sexta-feira, fevereiro 19, 2016

DUPLO ENGANO


DUPLO ENGANO

Luiz Alberto Machado


Logo de manhã um alvoroço estrepitoso se insinuava pras bandas do Neculino dificultando suas tarefas rotineiras. Justo num dia que o selecionado brasileiro enfrentaria mais um adversário, em jogo válido pela copa do mundo. Pode um negócio desses? O escrete canarinho era favoritíssimo na contenda, campeões antecipados, claro, como sempre. Eita que rebuliço!

Era correria para tudo quanto fosse lado que aparecesse. E Neculino, apesar do cansaço do trabalho da noite anterior, estava afoito, numa pressa por concluir todas as suas tarefas para, depois, gozar do privilégio de assistir, todo pabo, à transmissão da pugna futebolística pela televisão.

Preocupado com isso, ele agilizou o máximo que pôde, restando ainda cumprir duas pendências transferidas para o segundo horário, logo após as comemorações vitoriosas da partida. Deixaria, assim, para depois, transportar dois funerais.

- Como é que o cara acha de morrer justo na copa do mundo? Não tem outro horário melhor para se escafeder, não? Puta-que-o-pariu, o desgraçado não pode nem ver o Brasil ganhar! –, reclamava ele todo cheio de pacutia, franzindo o cenho numa careta chorosa.

Na verdade, indisposto como estava naquela manhã devido a um sepultamento de um distinto durante a noite, tendo que, inclusive, servir de ajudante de coveiro, responsabilidade que muito lhe contrariou. Havia sido, por isso, uma noite longa, cansativa e chuvosa. Tivera que se esforçar ao máximo para abrir os olhos de manhã. Não saía da sua cabeça aquele enterro velado simplesmente por um irmão e uma cunhada do de cujus, ainda assim, ocupados em segurar o candeeiro para iluminar o fosso. Um trabalhão dos grandes e, deveras, bastante curioso. O defunto devia de ser de maus bofes visto que enterrado de noite, à presença apenas de duas pessoas, não deveria de ter muito amigos e, segundo juízo do próprio Neculino, ou ele fora vítima de doença das ruins que ninguém deveria saber; ou era de morte matada por alguma falta grave cometida.

- Onde já se viu enterrar gente de noite, oxente? –, replicava, compreendendo, cada ser humano com o seu mistério.

Após concluir o sórdido serviço, na viagem de volta, notou um silêncio desagradável. Uma troca de olhares constantes entre os dois presentes no assento traseiro, um nervosismo, uma ansiedade, algo de estranho estava encobrindo aquele féretro.

Eis que, com essas atividades concluídas dormiria a ronco solto madrugada adentro. Contudo, mal abrira os olhos e se defrontara com a obrigação de correr para apanhar, a tempo, o grande clássico televisivo, unindo-se a toda torcida brasileira que, em horas dessas, pára o coração, o que fazer, a vida e o mundo, para acompanhar, passo a passo, as firulas que sucederiam do primeiro para o segundo tempo nos gramados do esporte bretão.

Chiando que só, após encarar duas recomendações deixadas pelo proprietário da empresa funerária, seu Langal Satangoz, no tabeliê do veículo, determinando-o a proceder o recolhimento no necrotério de dois cadáveres associados, encaminhando-os aos familiares com os respectivos apetrechos cerimoniais. Com isso, coçou o cocuruto e ficou bastante empertigado.

A contenda esportiva já estava prestes a se iniciar e a correria já era das grandes. Todo mundo queria testemunhar a esquadra brasileira derrotando, humilhantemente, o selecionado opositor que se intrometera naquela chave do certame. Tencionavam todos que a peleja em vista, seria vitoriosamente massacrante para o desavisado algoz, para ampliar ainda mais, a coleção de troféus já em poder da nossa cidadania. Nem de longe qualquer pessoinha deste rincão de meu Deus que pensasse numa derrota, jamais poderia acontecer, fato mais difícil que qualquer paradoxalidade pudesse determinar, uma torcida aguerrida acostumada a vencer, vencer e vencer.

- Se a gente não ganha na vida, ganha no campo, na raça!

E já ajeitava cinco cervejas bem geladinhas no interior de um pote com o fito de mantê-las bem friínhas para consumo durante as emoções. Toda empáfia verde e amarela cobria seu coração, era o orgulho de ser brasileiro, batendo no peito e esquecendo àquelas horas do torturante dia a dia em que se reclamava da desonestidade, da ladroíce, da esculhambação que corrompia a sanidade da soberania nacional. Estava nervoso, coração disparando com os minutos antecedentes a partida.

Com o pontapé inicial Neculino jogou tudo pra cima, negligenciando para outra ocasião os seus afazeres. Jurava ser brasileiro e não seria nenhum crime deixar pra depois as responsabilidades a ele incumbidas, num instante em que se requeria a manifestação mais radiante de brasilidade. Estava ciente que o seu papel naquele momento era torcer e encarava tal responsabilidade como a de um recrutado para guerra, defender os símbolos e raça nacionais.

A cidade se acalmara repentinamente. Parara. O comércio cerrara suas portas e a população em peso se encontrava agora escondida, recolhida às atenções de um aparelho televisor, seja no interior das residências; seja nos bares, rodoviárias, praças, recintos, onde se acompanhavam os momentos dos traços, dos banhos de cuias, toques da vaca, das desatenções dos juízes filhos da puta contra a gente e dos bandeirinhas nacionalistas que marcavam impedimentos inexistentes na área dos adversários, além dos olés administrados pelos adeptos conterrâneos.

Dado assim o início da partida, a narração foi à tona e uma taquicardia geral tomou conta de toda nação verdamarela.

Não demorou muito o bombardeio de fogos no centro da cidade. Arrepio mesmo foi com o anúncio dos jogadores, cada um deles ovacionado lá nas gerais e aqui nos cafundós do mundo.

A crítica esportiva de todo país reclamava do desentrosamento dos nossos jogadores, entretanto, Neculino vibrava às bandeiras desbragadas com a escalação.

Torcedor doente do Flamengo e Biriteiros Futebol Clube, xingou por muito tempo a não convocação de todos os jogadores do time carioca, escalando apenas três para a titularidade do selecionado. É certo que não passariam vexame, garantia ele, esnobando sua camisa rubro-negra comprada anteontem numa tolda ao redor do mercado.

- Na trave! Pra fora!

Urrava ferozmente o nosso irradiador durante a guerra do primeiro tempo. Unhas roídas, mesas esmurradas, acentos afolosados do senta-levanta – será um naicron? – respirações ofegantes tudo acompanhava detidamente cada lance da partida.

Três cervejas consumidas e terminara com muita aflição o primeiro tempo. Para os reclames comerciais.

Durante o intervalo cada um se tornara um verdadeiro comentarista autorizado expondo suas eficiências de representante maior para escalar o time como deveria, uns a mais dos milhões de técnicos que fazem parte desse Brasilzão véio, arrevirado e de porteira escancarada de meu Deus.

O jogo estava bastante nervoso, lá e cá, a seleção dava orgulho de assistir.

Uma lourinha suada destampada com efusão e lá corria a bola no segundo tempo e era chute para lá, tiro-de-meta, escanteio, discussões, puta merda, que agonia! Era falta, lateral, cacete, triscou na trave! Juiz ladrão, filho da puta! Zero a zero. A torcida em polvorosa com o embate: raspou no travessão! Uuuuuuuuhhhhhhhhhhhhh! Respiravam aliviados. E a bola não entrava no fundo das redes. Pressão maciça, até o nosso goleiro espiava o jogo no meio de campo, quase um beque central e todo mundo na pequena área do inimigo. Verdadeiro buruçú! Gol demorado, goleiro deles defendendo tudo!

- Vamo logo contratar esse goleiro pro lado da gente, porra!

Da parte de Neculino, dependesse dele, já havia fechado o negócio e contrato assinado com testemunha e tudo, dinheiro no bolso, comissão rica, e tudo mais daquele defensor se naturalizar com as nossas cores e defender nossas balizas, visto que era bom demais, agarrava até pensamento.

Bola no meio do campo, dribla um, driblando dois, levando borracha, cartão amarelo.

- Isso mesmo, é vermelho nele, urubu! Bota esse caceteiro logo pra fora senão ele mata o time da gente todo!

Era uma tensão nervosa no ar já além dos quinze minutos do período regulamentar e o placar inalterado, empate dos brabos, parecia mais que os anjos e as autoridades do céu estavam do contra.

- Eita! Lascaram agora a perna do Zico! Quebraram ele, pelo jeito!

Confusão instaurada no gramado e fora dele, a polícia entrou em campo como manda o figurino e baixou a lenha. Oito minutos depois, tudo contornado, ninguém expulso do lado contrário, a bem do episódio, numa ladroagem braba, vista grossa e cegueira do cu da mãe do juiz, o de preto mandou a bola rolar. Zico, o próprio, se preparou para bater a falta, afastando-se um pouco da pelota – coisa que conhecia muito bem – e não se afastava muito, com toda intimidade que Deus lhe deu com a redonda, bateu com classe, sem malvadar a gorducha, fez um serviço com a presteza e exatidão dos exímios deuses do futebol, fato que lhe era peculiar, superando a altura da barreira com um efeito de OVNI e indo, o artefato esférico, se acomodar confortavelmente, slow motion, no ângulo, até o fundo das redes, indefensável para qualquer milagreiro que inventasse de defender com os braços de borracha, tanques de guerra e armário de todo mundo, num toque de magia, de genialidade, de rei, de Pelé, é Gooooooooooolll! Goooooooooooollllll! Um grito uníssono em todo nosso sofrido território, que felicidade! Não havia nada mais importante para Neculino do que um golaço daqueles para lhe afagar o ego, a autoestima, a ternura, a vontade de viver e de ser mais um orgulhoso representante das cores verde, amarela, azul e branca. O pavilhão nacional estava ouriçado nas mãos de muitos compatriotas que se felicitavam uns aos outros numa irmandade feliz e altaneira, enquanto os jogadores se emendavam num bolo único de abraços, a população unânime ofertava em brinde a mesma atitude aos seus afetos e desafetos.

Era vizinho, cunhado, sogra, genro, a família novamente reunida, tão díspares propósitos, era o Brasil, campeão! Uma confraternização geral e sem cor, sem religião, sem frescura. Ricos e pobres ali, naquele gol, da mesma linhagem. Agitação geral, um a zero, um golaço perfeito para fanático nenhum botar defeito.

- Deus realmente é brasileiro! –, comprovava Neculino.

A quinta cerveja já no fim, suplicava mais um gol, por favor, mais um golzinho, mais um golzinhozinho, pirrototinho, por favorzinho! E o locutor quase sem respiração e com emotividade exagerada destabocava os detalhes das jogadas. E ia a bola para frente, toque, firula maneira, drible de corpo, na linha de fundo, cruzamento, estufa no peito, de primeira, tei bei! É gooooooollllllll! Gooooolllllll! O foguetório com a porra a explodir por todo lugar, pei buf: dois a zero! Agora é só olé. Um marcador perigoso, mas bem descansado. Faltando cinco minutos para dar por encerrada a partida, o adversário diminuiu o escore para dois a um e estava todo pressão na nossa defesa.

- Segura, goleiro, segura, defende tudo pelo amor de Deus!

Torando o aço, passando apertos nunca dantes arrochados, assim a gente vai morrer do coração com um desses jogando na defesa, na retranca feito timinho de terceira categoria, vai pra frente porra! Joga essa bola como se sabe, desgraçado, num deixa ela vir não, pelo amor de Deus! Um drible desses na nossa área não, desgraçado! Dentro da área da gente, claro que não, porra! Quer que a gente morra, filho de uma puta? Tira da área, dá um chutão, perna-de-pau! Bota o pé na fôrma, aleijado! Trinado longo e o juiz aponta para o centro do campo, finalizando o jogo. A euforia virando festa no Brasil.

- Para quê trabalhar se a gente já é campeão!?! Pode escrever aí: vamos ganhar da Alemanha, da Itália, da Argentina e de quem mai vier! Tudo de zero! Vamos ser penta, hexa, octo, eneacampeões! Tudocampeões! Com letra maiúscula mesmo, escreva! Teocampeões! Héliocampeões!

Neculino com toda euforia não escondia sua satisfação desmedida. Estava convicto disso. Dirigiu-se ao boteco mais próximo, extravasando mais ainda sua alegria incontida, ingeriu duas lapadas da tirana, mais outra de pau-de-índio, outra de raiz-de-pau, mais da lapada-do-capeta, rabo-de-galo, coquetel abrasivo, solução de bateria, creolina aditivada, purgante do diabo, água sanitária, amoníaco, mingau de cachorro, elixir paregórico, óleo de rícino, soda cáustica e outras misturas endiabradas de forte teor alcóolico, de deixar o sujeito arrancando cabelo da perna e mangando dos outros na maior bazófia.

Com o efeito ele dançou, gingou, vira-virou! E vira vira vira, vira vira vira, vira vira vira, virou! Tomou de uma vez, de uma só talagada, uma suadeira lavando a cara, o peito e a alegria, virado no cão com a gota!

Empolgado na comemoração ele se esfregou em Denisite, uma gata que morava na esquina da rua, num chambrego só destravado após uns bregues de comparecentes ofendidos. Aí ele foi sambar com a Pata Cabeluda, com Mamberta, Jupira, Xucaxinha, Mara Doida, Angélica Preta e Maria Desmaravilhosa. Tildinha, uma galegona assanhada, queria foder com ele por um cigarro, era só ele dar um cigarro a ela e ela abria as pernas numa foda gostosa.

- Queres fumar ? –, aproximou-se dela cheio de plurais: – disponho aqui de um cigarretes da melhor marcas! Sacous? –, concluiu totalmente assanhando e com um brunido nos olhos.

No meio do ouriço João Leno, o neguinho serviçal da funerária, viera acordá-lo daquele sonho maravilhoso, chamando-lhe pela responsabilidade.

– Pô, meu! Deixa eu comemorar a vitória do Brasil, porra! –

João Leno não largou dos seus pés por ordem do Pôu Macaco, seu gerente, e para onde se virasse, o neguinho atrás, no cós da calça, implacável. Aí entrou no meio da comemoração dançou ciranda, forró, xaxado, rastapé, pé-de-serra, baião, xote, maracatu, chegança, repente, coco, manguemusic, martelo agalopado, mais tivesse mais dançava. O neguinho ali no seu calcanhar. Tomou um susto, suspendeu as comemorações e puto da vida apossou-se do volante, acionando o motor do pretão para cumprir com suas incumbências no necrotério.

Pronto, desabara o seu mundo. Toda aquela folga fora embora, uma realidade cruel se depositara na sua fronte, empalidecendo sua alegria. Tudo agora retornara ao normal, ricos sumiam do mundo no meio de sua seriedade; pobres recolhiam-se na sua insignificância e nos problemas do cotidiano. A guerrilha preconceituosa da pele retomava novo fôlego e mais agudamente se insurgira infeliz. Cadê aquela magia impúbere, dona da emoção mais inocente? A virilidade do esporte representava a raça amordaçada diariamente. Neculino mesmo e os de sua classe ignoravam que depois daquela unidade forjada na representação nacional se acabara quando a ressaca da festa se instaurasse nos estranhos senhores do dinheiro. A fraternidade familiar cedera perante as quizílias naturais de verdadeiros estranhos sob o mesmo teto. Agora o mundo era outro.

Largou ele uma primeira no automóvel, para segunda abruptamente, a cabeça tonteando, firme no volante, ás das pistas, um Senna, um Piquet, um Fitipaldi, seguiu em frente na pole position e saiu pelas ruas como quem participava de um circuito de Formula 1. Só se via o povo se recolhendo nas calçadas, se livrando da fúria veloz do nosso piloto.

Em menos de cinco minutos, percurso que normalmente fazia em vinte, deu um cavalo de pau, rabeou, debreou de novo, uma frenagem brusca, mais parecendo um pit stop urgente, chegou ele no necrotério e encontrou logo o enfermeiro cambaleante, na maior doideira, mal podendo se segurar nas pernas nem ajudar na locomoção do cadáver da mesa para o caixão, caindo teso e apontando para o esquife no mármore. O corpo foi depositado com muito sacrifício no invólucro correspondente e depois Neculino tomara novamente o volante e arribara para o endereço expresso no bilhete, tendo João Leno como assistente e leme.

No local indicado preparou o ataúde, havendo muita confusão para que o olvidado posasse de pé, possibilitando que a família dele fosse fotografada ao seu lado. Onde já se viu isso? Pensava Neculino. Cada pantim, hem?

- Olha eu aqui com o defunto do pai!

Um por um dos parentes queriam registrar o último momento com aquele que se fora. Se descuidaram um pouco e poft! Tava lá o corpo estendido no chão. Aquele baque seco. Uma risadagem. À primeira vista parecia que aquelas pessoas não giravam muito bem da bola, não. Neculino estranhou de si para si, observando atentamente o comportamento e a fisionomia de cada um, desconfiando que apesar do infortúnio do momento, no recôndito deles, havia uma felicidade estranha na morte consumada do morto, uma alegria inaudita, estranha. Uma das filhas falava alto no quarto contíguo a respeito da apólice de seguros que o velado deixara, arengando para ver quem iria resgatar na seguradora. Um outro repartia os bens aos cochichos indiscretos, tudo mais no um pra eu um pra tu um pra eu. Devia de ser muito dinheiro e muitas posses que o esquife deixara, pois ele ouvia de tudo, da gasguita ao comportado, meio mundo de gente pronunciando em tom veemente sua posição mediante o espólio do coitado, resgatando saldo bancário, partilhando bens móveis e imóveis, cada qual sendo agraciado a si próprio com o que lhes conviessem.

Ouvindo tal despropósito, tencionara Neculino zarpar dali e já visando providenciar outras obrigações estabelecidas. Já de partida uma mão segurara-lhe firme pelos ombros, aplacando sua fuga: era um dos filhos da casa, identificando logo por seu jeito tresloucado. E teve de acompanha-lo domicílio adentro por um corredor estreito, alcançando o quintal onde acontecia a maior farra da paróquia. Era nego cantando com pandeiro, zabumba, reco-reco, ganzás, afoxés, taróis, violões e violas com a gota, marcando o compasso. Os casais presentes se balançavam de um lado para o outro no meio da dança, piadas soltas e arrepiadas maculando qualquer salão de coreia, imagine. De instante a instante eram servidos tira-gostos apreciáveis aos presentes. À chegada de alguém da vastíssima família se presenciava logo abraços, exposição de lenços, luto determinado, novenas, rezas, choros e depois todo mundo caía na gandaia a riso solto.

Já acostumados com a presença do estranho, qualquer que chegasse causava logo tamanho dissabor nos familiares, todos consternados suspendiam a música, lacrimejavam, praguejavam a injustiça de haver levado pessoa tão querida para o outro lado da vida, com pêsames dado, o samba rolando solto de volta, numa bebedeira desleixada contradizendo a ocasião.

Neculino bem que se acomodara de novo na peleja dos copos, assanhando-se no meio do choro e da alegria a cada vez que uma delas insurgisse na conversa. Parecia já ser um da família sofrida. E chegava parente com a porra com uma nova lamúria. Ele no meio, abraços, afetos, chororôs. Depois se acostumavam da ideia, discutindo as doações e para quem iria tal coisa, logo logo estavam investidos de sede no meio da cachaça só saciada lá pras tantas a bel prazer.

Clicadas todas as fotos resolveram então deitar o defunto no caixão, não antes haver dado tantas tropicadas possíveis do velado ficar roxo de tanta queda. Velaram por instantes e com muito entusiasmo decidiram sepultá-lo imediatamente. Como disse, o nosso motorista que já se sentia parte daquela desditosa e estranha família, muito próximo até, ofereceu logo carona para todos eles na Veraneio da casa de trabalho. Não só levaria o sem-vida como todos que quisessem ir. Arrependeu-se, claro. Não esperava ele que aquele anúncio serviria para uma grande confusão, repercutindo um fuzuê terrível e uma ovação efusiva como gratidão pelo convite. Gente com a gota, curau de todo tipo, para mais de trinta sentados em cima do esquife, mais tantos atrepados nas janelas, na porta traseira, pendurados no para-choques, mais parecendo transporte de boia-fria  em tempo solto da safra canavieira, devido gritaria infernal dos convidados.

Nessa escandalosa situação havia também um comportamento sui generis por parte deles: era o neto chamando a avó de quenga; a noiva de um se esfregando com o cunhado; a viúva agarrada o tempo todo com o sobrinho galã do morto; filho louvando a morte do pai; outro praguejando aquela choradeira enquanto tomava um gole; era parente sorrindo, mangando da desgraça do morto em deixar esse mundo bom justo agora. Era uma situação ora patética, ora paradoxal.

Neculino observava tudo com os olhos esbugalhados, entre admirado e apreensivo:

- Será que esses caras são tudo pinel ? Vôte!

Uma verdadeira ladainha estranha. Sem pestanejar ele botou o carro para correr incentivado pela balbúrdia e pelas palavras de ordens emitidas pelos ocupantes de empurra o pé, tira o pé do bolso, motorista! Condutor frouxo! E tome aceleração e a poeira comendo no centro, numa carreira doida do cão pela buraqueira da estrada de barro que daria no cemitério fora da cidade.

No meio do caminho constataram a ausência de dois que despencaram do veículo capaz de ter quebrado o pescoço. Deram por falta e conferiram na chegada.

- Eita! Tão lascado na rodagem.

No paraíso dos que se foram o coveiro não fora encontrado, uma criança jogara a informação de que ele teria ido cagar no canavial.

- Era só o que faltava! –, perturbava-se Neculino agora diante de uma situação difícil, tendo de desligar o motor ali mesmo, não conseguindo entrar no recinto para adiantar o trabalho e se livrar logo daqueles doidos. Teve de deixar o carro no meio das canas, enquanto se procedia o enterro na primeira cova aberta encontrada pelos desafeiçoados. Danaram-se todos num chorrilho dos grandes, se jogando um a um dentro do barranco, juntos e agarrados, uns aos outros, deduzindo logo que queriam ser enterrados também, aos gritos de desejarem morrer.

Abufelado, Necolino resolveu ir embora deixando aquele pandemônio ali mesmo na sua ingrezia. E ao se aproximar do veículo notara uma movimentação suspeita, como se a Veraneio estivesse dançando ao som de alguma música inaudível: era o sobrinho fodendo a viúva chorosa, enquanto ela debruçada sobre o assento, o rapaz lhe enfiava a macaca até o canto numa escandalosa ejaculação. Botou os dois pra correr e acionou o motor, poeira rajando no ar e partiu pela estrada abaixo.

Já passava das duas da tarde até que na Unidade Mista um outro corpo esperava por providência. Era um corpo de mulher. Reunindo os paramentos para as exéquias, outro já vinha saindo em pleno estado de decomposição. Era uma correria, uma discussão medonha. Neculino que já se recuperara do álcool ingerido, resolveu levar primeiro a mulher, depois o do cidadão. Corre-corre e tome pé.

Após haver cumprido todas as pompas fúnebres, notara que um equívoco pairava no ar provocando baita bafafá: a mulher fora entregue a familiares que deviam velar por um defunto macho; e o homem, no lugar de uma mulher.

- Ei pai, depois que vovô morreu deixou o cabelo crescer?! –, denunciava um garoto encolerizando Neculino.

O pior não foi nada: recolhendo os dois cadáveres para solucionar o impasse dos caixões trocados, na entrada do hospital o negócio estava feio: o marido da defunta tinha vindo cobrar os restos mortais da amada. E o enfermeiro ainda encachaçado do jogo, achou de dizer que ela havia saído para dar uma voltinha na Veraneio e que não demorava muito, chegava já. Era faca riscando o chão, brabeza violenta escurecendo o mundo num sinal de tragédia futura a qualquer momento. Tencionando desfazer o equívoco chegara Neculino, tentando salvar a situação. O viúvo embrabecido largou vocabulário violento:

- Urso de uma figa, cadê minha mulher? –, disse o marido ofendido e isso tudo esfregando uma daquelas de não sei quantas polegadas afiadas de cortar até piscado de olho.

– Tá ali na Veraneio! –, disse logo tentando se safar daquele momento difícil.

O negócio realmente empretara naquela ocasião, procurando, Neculino, um buraco no chão para se enfiar. O viúvo, claro, queria explicação intimidando o motorista. O enfermeiro fugira, de fininho; outros se afastaram por precaução, acaso alguma lâmina rasgasse a carne de alguém, ficando apenas ele ouvindo a trovoada de despautério do homem, se dizendo corno desgramado por um urso de defunto, numa verdadeira provocação, já que o homem estava mesmo irado, acusando todo mundo de mouco, bastando vacilar um pouquinho, dar um cochilo depois da sopa, para a esposa defunta botar-lhe duas de quinhentos impunemente com um desgraçado de um motorista de funerária, maníaco sexual.

A coisa realmente estava dificultada, o viúvo não entendia as explicações do Neculino, ameaçando matá-lo com um olhar de morte, um bafo de desgraça que carregava naquele instante.

- Engano ? Desde quando gaia é engano? Você, por acaso, queria comer sua mulher e por engano comeu a minha?

O negócio foi ficando mais feio, não havia saída praquela situação energúmena precisando de calma e cautela para controlá-la.

- Calma, um caralho! Vou ter com ela, se se intimidar com meu interrogatório, mato os dois!


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MARIA RAKHMANINOVA, ELENA DE ROO, TATIANA LEVY, ABELARDO DA HORA & ABYA YALA

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