na
mentalidade infantil as relações fixam-se em coisas. Por exemplo, a sociedade
patriarcal, apoiada na conservação do patrimônio, implica necessariamente, ao
lado de indivíduos que detêm e transmitem os bens, a existência de homens e
mulheres que os arrancam a seus proprietários e os fazem circular; os homens —
aventureiros, vigaristas, ladrões, especuladores — são geralmente condenados
pela coletividade; as mulheres, usando de sua atração erótica, têm a
possibilidade de convidar os jovens, e até os pais de família, a dissiparem seu
patrimônio sem sair da legalidade; apropriam-se de sua fortuna ou captam sua
herança; sendo esse papel considerado nefasto, chamam "mulheres más"
as que o desempenham. Na realidade, elas podem, ao contrário, apresentar-se em
outro lar — o do pai, o do irmão, do marido ou do amante — como um anjo da
guarda; tal ou qual cortesã, que explora ricos financistas, é um mecenas para
pintores e escritores. A ambiguidade da personagem de Aspásia, de Mme de
Pompadour torna-se facilmente compreensível numa experiência concreta. Mas, se
se afirma que a mulher é a fêmea do louva-a-deus, a mandrágora, o demônio,
confunde-se o espírito ao descobrir igualmente nela a Musa, a Deusa-Mãe, Beatriz.
Como as representações coletivas e, entre outros, os tipos sociais definem-se
geralmente por pares de termos opostos, a ambivalência parecerá uma propriedade
intrínseca do Eterno Feminino. A mãe santa tem como correlativo a madrasta
cruel; a moça angélica, a virgem perversa: por isso ora se dirá que a Mãe é
igual à Vida, ora que é igual à Morte, que toda virgem é puro espírito ou carne
votada ao diabo. Não é evidentemente a realidade que dita à sociedade ou aos
indivíduos a escolha entre os dois princípios opostos de unificação; em cada
época, em cada caso, sociedade e indivíduos decidem de acordo com suas
necessidades. Muitas vezes projetam no mito adotado as instituições e os
valores a que estão apegados. Assim, o paternalismo, que reclama a mulher no
lar, define-a como sentimento, interioridade e imanência; na realidade, todo
existente é, ao mesmo tempo, imanência e transcendência; quando não lhe propõem
um objetivo, quando o impedem de atingir algum, quando o frustram em sua
vitória, sua transcendência cai inutilmente no passado, isto é, recai na
imanência; é o destino da mulher, no patriarcado; não se trata, porém, da mesma
vocação tal como a escravidão não é a vocação do escravo. Percebe-se
claramente, em Comte, o desenvolvimento dessa mitologia. Identificar a Mulher
ao Altruísmo é garantir ao homem direitos absolutos à sua dedicação, é impor às
mulheres um dever-ser categórico. Não se deve confundir o mito com a apreensão
de uma significação; a significação é imanente ao objeto; ela é revelada à consciência
numa experiência viva ao passo que o mito é uma ideia transcendente que escapa
a toda tomada de consciência. Quando, em
Age d'homme, descreve sua visão dos órgãos
femininos, Michel Leiris oferece-nos significações e não elabora nenhum mito. O
deslumbramento ante o corpo feminino, a repugnância pelo sangue menstrual são
apreensões de uma realidade concreta. Nada há de mítico na experiência que
descobre as qualidades voluptuosas da carne feminina e não se passa ao mito
quando se tenta exprimi-las mediante comparações com flores ou pedras. Mas
dizer que a Mulher é a Carne, que a Carne é Noite e Morte, ou que é o esplendor
do Cosmo, é abandonar a verdade da terra e alçar voo para um céu vazio. Porque
o homem também é carne para a mulher; e esta é outra coisa além de um objeto
carnal; e a carne assume, para cada um e em cada experiência, significações
singulares. É, também, inteiramente verdade que a mulher — como o homem — é um
ser arraigado na Natureza; ela é mais do que o homem escravizada à espécie, sua
animalidade é mais manifesta, mas, nela como nele, o dado é assumido pela
existência, pertence também ao reino humano. Assimilá-la à Natureza é um
simples parti pris. Poucos mitos foram mais
vantajosos do que esse para a casta dominante: justifica todos os privilégios e
autoriza mesmo a abusar deles. Os homens não precisam preocupar-se em aliviar
os sofrimentos e encargos que são fisiològicamente a parte da mulher, porquanto
"são da vontade da Natureza"; eles se valem do pretexto para aumentar
ainda a miséria da condição feminina, para denegar, por exemplo, à mulher,
qualquer direito ao prazer sexual, para fazê-la trabalhar como um animal de
carga. De todos esses mitos nenhum se acha mais enraizado nos corações
masculinos do que o do "mistério" feminino. Tem numerosas vantagens.
E primeiramente permite explicar sem dificuldades o que parece inexplicável; o
homem que não "compreende" uma mulher sente-se feliz em substituir
uma resistência objetiva a uma insuficiência subjetiva; ao invés de admitir sua
ignorância, reconhece a presença de um mistério fora de si: é um álibi que
lisonjeia a um tempo a preguiça e a vaidade. Um coração apaixonado evita,
assim, muitas decepções; se as condutas da bem-amada são caprichosas, suas
reflexões, estúpidas, o mistério serve de desculpa. Enfim, graças ao mistério,
perpetua-se essa relação negativa que se afigurava a Kierkegaard infinitamente
preferível a uma posse positiva; em face de um enigma vivo, o homem permanece
só: só com seus sonhos, esperanças, temores, amor e vaidade; esse jogo
subjetivo que pode ir do vício ao êxtase místico é para muitos uma experiência
mais atraente do que uma relação autêntica com um ser humano. Em que bases
assenta, pois, uma ilusão tão proveitosa? Seguramente, em certo sentido, a
mulher é misteriosa, "misteriosa como todo mundo", na expressão de
Maeterlinck. Cada um só é sujeito para si; cada um só pode apreender a si
unicamente em sua imanência. Deste ponto de vista, o outro é sempre mistério.
Aos olhos dos homens a opacidade do para-si é mais flagrante no outro feminino;
eles não podem, por nenhum efeito de simpatia, penetrar-lhe a experiência
singular. A qualidade do prazer erótico da mulher, os incômodos da menstruação,
as dores do parto, eles estão condenados a ignorá-los. Na verdade, há
reciprocidade do mistério; enquanto outro, e outro do sexo masculino, há no
coração de todo homem uma presença fechada sobre si mesma e impenetrável à
mulher; ela ignora o que representa o erotismo do macho. Mas, segundo a regra
universal que verificamos, as categorias através das quais os homens encaram o
mundo são constituídas, do ponto de vista deles,
como absolutas: eles desconhecem, nisso como
em tudo, a reciprocidade. Mistério para o homem, a mulher é encarada como
mistério em si. A bem dizer, a situação dela a predispõe singularmente a ser
considerada sob esse aspecto. Seu destino fisiológico é muito complexo; ela
mesma o suporta como uma história estranha; seu corpo não é para ela uma
expressão clara de si mesma; ela
sente-se nele alienada; o laço que em todo indivíduo liga a vida
fisiológica à vida física, ou para melhor dizer, a relação existente entre a
facticidade de um indivíduo e a liberdade que a assume, é o mais difícil enigma
implicado pela condição humana: é na mulher que esse enigma se põe da maneira
mais perturbadora. Mas o que se chama mistério não é a solidão subjetiva da
consciência, nem o segredo da vida orgânica. É ao nível da comunicação que a
palavra assume seu sentido verdadeiro: não se reduz ao puro silêncio, à noite,
à ausência; implica uma presença balbuciante que malogra em se manifestar.
Dizer que a mulher é mistério não é dizer que ela se cala e sim que sua
linguagem não é compreendida; ela está presente, mas escondida sob véus; existe
além dessas incertas aparições. Quem é ela? Um anjo, um demônio, uma inspirada,
uma comediante? Ou se supõe que existem para essas perguntas respostas
impossíveis de descobrir, ou antes, que nenhuma é adequada porque uma
ambiguidade fundamental afeta o ser feminino; em seu coração, ela é para si
mesma indefinível: uma esfinge. O fato é que ela se veria bastante embaraçada
em decidir quem ela é; a pergunta não comporta resposta; mas não porque a
verdade recôndita seja demasiado móvel para se deixar aprisionar: é porque
nesse terreno não há verdade. Um existente não é senão o que faz; o possível não supera o real, a
essência não precede a existência: em sua pura subjetividade o ser humano não é nada. Medem-no
pelos seus atos. De uma camponesa pode-se dizer que se trata de uma boa ou má
trabalhadora, de uma atriz que tem ou não talento; mas se se considera uma
mulher em sua presença imanente, nada absolutamente se pode dizer, ela está
aquém de qualquer qualificação. Ora, nas relações amorosas ou conjugais, em
todas as relações em que a mulher é a vassala, o outro, é em sua imanência que
é apreendida. É impressionante o fato de a companheira, a colega, a associada
não terem mistério; em compensação, se o vassalo é masculino, se diante de um
homem ou de uma mulher mais velhos do que ele, mais ricos, um rapaz se
apresenta como o objeto inessencial, envolve-se ele também de mistério. E isso
nos revela uma infraestrutura do mistério feminino que é de ordem econômica. Um
sentimento também não ê nada. "No terreno dos sentimentos o real não se
distingue do imaginário, diz Gide. E basta imaginar que se ama para amar, por
isso basta dizer que se imagina amar, quando se ama, para amar um pouco
menos..." Entre o imaginário e o real só há discriminação através das
condutas. Detendo o homem neste mundo uma situação privilegiada, êle é que pode
manifestar ativamente seu amor; muitas vezes sustenta a mulher ou a ajuda,
Desposando-a, dá-lhe uma posição social; dá-lhe presentes; sua independência
econômica e social permite-lhe iniciativas e invenções. Separado de Mme de
Villeparisis, o Sr. de Norpois é quem fazia viagens de vinte e quatro horas
para vê-la. Muitas vezes ele tem ocupações, ela não faz nada; o tempo que passa
com Mme de Villeparisis êle o dá, ela o toma: com prazer, com paixão, ou simplesmente para
se distrair? Aceita ela esses dons por amor ou por interesse? Ama o marido ou o
casamento? Naturalmente as próprias provas que o homem dá são ambíguas: tal ou
qual dom é feito por amor ou por piedade? Mas, enquanto normalmente a mulher
encontra no comércio com o homem numerosas vantagens, o comércio com a mulher
só beneficia o homem na medida em que ele a ama. Por isso, pelo conjunto de
suas atitudes pode-se apreciar mais ou menos o grau de seu apego; ao passo que
a mulher quase não tem meios de sondar o próprio coração; segundo seu
temperamento, terá pontos de vista diferentes acerca de seus sentimentos, e
enquanto os suportar passivamente nenhuma interpretação será mais verdadeira do
que outra. Nos casos bastante raros em que ela detém os privilégios econômicos e
sociais, o mistério inverte-se: o que demonstra que se liga não a este ou àquele
sexo e sim a uma situação. Para grande número de mulheres os caminhos da
transcendência estão barrados: como não
fazem nada, não se podem fazer ser;
perguntam-se indefinidamente o que
poderiam vir a ser, o que as leva a
indagar o que são: é uma interrogação vã; se o homem malogra em descobrir
essa essência secreta é muito simplesmente porque ela não existe. Mantida à
margem do mundo, a mulher não pode definir-se objetivamente através desse mundo
e seu mistério cobre apenas um vazio. Demais, acontece que, como todos os
oprimidos, dissimula deliberadamente sua figura objetiva; o escravo, o criado,
o indígena, todos os que dependem dos caprichos de um senhor aprenderam a
opor-lhe um sorriso imutável ou uma impassibilidade enigmática; escondem
cuidadosamente seus verdadeiros sentimentos, suas verdadeiras condutas. À
mulher também ensinaram desde a adolescência a mentir aos homens, a trapacear,
a usar de subterfúgios. Chega-se a eles com máscara: é prudente, hipócrita,
comediante. Mas o Mistério feminino tal qual o reconhece o pensamento mítico é
uma realidade mais profunda. Em verdade, acha-se ele implicado imediatamente na mitologia do
Outro absoluto. Se se admite que a consciência inessencial é, ela também, uma
subjetividade translúcida, capaz de operar o
Cogito, admite-se que é, na verdade, soberana e
retorna ao essencial. Para que toda reciprocidade se apresente como impossível,
é preciso que o Outro seja para si um outro, que sua subjetividade mesma seja
afetada pela alteridade. Essa consciência que seria alienada enquanto
consciência, em sua pura presença imanente, seria evidentemente Mistério; seria
Mistério em si pelo fato de que o seria para si; seria o Mistério absoluto. Assim
é que há, para além do segredo que sua dissimulação cria um mistério do Preto,
do Amarelo, enquanto considerados absolutamente como o Outro inessencial.
Deve-se observar que o cidadão norte-americano, que desnorteia profundamente o
europeu médio, não é entretanto considerado "misterioso": mais
modestamente asseguram que não o entendem; do mesmo modo, a mulher nem sempre
"compreende" o homem, mas não há mistério masculino; é que a América
rica e o homem estão do lado do Senhor, e o Mistério é propriedade do escravo.
Bem entendido, não se pode senão sonhar nos crepúsculos da má-fé acerca da
realidade positiva do Mistério; como certas alucinações marginais, dissipa-se
logo que se tenta fixá-lo. A literatura malogra sempre ao pintar mulheres
"misteriosas". Elas podem somente surgir no início de um romance como
estranhas, enigmáticas; mas, a menos que a história permaneça inacabada,
terminam por revelar seu segredo e são então personagens coerentes e
translúcidos. Por exemplo, o herói dos livros de Peter Cheney não cessa de se
espantar com os imprevisíveis caprichos das mulheres: nunca se pode adivinhar
como vão conduzir-se, fazem abortar todos os cálculos; na verdade, logo que os
motivos de seus atos são desvendados ao leitor, elas se apresentam como mecanismos
muito simples: uma era espiã, outra ladra; por hábil que seja a intriga, há
sempre uma chave e não poderia ser de outro modo, ainda que o autor tivesse
todo o talento e toda a imaginação do mundo. O mistério nunca passa de uma
miragem, dissipa-se quando se tenta apreendê-lo. Vemos assim que o mito se
explica em grande parte pelo uso que dele faz o homem. O mito da mulher é um
luxo. Só pode surgir se o homem escapa à urgente imposição de suas
necessidades; quanto mais as relações são concretamente vividas, menos se
idealizam. O felá do antigo Egito, o camponês beduíno, o artesão da Idade
Média, o operário contemporâneo, têm, nas necessidades do trabalho e da
pobreza, relações demasiado definidas com a mulher singular que é sua
companheira para enfeitá-la como uma aura fasta ou nefasta. São as épocas e as
classes a que se concedem os lazeres do sonho que erguem as estátuas negras ou
brancas da feminilidade. Mas o luxo tem também uma utilidade. Tais sonhos são
imperiosamente dirigidos por interesses. Por certo, em sua maior parte, os
mitos têm raízes na atitude espontânea do homem para com sua própria existência
e o mundo que o cerca: mas a superação da experiência em direção à ideia
transcendente foi deliberadamente operada pela sociedade patriarcal para fins
de auto justificação; através dos mitos, ela impunha aos indivíduos suas leis e
costumes de maneira sensível e por imagens; sob uma forma mítica é que o
imperativo coletivo se insinuava em cada consciência. Por intermédio das
religiões, das tradições, da linguagem, dos contos, das canções, do cinema, os
mitos penetram até nas existências mais duramente jungidas às realidades
materiais. Todos podem encontrar nesses mitos uma sublimação de suas
modestas experiências: enganado por uma
mulher amada, um declara que ela é uma matriz danada; outro, obcecado pela
impotência viril, encara a mulher como a fêmea do louva-a-deus; outro ainda
compraz-se em companhia de sua mulher e ei-la Harmonia, Repouso, Terra nutriz.
O gosto a uma eternidade barata, a um absoluto de bolso, que se depara na
maioria dos homens, satisfaz-se com mito. A menor emoção, uma contrariedade,
tomam o reflexo de uma ideia não temporal; essa ilusão lisonjeia agradàvelmente
a vaidade. O mito é uma dessas armadilhas da falsa objetividade em que se lança
temeràriamente o espírito de gravidade. Trata-se mais uma vez, de substituir a
experiência vivida e os livres julgamentos que ela reclama por um ídolo imoto.
A uma relação autêntica com um existente autônomo, o mito da Mulher substitui a
contemplação imóvel de uma miragem. "Miragem! Miragem! Ê preciso matá-las
porque não podemos apanhá-las; ou então tranquilizá-las, informá-las,
dissipar-lhe o gosto pelas jóias, fazer delas nossas companheiras iguais,
nossas amigas íntimas, associadas neste mundo, vesti-las de outro modo,
cortar-lhes os cabelos, dizer-lhes tudo...", exclama Laforgue. O homem
nada teria a perder, muito pelo contrário, se renunciasse a fantasiar a mulher
de símbolo. Os sonhos, quando são coletivos e dirigidos, são bem pobres e monótonos
ao lado da realidade viva: para o verdadeiro sonhador, para o poeta, a
realidade viva é uma fonte muito mais fecunda do que um maravilhoso puído. As
épocas que mais amaram as mulheres não foram a do feudalismo cortês nem o
galante século XIX: foram as épocas em que — como no século XVIII — os homens
encararam as mulheres como semelhantes; é então que se apresentam como
verdadeiramente romanescas: basta ler Les
Liaisons dangereuses, Le Rouge et le Noir, Adeus às Armas, para percebê-lo. As heroínas de Laclos, Stendhal,
Hemingway não têm mistério; nem por isso são menos atraentes. Reconhecer um ser
humano na mulher não é empobrecer a experiência do homem: esta nada perderia de
sua diversidade, de sua riqueza, de sua intensidade, se se assumisse em sua
intersubjetividade; recusar os mitos não é destruir toda relação dramática
entre os sexos, não é negar as significações que se revelam autenticamente ao
homem através da realidade feminina; não é suprimir a poesia, o amor, a
aventura, a felicidade, o sonho: é somente pedir que as condutas, os
sentimentos, as paixões assentem na verdade. "A mulher se perde. Onde
estão as mulheres? As mulheres de hoje não são mulheres", viu-se qual o
sentido desses slogans misteriosos. Aos olhos dos homens — e da legião de
mulheres que veem por esses olhos — não basta ter um corpo de mulher, nem
assumir como amante, como mãe, a função de fêmea para ser "uma mulher de
verdade"; através da sexualidade e da maternidade, o sujeito pode
reivindicar sua autonomia; "a verdadeira mulher" é a que se aceita
como Outro. Há na atitude dos homens de hoje uma duplicidade que cria na mulher
um dilaceramento doloroso; eles aceitam em grande medida que a mulher seja um
semelhante, uma igual; e, no entanto, continuam a exigir que ela permaneça o
inessencial; para ela, esses dois destinos não são conciliáveis; ela hesita
entre um e outro sem se adaptar exatamente a nenhum e daí sua falta de
equilíbrio. No homem não há nenhum hiato entre a vida pública e a vida privada:
quanto mais êle se afirma seu domínio do mundo pela ação e pelo trabalho, mais
revela viril; nele, os valores humanos e os valores vitais se confundem; ao
passo que os êxitos autônomos da mulher estão em contradição com sua
feminilidade, porquanto se exige da "verdadeira mulher" que se torne
objeto, que seja o Outro. É muito possível que, neste ponto, a sensibilidade e
até a sexualidade do homem se modifiquem. Uma nova estética já nasceu. Se a
moda dos bustos chatos e das ancas magras — da mulher-efebo — durou pouco, não
se voltou contudo ao ideal opulento dos séculos passados. Pede-se ao corpo
feminino que seja carne, mas discretamente; deve ser esbelto e não empapado de
banha; com músculos, flexível e robusto é preciso que indique a transcendência;
preferem-no, não branco como uma planta de estufa, mas tendo enfrentado o sol
universal, tostado como um torso de trabalhador. Tornando-se prático, o vestido
da mulher não a fez parecer assexuada: ao contrário, as saias curtas
valorizaram mais do que outrora as pernas e as coxas. Não se compreende por que
o trabalho a privaria de sua atração erótica. Possuir a mulher ao mesmo tempo
como personagem social e como presa carnal pode ser perturbador: em uma séria
de desenhos de Peynet publicados recentemente, via-se um jovem noivo abandonar
a noiva porque era seduzido pela bonita prefeita que se dispunha a celebrar o
casamento. O fato de uma mulher exercer um "ofício viril" e ser ao
mesmo tempo desejável foi durante muito tempo um tema de piadas mais ou menos
livres. Pouco a pouco, o escândalo e a ironia se embotaram e parece que nova
forma de erotismo está nascendo: talvez venha a engendrar novos mitos. O que é
certo é que hoje é muito difícil às mulheres assumirem concomitantemente sua
condição de indivíduo autônomo e seu destino feminino; aí está a fonte dessas
inépcias, dessas incompreensões que as levam, por vezes, a se considerar como
um "sexo perdido". E, sem dúvida, é mais confortável suportar uma
escravidão cega que trabalhar para se libertar: os mortos também estão mais bem
adaptados à terra do que os vivos. Como quer que seja, uma volta ao passado não
é mais possível nem desejável. O que se deve esperar é que, por seu lado, os
homens assumam sem reserva a situação que se vem criando; somente então a
mulher poderá viver sem tragédia. Então poderá ver-se realizado o voto de
Laforgue: "Ó moças, quando sereis nossos irmãos, nossos irmãos íntimos sem
segunda intenção de exploração? Quando nos daremos o verdadeiro aperto de
mãos?" Então "Mélusine não mais sob o peso da fatalidade desencadeada
sobre ela pelo homem só, Mélusine libertada..." reencontrará seu
"equilíbrio humano". Então ela será plenamente um ser humano
"quando se quebrar a escravidão infinita da mulher, quando ela viver por
ela e para ela, o homem — até hoje abominável — tendo-lhe dado a
alforria". O SEGUNDO SEXO – O livro O segundo sexo: fatos e mitos, da
escritora, filósofa existencialista e feminista francesa Simone
Lucie-Ernestine-Marie Bertrand de Beauvoir, mais conhecida como Simone de
Beauvoir (1908-1986), alcançou repercussão internacional e marcou toda uma
geração interessada, como ela, na abolição do mito do éternel feminin. Tendo sofrido e vencido pela inteligência as
limitações seculares imposta à mulher, expõe nessa obra suas reivindicações e
denuncias, de modo que fica demonstrada sua forma lucidamente didática que
contribuiu de forma decisiva para a expansão da consciência feminina na segunda
metade do séc. XX. O livro trata de temos como os dados biológicos a visão
psicanalítica, o ponto de vista do materialismo histórico, Montherlant ou o pão do
nojo, D. H. Lawrence ou o orgulho fálico, Claudel e a serva do Senhor, Breton
ou a poesia e Stendhal ou o romanesco do verdadeiro. Veja
mais aqui, aqui e aqui.
REFERÊNCIA
BEAUVOIR, Simone. O segundo
sexo: fatos e mitos. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1970.
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Boi de fogo aqui.
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