UMBIGO – Tive oportunidade assistir em 2004, à
montagem do premiado espetáculo UmBigo,
do diretor, roteirista e dramaturgo Rubens
Rewald, no Centro Cultural São Paulo, com direção do diretor, critico e
professor Sérgio Salvia Coelho, contando a história de uma garota de treze anos
que quer saber do pai sobre as circunstancias da morte da mãe dela. Ao mesmo
tempo, um homem e um meninop tem muito a conversar. Desse quadrilátero humano,
surge um enredo com lances de transgressão e desejo. O destaque ficou por conta
da atuação da atriz, produtora e jornalista Anna Cecília Junqueira. Veja mais aqui.
O QUE É A FILOSOFIA, DE DELEUZE & GUATTARI - [...] Pedimos somente um pouco de ordem para nos proteger do caos.
Nada é mais doloroso, mais angustiante do que um pensamento que escapa a
si mesmo, idéias que fogem, que desaparecem apenas esboçadas, já corroídas pelo
esquecimento ou precipitadas em outras, que também não dominamos. São
variabilidades infinitas cuja desaparição e aparição coincidem. São velocidades
infinitas, que se confundem com a imobilidade do nada incolor e silencioso que
percorrem, sem natureza nem pensamento. É o instante que não sabemos se é longo
demais ou curto demais para o tempo. Recebemos chicotadas que latem como
artérias. Perdemos sem cessar nossas
idéias. E por isso que queremos tanto
agar-rarmo-nos a opiniões prontas. Pedimos somente que nossas idéias se
encadeiem segundo um mínimo de regras constantes, e a associação de idéias
jamais teve outro sentido: fornecer-nos regras protetoras, semelhança, contigüidade, causalidade, que nos permitem
colocar um pouco de ordem nas idéias, passar de uma a outra segundo uma ordem
do espaço e do tempo, impedindo nossa "fantasia" (o delírio, a
loucura) de percorrer o universo no instante, para engendrar nele cavalos
alados e dragões de fogo. Mas não haveria nem um pouco de ordem nas idéias, se
não houvesse também nas coisas ou estados de coisas, como um anti-caos
objetivo: "Se o cinábrio fosse ora vermelho, ora preto, ora leve, ora
pesado..., minha imaginação não encontraria a ocasião para receber, no pensamento,
o pesado cinábrio com a representação da cor vermelha." E, enfim, para que
haja acordo entre coisas e pensamento, é preciso que a sensação se re-produza,
como a garantia ou o testemunho de seu acordo, a sensação de pesado cada vez
que tomamos o cinábrio na mão, a de vermelho cada vez que o vemos, com nossos
órgãos do corpo, que não percebem o presente, sem lhe impor uma conformidade
com o passado. É tudo isso que pedimos para formar uma opinião, como uma
espécie de "guarda-sol" que nos protege do caos. Nossas opiniões são
feitas de tudo isso. Mas a arte, a ciência, a filosofia exigem mais: traçam
planos sobre o caos. Essas três disciplinas não são como as religiões, que invocam dinastias de deuses, ou a epifania de um deus único, para pintar
sobre o guarda-sol um firmamento, como as figuras de uma Urdoxa de onde
derivariam nossas opiniões. A filosofia, a ciência e a arte querem que
rasguemos o firmamento e que mergulhemos no caos. Só o venceremos a este preço.
Atravessei três vezes o Aqueronte como vencedor. O filósofo, o cientista, o
artista parecem retornar do país dos mortos. O que o filósofo traz do caos são
variações que permanecem infinitas,
mas tornadas inseparáveis
sobre superfícies ou em volumes
absolutos, que traçam um
plano de ima-nência secante:
não mais são
associações de idéias
distintas, mas reencadeamentos, por
zona de indistinção,
num conceito. O cientista traz
do caos variáveis,
tornadas independentes por desaceleração, isto é, por eliminação de
outras va-riabilidades quaisquer, suscetíveis de interferir, de modo que as
variáveis retidas entram em relações determináveis numa função: não mais são
liames de propriedades nas coisas, mas coordenadas finitas sobre um plano
secante de referência, que vai das probabilidades locais a uma cosmologia
global. O artista traz do caos variedades, que não constituem mais uma
reprodução do sensível no órgão, mas erigem um ser do sensível, um ser da
sensação, sobre um plano de composição,
anorgânica, capaz de
restituir o infinito. A luta com o caos, que Cézanne e Klee mostraram em ato na
pintura, no coração da pintura, se encontra de uma outra maneira na
ciência, na filosofia: trata-se sempre
de vencer o caos por um plano secante que o atravessa. O pintor passa por uma
catástrofe, ou por um incêndio, e deixa sobre a tela o traço dessa passagem,
como do salto que o conduz do caos à composição. As próprias equações
matemáticas não desfrutam de uma tranqüila certeza que seriacomo a sanção de
uma opinião científica dominante, mas saem de um abismo que faz que o
matemático"salte de pés juntos sobre os cálculos", que preveja que
não pode efetuá-los e não chega à verdade sem "sechocar de um lado e do
outro". E o pensamento filosófico não reúne seus conceitos na amizade, sem
serainda atravessado por uma fissura que
os reconduz ao ódio ou os dispersa no caos coexistente, onde épreciso retomá-los, pesquisá-los, dar
um salto. É como se se jogasse uma rede, mas o pescador arrisca-sesempre a ser
arrastado e de se encontrar em
pleno mar, quando acreditava chegar ao porto.
As trêsdisciplinas procedem por crises
ou abalos, de maneira diferente,
e é a sucessão que permite falar
de"progresso" em cada caso. Diríamos que a luta contra o caos
implica em afinidade com o inimigo, porque umaoutra luta se desenvolve e toma
mais importância, contra a opinião que, no entanto, pretendia nos proteger
dopróprio caos. Num texto violentamente
poético, Lawrence descreve o que a
poesia faz: os homens nãodeixam de
fabricar um guarda-sol que os abriga, por baixo do qual traçam um firmamento e
escrevem suasconvenções, suas opiniões; mas o poeta, o artista abre uma fenda
no guarda-sol, rasga até o firmamento,para fazer passar
um pouco do caos livre e tempestuoso e enquadrar numa luz brusca, uma visão queaparece através da fenda,
primavera de Wordsworth ou maçã de Cézanne,
silhueta de Macbeth ou de Ahab.
Então, segue a massa dos imitadores, que remendam o guarda-sol, com uma peça que
parece vagamente com a visão; e a massa dos glosadores que preenchem a fenda
com opiniões: comunicação. Será preciso sempre outros artistas para fazer
outras fendas, operar as necessárias destruições, talvez cada vez maiores, e
restituir assim, a seus predecessores, a incomunicável novidade que não mais se
podia ver. Significa dizer que o artista se debate menos contra o caos (que ele
invoca em todos os seus votos, de uma certa maneira), que contra os
"clichês" da opinião. O pintor não pinta sobre uma tela virgem, nem o
escritor escreve sobre uma página branca, mas a página ou a tela estão já de
tal maneira cobertas de clichês preexistentes, preestabelecidos, que é preciso
de início apagar, limpar, laminar, mesmo
estraçalhar para fazer passar uma corrente de ar, saída do caos, que nos traga
a visão. Quando Fontana corta a tela colorida com um traço de navalha, não é a
cor que ele fende dessa maneira, pelo contrário, ele nos faz ver o fundo de cor
pura, através da fenda. A arte luta efetivamente com o caos, mas para fazer
surgir nela uma visão que o ilumina por um instante, uma Sensação. Mesmo as
casas...: é do caos que saem as
casas embriagadas de Soutine,
chocando-se de um lado e do
outro, impedindo-se reciprocamente de
nele recair; e a casa de Monet surge como uma fenda, através da qual o caos se
torna a visão das rosas. Mesmo o encarnado mais delicado se abre para o caos,
como a carne sobre o esfolado. Uma obra de caos não é certamente melhor do que
uma obra de opinião, a arte não é mais feita de caos do que de opinião; mas, se
ela se bate contra o caos, é para emprestar dele as armas que volta contra a
opinião, para melhor vencê-la com armas provadas. É mesmo porque o quadro está
desde início recoberto por clichês, que o pintor deve enfrentar o caos e
apressar as destruições, para produzir uma sensação que desafia qualquer
opinião, qualquer clichê (por quanto tempo?). A arte não é o caos, mas uma
composição do caos, que dá a visão ou sensação, de modo que constitui um
caosmos, como diz Joyce, um caos composto — não previsto nem preconcebido. A
arte transforma a variabilidade caótica em variedade caóide, por exemplo o
flamejamento cinza negro e verde de El Greco; o flamejamento de ouro de Turner
ou o flamejamento vermelho de Staél. A arte luta com o caos,mas para torná-lo
sensível, mesmo através do personagem mais encantador, a paisagem mais
encantada(Watteau). Um movimento semelhante sinuoso e reptiliano, anima talvez
a ciência. Uma luta contra o caos parecepertencer-lhe por
essência, quando faz
entrar a variabilidade
desace-lerada sob constantes
ou limites,quando a reconduz
dessa maneira a centros de equilíbrio, quando a submete a uma seleção que só
retém umpequeno número de variáveis independentes, nos
eixos de coordenadas, quando instaura, entre
essasvariáveis, relações cujo estado futuro pode ser determinado a
partir do presente (cálculo determinista), ou aocontrário quando faz intervir
tantas variáveis ao mesmo tempo, que o estado de coisas é apenas
estatístico(cálculo de probabilidades). Pode-se falar, nesse sentido, de uma
opinião propriamente científica, conquistadasobre o caos, como de uma comunicação definida, ora por
informações iniciais, ora por
informações degrande escala e que vai, no mais das vezes, do elementar
ao composto, seja do presente ao futuro, seja domolecular ao molar. Mas, ainda
aí a ciência não pode impedir-se de experimentar uma profunda atração pelocaos
que combate. Se a desaceleração é a fina borda que nos separa do
caos oceânico, a
ciência se aproxima
tanto quanto ela
pode das vagas
mais próximas, estabelecendo relações que se conservam com a
aparição e a desaparição das variáveis (cálculo diferencial); a diferença se
faz cada vez menor entre o estado
caótico, em que a aparição e a
desaparição de uma variabilidade se confundem, e o estado semi-caótico, que
apresenta uma relação como limite das variáveis que aparecem ou
desaparecem. Como diz Michel
Serres a propósito
de Leibniz, "haveria
dois infraconscientes: o mais profundo
seria estruturado como
um conjunto qualquer,
pura multiplicidade ou possibilidade em geral,
mistura aleatória de
signos; o menos
profundo seria recoberto
de esquemas combinatórios desta
multiplicidade...". Poderíamos conceber uma série de coordenadas ou de
espaços de fases como uma sucessão de crivos, dos quais o precedente sempre
seria relativamente um estado caótico e o seguinte um estado caóide, de modo
que passaríamos por limiares caóticos, ao invés de ir do elementar ao composto.
A opinião nos apresenta uma ciência que sonharia com a unidade, com unificar
suas leis e, hoje ainda, procuraria uma comunidade das quatro forças. Mais
obstinado porém, o sonho de captar um pedaço de caos, mesmo se as mais diversas
forças nele se agitam. A ciência daria toda a unidade racional à qual aspira,
por um pedacinho de caos que pudesse explorar. A arte capta um pedaço de caos
numa moldura, para formar um caos composto que se torna sensível, ou do
qual retira uma sensação caóide enquanto
variedade; mas a ciência o apreende num
sistema de coordenadas, e forma um caos referido que se torna Natureza, e com o
qual produz uma função aleatória e variáveis caóides. É desse modo que um dos
aspectos mais importantes da física matemática moderna aparece em
transições na direção do caos, sob a ação de atratores "estranhos" ou caóticos:
duas trajetórias vizinhas, num sistema determinado de coordenadas, não
permanecem vizinhas, e divergem de maneira exponencial antes de se aproximarem por operações de estiramento e de redobramento
que se repetem, e recortam o caos. Se os atratores de equilíbrio (pontos fixos,
ciclos limites, toros) exprimem bem a luta da ciência com o caos, os atratores
estranhos desmascaram sua profunda atração pelo caos, assim como a constituição
de um caosmos interior à ciência moderna
(tudo, coisas que se revelavam, de uma
maneira ou de outra, em períodos precedentes, notadamente na fascinação pelas
turbulências). Encontramos pois uma conclusão análoga àquela a que nos conduzia
a arte: a luta com o caos só é o instrumento de uma luta mais profunda contra a
opinião, pois é da opinião que vem a desgraça dos homens. A ciência volta-se
contra a opinião, que lhe empresta um gosto religioso de unidade ou de
unificação. Mas assim ela se volta, em si
mesma, contra a opinião propriamente científica, enquanto Urdoxa que consiste, ora na previsão determinista (o Deus de
Laplace), ora na avaliação probabilística (o demônio de Maxwell):
desli-gando-se das informações iniciais e das informações de grande escala, a ciência
substitui a comunicação, pelas condições de criatividade, definidas pelos
efeitos singulares de flutuações mínimas. O que é criação são as variedades
estéticas ou as variáveis científicas, que surgem sobre um plano capaz de
recortar a variabilidade caótica. Quanto às pseudo-ciências, que pretendem
considerar os fenômenos de opinião, os cérebros artificiais de que se servem
tomam como modelos processos probabilísticos, atratores estáveis, toda uma
lógica da mesmo tempo, a luta do pensamento contra a opinião e a
degenerescência do pensamento na própria opinião (uma das vias de evolução dos
computadores vai no sentido de uma
aceitação de um sistema caótico ou caotizante). É o que confirma o terceiro caso, não mais a variedade sensível nem a variável funcional,
mas a variação conceituai tal
como aparece na filosofia.
A filosofia também luta com o
caos, como abismo indiferenciado
ou oceano da disseme-lhança. Não concluiremos disso que a filosofia se coloca
do lado da opinião, nem que a
opinião passa a
ter lugar na
filosofia. Um conceito não é
um conjunto de ideias associadas,
como uma opinião. Nem tampouco uma ordem de razões, uma série de razões
ordenadas, que poderiam, a rigor, constituir uma espécie de Urdoxa
racionalizada. Para atingir o conceito, não basta mesmo que os fenômenos se
submetam a princípios análogos àqueles que associam as idéias, ou as coisas,
aos princípios que ordenam as razões. Como diz Michaux, o que basta para as
"idéias correntes" não basta para as "idéias vitais" — as
que se deve criar. As idéias só são associáveis como imagens, e ordenáveis como
abstrações; para atingir o
conceito, é preciso que ultrapassemos
umas e outras, e que atinjamos o mais rápido possível objetos mentais
determináveis como seres reais. É já o que mostravam Espinosa ou Fichte:
devemos nos servir de ficções e de abstrações, mas somente na medida necessária
para aceder a um plano, onde caminharíamos de ser real em ser real e
procederíamos por construção de conceitos. Vimos como este resultado podia ser
obtido na medida em que variações se tornavam inseparáveis, segundo zonas de
vizinhança ou de indiscernibilidade:
elas deixam então
de ser associáveis,
segundo os caprichos
da imaginação, ou discerníveis e ordenáveis segundo as
exigências da razão, para formar verdadeiros blocos conceituais. Um
conceito é um conjunto
de variações inseparáveis,
que se produz
ou se constrói
sobre um plano deimanência,
na medida em que este recorta a variabilida-de caótica e lhe dá
consistência (realidade).
Umconceito é, pois,
um estado caóide por
excelência; remete a um
caos tornado consistente,
tornadoPensamento, caosmos mental. E que seria pensar se não se
comparasse sem cessar com o caos? A Razãosó nos oferece seu verdadeiro rosto
quando "ruge na sua cratera". Mesmo o cogito só é uma opinião, nomáximo uma Urdoxa, enquanto não se extrai
dele as variações inseparáveis, que dele fazem um conceito;enquanto se renuncia
a encontrar nele um guarda-sol ou um abrigo; quanto se deixa de supor uma
imanênciaque se faria por ele mesmo — ao
contrário, é preciso colocá-lo sobre um
plano de imanência ao qualpertence e que o conduz ao pleno mar. Numa palavra, o
caos tem três filhas segundo o plano que o recorta: são as Caóides, a arte, a
ciência e a filosofia, como formas do pensamento ou da criação. Chamam-se
decaóides as realidades produzidas em planos que recortam o caos. A junção (não
a unidade) dos três planos é o cérebro. Certamente, quando o cérebro é
consideradocomo uma função
determinada, aparece ao
mesmo tempo como um conjunto complexo
de conexõeshorizontais e de integrações verticais,
reagindo umas sobre as
outras, como testemunham os "mapas"cerebrais. Então a questão é
dupla: as conexões são preestabelecidas, guiadas como por trilhos, ou fazem-see
desfazem-se em campos de forças? E os processos de integração são centros
hierárquicos localizados, ouantes formas (Gestalten), que atingem suas condições de
estabilidade, num campo do qual depende aposição do próprio centro? A
importância da Gestalttheorie, deste ponto de vista, concerne tanto à teoria do
cérebro, quanto à concepção da percepção, já que ela se opõe diretamente ao
estatuto do córtex, tal como aparecia do ponto de vista dos reflexos
condicionados. Mas, quaisquer que sejam os pontos de vista considerados, não se
tem dificuldade em mostrar que caminhos, inteiramente prontos ou em vias de se
fazer, centros, mecânicos ou dinâmicos, encontram dificuldades semelhantes. Caminhos inteiramente prontos, que se segue
aos poucos, implicam num traçado prévio; mas trajetos, que se constituem num
campo de forças, procedem por resoluções de tensão, agindo também
gradativamente (por exemplo, a tensão de reaproximação entre a fóvea e o ponto
luminoso projetado sobre a retina, tendo esta uma estrutura análoga a uma área
cortical): os dois esquemas supõem um "plano", não um fim ou um
programa, mas um sobrevoo do campo inteiro. É isso que a Gestalttheorie não
explica, do mesmo modo que o mecani-cismo não explica a pré-montagem. Não é de
se surpreender que o cérebro, tratado como objeto constituído da ciência, só
possa ser um órgão de formação e de comunicação da opinião: é que as conexões
graduais e as integrações centradas permanecem sob o modelo estreito da
recognição (gnosias e praxias, "é um cubo", "é um
lápis"...), e que a biologia do cérebro se alinha aqui com os mesmos postulados da lógica mais
obstinada. As opiniões são formas
pregnantes, como as bolhas de sabão segundo a Gestalt, levando em conta os
meios, os interesses, as crenças e os obstáculos. Parece então difícil tratar a filosofia, a arte e mesmo a ciência
como "objetos mentais", simples conjuntos de neurônios no cérebro
objetivado, já que o modelo derrisório da recognição os encerra na doxa. Se os
objetos mentais da filosofia, da arte e da ciência (isto é, as idéias vitais)
tivessem um lugar, seria no mais profundo das fen-das sinápticas, nos hiatos,
nos intervalos e nos entre-tempos de um cérebro inobjetivável, onde penetrar,
para procurá-los, seria criar. Seria um pouco como no ajuste de uma tela de
televisão, cujas intensidades fariam surgir o que escapa do poder de definição
objetivo. Significa dizer que o pensamento, mesmo sob a forma que toma
ativamente na ciência, não depende de um
cérebro feito de conexões e de integrações orgânicas: segundo a
fenomenologia, dependeria de relações do
homem com o mundo — com as quais o cérebro concorda necessariamente porque
delas deriva, como as excitações derivam
do mundo e das reações do homem, inclusive em suas incertezas e suas falências.
"O homem pensa e não o cérebro"; mas esta reação da fenomenologia,
que ultrapassa o cérebro na direção de um Ser no mundo, através de uma dupla
crítica do mecanicismo e do dinamismo,
não nos faz absolutamente sair
ainda da esfera das opiniões, conduz-nos somente a uma Urdoxa, afirmada
como opinião originária ou sentido dos sentidos. A viragem não estaria em outra parte, lá onde o cérebro é
"sujeito", se torna sujeito? É o cérebro que pensa e não o homem, o
homem sendo apenas uma cristalização cerebral. Pode-se falar do cérebro como
Cézanne da paisagem: o homem ausente, mas inteiro no cérebro... A filosofia, a
arte, a ciência não são os objetos mentais de um cérebro objetivado, mas os três aspectos sob os quais o cérebro
se torna sujeito, Pensamento-cérebro, os três planos, as jangadas com as quais
ele mergulha no caos e o enfrenta. Quais são os caráteres deste cérebro, que
não mais se define pelas conexões e integrações secundárias? Não é um cérebro
por trás do cérebro mas, a princípio, um estado de sobrevôo sem distância, ao
rés do chão, autosobrevôo do qual não escapa nenhum abismo,nenhuma dobra nem
hiato. É uma "forma verdadeira", primária como a definia Ruyer: não
uma Gestalt, nem uma forma percebida, mas uma forma em si, que não remete a
nenhum ponto de vista exterior, como a retina ou a área estria-da
do córtex não
remete a uma outra,
uma forma consistente absoluta
que se sobrevoa independentemente de qualquer
dimensão suplementar, que não apela, pois, a nenhuma transcendência, que só tem
um único lado, qualquer que seja o número de suas dimensões, que permanece
co-presente a todas as suas determinações, sem proximidade ou distanciamento,
que as percorre numa velocidade infinita, sem velocidade-limite, e que faz
delas variações inseparáveis, às quais
confere uma equipotencialidade sem confusão. Vimos que tal era o estatuto do
conceito como acontecimento puro ou realidade do virtual. E, sem dúvida, os
conceitos não se reduzem a um único e mesmo cérebro, já que é cada um deles que
constitui um "domínio de sobrevôo", e as passagens de um conceito a
um outro permanecem irredutíveis, enquanto um novo conceito
não tornar necessário,
por sua vez,
sua co-presença ou
a equipotencialidade das
determinações. Não diremos também que todo conceito é um cérebro. Mas o cérebro, sob este primeiro aspecto da forma absoluta,
aparece bem como a faculdade dos conceitos, isto é, como a faculdade da sua
criação, ao mesmo tempo que estende o
plano de imanência, sobre o qual os conceitos se alocam, se deslocam, mudam de
ordem e de relações, se renovam e não param de criar-se. O cérebro é o espírito mesmo. É ao mesmo
tempo que o cérebro se torna sujeito, ou antes "superjecto", segundo
o termo de Whitehead, que o conceito se torna o objeto como criado, o acontecimento
ou a criação mesma, e a filosofia, o plano de imanência que carrega os conceitos
e que traça o cérebro. Assim, os movimentos
cerebrais engendram personagens conceituais. É o cérebro que diz Eu,
mas Eu é um outro. Não é o mesmo cérebro que o das
conexões e integrações segundas,
embora não haja transcendência. E este Eu não é apenas o "eu concebo"
do cérebro como filosofia, é também o "eu sinto" do cérebro como
arte. A sensação não é menos cérebro que o conceito. Se consideramos as conexões
nervosas excitação-reação e as integrações cerebrais percepção-ação, não nos
perguntaremos em que momento do caminho, nem em que nível, aparece a sensação,
pois ela é suposta e se mantém na retaguarda. A retaguarda não é o contrário do
sobrevôo, mas um correlato. A sensação é a excitação mesma, não enquanto se
prolonga gradativamente e passa à reação, mas enquanto se conserva ou conserva
suas vibrações. A sensação contrai as vibrações do excitante sobre uma
superfície nervosa ou num volume cerebral: a precedente não desapareceu ainda
quando a seguinte aparece. É sua maneira de responder ao caos. A sensação
vibra, ela mesma, porque contrai vibrações. Conserva-se a si mesma, porque
conserva vibrações: ela é Monumento. Ela ressoa, porque faz res-. soar seus
harmônicos. A sensação é a vibração contraída, tornada qualidade, variedade. É
por isso que o cérebro-su-jeito aqui é dito alma ou força, já que só a alma
conserva contraindo o que a matéria dissipa,
ou irradia, faz avançar,
reflete, refracta ou converte. Assim
procuramos em vão a sensação enquanto nos limitamos às reações e às excitações
que elas prolongam, às ações e às percepções que elas refletem: é que a alma
(ou antes a força), como dizia Leibniz, nada faz ou não age, mas é apenas
presente, conserva; a contração não é uma ação, mas uma paixão pura, uma
contemplação que conserva o precedente no seguinte. A sensação está pois sobre
um outro plano diferente daquele dos mecanismos, dos
dinamismos e das finalidades:
é um plano de composição, em que
a sensação se forma contraindo o que a compõe, e compondo-se com outras
sensações que ela contrai por sua vez. A sensação é contemplação pura, pois é
pela contemplação que se contrai, contemplando-se a si mesma à medida que se
contempla os elementos de que se procede.
Contemplar é criar, mistério da criação passiva, sensação. A sensação
preenche o plano de composição, e
preenche a si mesma preenchendo-se com aquilo que ela contempla: ela é
enjoyment, e self-enjoyntent. É um sujeito, ou antes um injecto. Plotino podia
definir todas as coisas como contemplações, não apenas os homens e os animais,
mas as plantas, a terra e as rochas. Não são Idéias que contemplamos pelo
conceito, mas os elementos da matéria, por sensação. A planta contempla
contraindo os elementos dos quais ela procede, a luz, o carbono e os sais, e se
preenche a si mesma com cores e odores que qualificam sempre sua variedade, sua
composição: é sensação em si. Como se as flores sentissem a si mesmas sentindo
o que as compõe, tentativas de visão ou de olfato primeiros, antes de serem
percebidas ou mesmo sentidas por um agente nervoso e cerebrado. [...]. O QUE É A
FILOSOFIA – O livro O que é a filosofia, dos filósofos
Gilles Deleuze e Félix Guattari, trata sobre o que é um conceito, o plano de
imanência, os personagens conceituais, a geo-filosofia, ciência, lógica, arte,
functivos e conceitos, prospectos e conceitos, percepto, afecto, do caos ao
cérebro, entre outros assuntos. Veja mais aqui, aqui, aqui e aqui.
REFERÊNCIA
DELEUZE, Gilles; GUATTARI,
Félix. O que é a filosofia? Rio de Janeiro: 34, 1995.
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CANTARAU: VAMOS APRUMAR A CONVERSA
Paz na
Terra:
Recital
Musical Tataritaritatá - Fanpage.