O VIÚVO DO PADRE
Luiz Alberto Machado
Pedim
pegava tatu soltando uns peidinhos no buraco do terreiro, bem na loca do
cavador. Pois é, quando inventava de caçar o desdentado, ele se empanzinava com
todo tipo de comida pesada, daquela de inchar bucho, de chega a barriga ficar
ressoando feito bombo a soltar trovoada ineivada. Quando estava no ponto,
chegava ali bem alvo do esconderijo, arriava a calça, botava bem o peidante
mirando mesmo na caçapa e pei! Pum! Tóin! Era pra ser um só, mas não, saía de
dois três borborigmos duma vez só, às vezes até mais encarreados. Aí, num demorava
nadinha de nada, bastava um tempinho e lá vinha o tatu zonzinho de doido com a
fedentina. Essa artimanha era a sua arapuca. Ele mesmo num aguentava a podridão.
Mas era fácil, para ele, agora era só perseguir o bicho, capturá-lo todo tonto
e sair todo ancho a mostrar o seu troféu. Estava ali agarrado pelo rabo um
robusto mamífero desdentado, com carapaça. Às vezes um bola ou um peba para ser
traçado no meio da carraspana, num saboroso tira-gosto. Fazia coleção de fotos e
arrotava na pacutia que não havia na face da terra caçador mais ardiloso. Nem pior
catinga de flatulência, diga-se de passagem. Era tão achegado a saborear dessa
carne que já chamavam de Pedim-tatu. Até fizeram um quarteto versejado que não
caía na sua graça:
Pedim, Pedim, Pedim,
Pedim pega tatu,
Toma vergonha na cara
E vai cuidá desse teu cu!
Doutras
vezes estava ele todo sério, mãos postas na direção duma kombi, conduzindo as
irmãs do convento, pra cima e pra baixo. Volta e meia carregando as pinguins
religiosas, tudo que elas quisessem. Coisinha que fosse e que aparecesse, lá estava
ele paparicando o cós do hábito das irmãs carmelitas para atendê-las. Era o seu
quefazer.
Por
ser figura tão hilária quanto bizarra, tão cheio de modos e nove horas, maior
espalha-brasa, meio lá e meio cá numa presepada, todo atencioso com as
religiosas, fuleiro todo, acusavam-no, os da mesma laia, de marido das freiras.
-
Já vai, né, bichim! Elas tão te esperando pra suruba!
-
Vai cumê pinguim de Cristo, né f'i-da-peste! Só elas num enxerga tua astúcia,
condenado!
Irado
ficava ele com aquela pecha, que coisa mais sem respeito! Caçoar dele, tudo
bem, mas das santas abnegadas, era um vitupério dos grandes na sua conta.
Deviam de deixá-las em paz, ao menos. Foi assim que acumulou os tantos
apelidos: Peida-no-buraco, lobisomem-doido, marido-das-freiras,
ajeitado-de-pinguim-fêmea, chaleira-carmelita, besuntão-de-convento,
nêgo-besta, traíra-de-bíblia, coroínha-tiziu e mais, muitos mais infamantes
cognomes. Tinha um que ele brigava: bicha-de-freira, ah! Esse ele perdia a
compostura e deixava a consideração de lado entre tabefes e pernadas.
-
É o cú da sua mãe, feladaputa!
-
Que é isso menino?
-
Não é com a senhora, não, é com a mãe dele!
-
Eu sou a mãe dele, ora!
Gaguejava
lívido e se danava com o pé na bunda. Aí era quando mangavam dele para valer,
diziam, no meio das maiores risadagens, que ele num dia de lua cheia, espocou
uns tiros de espingarda de ar comprimido até contra sua própria mãe. Daí o
codinome de lobisomem-doido. Era o desassombrado. Mas tudo intriga de garoto,
de estripulia enraivecida de infância, sem muitas consequências, apenas umas
lapiadas boas no toitiço para o nego respeitar a patente materna. Pedim, meio
doído com aquilo de remorso, se deixava mostrar nem aí para as maledicências.
Coroínha
que era, também num se esquecia de nada na hora que o padre Quiba exigia seus
trabalhos. Às vezes se dava mal porque levava pro vigário fofocas das irmãs e
deste pra elas. Pois bem, a madre superiora gostava muito dele, mas não
dispensou uns bregues para que não se envolvesse nas intimidades dos outros.
-
É muito feio ficar enredando dos outros, meu filho.
Tome.
Bem feito, um fora que deixou o sujeito desequilibrado. Uma outra freira também
andava de esguelha e pulga atrás da orelha com a religiosidade fanática do
Pedim, pondo em dúvida a sua devoção. Avie só: um treloso todo sonso, sabença
dela em se certificar dos achegamentos dele, menino se fazendo homem, com as
noviças, cá pra nós, tudo assanhada. E bem que uma vez quase que ela pega o
danado com o pingolim de fora persuadindo as freirinhas novas a rezarem
ajoelhadas em nome da santa vela do caminho bom dele. Ele não perdia tempo, por
certo, dava das suas travessuras com as mais inocentes. Era contando safadeza,
benzendo elas dos pés à cabeça, principalmente nas intimidades das donzelas;
marcando orações altas horas da noite atrás da igrejinha do convento; ensinando
lamber a vela antes de fazer o pedido aos santos para que eles atendessem mais
rápido; ensinando-as a levantar as saias para que ele benzesse a cheba
salvando-as de desejos pecaminosos; ensinando-as a realizar as orações de
quatro, bunda arrebitada para cima com a cara entre as mãos deitadas no chão,
enquanto ele conferia a virgindade delas em muitos tocamentos libidinosos; era
muita presepada do tinhoso. Tire por isso e multiplique por mil. Pra se ter
ideia até uma vez a própria madre flagrou ele com as calças nos pés, mostrando
o caminho da salvação para uma recém-chegada, dizendo ser ali a chave para
abrir a porta do céu.
-
Como é ?
Daí
ninguém mais confiar nele, ninguém dali poupava o opróbrio ao seu comportamento
sombrio.
Tinha
mais, puxou ao pai dele: manhoso, mulato, viajante razoavelmente bem sucedido,
achegado a esfregamentos em saias mundanas, vinha já de três casamentos
acabados se sabe lá o porquê, estando amasiado com a atual, uma crioula
desengonçada e mãe do capetinha, mandona e cheia de rodia nos negócios do pai. Ele,
um treloso que já havia queimado a fotografia com a beiçuda genitora, estava
ali, vendo os dois se estranhar por nada em todas as ocasiões. Não entendia
porque arengavam tanto. Ouvia apenas que a mãe ralhava da promiscuidade do
velho pai com as quengas. E de vez em quando a mãe quebrava uma vassoura na
cabeça do enxerido, não antes desconcertar uns tabefes na cara das deslavadas. Pedim,
só olhando, nada dele, podia ser que sobrasse alguma coisa para a sua banda. Mas
só ouvia os gritos: - Puta! Fresco! E a tapa com raquetadas, pauladas e outras
coisas jogadas e comendo no centro. Por conta disso se revoltou e cometeu umas
loucuras esdrúxulas. Primeiro, chegou num lambe-lambe que ficava em frente da
igreja, tirou sua foto mais arrumada e pregou na porta de cabarés, de mictórios
na rodoviária, nos postes, num dos vidros da kombi, no sanitário do colégio, em
todos os lugares impróprios e bastante movimentados com as seguintes
inscrições: Este é um filho da puta! Nossa, quando isso chegou ao conhecimento
dos pais, que alvoroço! Levou bregue até umas horas, dormindo num sei quantas
noites de couro quente, choramingando, sofrendo, num canto encolhido. Até
quando?
Mais
dia, menos dia, estava ele ali se balançando nas cordas do sino: blém blém! Era
o sepultamento do coronel Madaleno Ostílio, homem rico de família abastada. Foram
tantos trocados no seu bolso, tanto refrigerante tomado, tanto bolo, tanta
bolacha, biscoitos, lembrancinhas, que ele não parava de bater o sino, chamando
pela consternação popular na morte de personalidade tão boa.
Ah,
quando era enterro de rico ele caprichava nas badaladas e nos paramentos. Se
fosse de pobretão, ora, ele se irava com aquela gente catingosa,
desendinheirada que nem deitava um muito obrigado para ele. Ficava fulo quando
percebia que não receberia nada pelo trabalho na sacristia. Fosse batizado,
casamento ou enterro. De rico não, oxente, saía num alvoroço para organizar
tudo, já que ele não era o sacristão oficial, comprava os serviços do titular a
troco de se esgueirar como se fosse.
Foi
aí que, um dia lá, movido pela necessidade ocasional, o padre precisou de um
motorista para ir até o Recife. Vasculhou. Restava apenas Pedim. Um tanto a contragosto
o padre requereu das irmãs carmelitas a disponibilidade dele para a viagem. - É
possível, irmãs? Obteve aquiescência delas. E lá se foi, embaixo de muitas
recomendações, Pedim e o dito cujo.
Durante
o trajeto o padre elogiou seu trabalho no féretro do coronel Madaleno Ostilio, dando-lhe
os parabéns, amenizando a antipatia entre ambos. Era condecoração falsa, sabia.
Mas conversa vai, conversa vem, surge um comentário do da batina.
-
Você viu o beijo que a tresloucada da bichona do Oscardo, aos prantos
exagerados, deu na testa do defunto quando todos velavam? Viu? É muita frescura
daquela veada velha, chorava que só! -, comentou o padre com o motorista, já
sabendo o condutor da antipatia do padre com o Oscardo, um pederasta respeitado
da cidade que enchera aos ouvidos dos paroquianos que o padre era pirôbo. Daí a
quizília deles.
Pedim
só ouvia, balançando com a cabeça ora afirmativa, ora negativamente. Não metia
bedelho para não piorar sua situação. Lembrava-se sempre das recomendações das
irmãs. Sabia bem dos ardis do dito santo. Sabia tanto das conversas que nem
dava pitaco. Sabido.
Verdade,
diziam, o padre gostava de adivinhar o sexo das crianças no bucho da mãe.
Qualquer grávida que chegasse ele dizia: é menino! E num caderninho anotava,
por via de dúvidas, menina. Quando o pai chegava reclamando que a filha havia
nascido e o padre errara na adivinhação, ele sacava o caderninho e perguntava: -
Qual dia da confissão e nome da sua esposa? Foi oito de dezembro, Editilda.
Certo, olhe aqui na caderneta, menina! Errei nada, sua mulher que não entendeu,
certo?
Era
assim, nos dias de confissão, primeira comunhão, missa especial, ou o que seja,
chegava na grávida e arriscava o sexo, se optasse pela masculinidade, escrevia
na caderneta o nome da mãe com o rebento feminino. Isto é, errava nunca. Se
acertasse, tudo bem; se errasse, para evitar mangação, recorria à caderneta.
Sabido, também.
Mais
três horas depois chegavam ao destino desejado, atento a tudo Pedim não poupou
esforços para agradar o contratante: rodou a cidade toda, de cabo a rabo, até deixá-lo
tonto de tanta entrada e saída, conhecedor que era dos bairros dali e de todas
as imediações.
-
Para um menino xucro de Alagoinhanduba, você conhece bem a cidade, viu? -,
elogiou o padre.
Sem
tempo para almoçar, tomaram um caldo de cana com uma broa e foram concluir os
trabalhos. Pedim, faminto que só, tomou quatro caldos e comeu oito broas do
bucho ficar redondo e inchado.
Lá
pelas tantas, exaustos de tanto rodar na cidade, foram jantar quando preferiram
ir para a pousada e lá mesmo topar a refeição e dormirem para o retorno de
manhãzinha cedo.
Tudo
indo mais ou menos bem, mais para mais do que para menos, quando... o pároco encantado
com a presteza do Pedim, agradava-lhe sobremodos. Jantaram, o padre, um
rosbife; Pedim, um prato feito duplo; ainda comeu o resto do rosbife que ficara
quase todo devido fastio do da batina. Foi servido um vinho tinto e com quatro
doses o padre já estava dando gargalhada com nada, inquirindo de Pedim como ele
conhecia aquele lugar e conversa vai, pulha vem.
-
Você fuma, Pedim?
-
Não senhor.
-
Providencie ali com o garçom um cigarro para mim, quero dar umas baforadas boas
com esse vinho bom.
Um
litro de vinho se esvaziara, sendo um outro cheínho requerido devido a
curiosidade com as narrações do coroínha. Quase uma carteira de cigarros
tragada e o padre atento nas narrações dele. Dos comentários das zonas de
melhor reduto saíram as arteirices do motorista com mendicantes borboletas,
felatrizes astuciosas por qualquer quantia, morféias da noite, que no
estique-chique interpelavam pela chupica. Poft! What? Ocó da Mapoa. Assunto
vai, assunto vem, descontraídos conversavam. - Saiba você que em Sikkim, um
protetorado himalaio, não existe homicídio, não! Sabia? -, inquiria o
fabricante de hóstia ao inculto companheiro de viagem. Sabia nada, era só para
puxar conversa, isso sabia ele. - Sabe da história de Joana, a louca? -, que
pergunta mais sem propósitos desse padre, ele deve de estar já bêbado. E
continuou: - Quando o primeiro homem apareceu em Shanidar, no Iraque... Pedim
escutava a erudição do padre, estava mesmo tentando impressioná-lo com aquelas
coisas mais sem pé nem cabeça, coisas de antiguidade distante que não serviam
em nada para ampliar os conhecimentos da vida. Ele pensando sozinho: - Oxe,
esse padre é meio maricas mesmo, vem puxando cada estória, vôte! O padre mais
falante que no comum, jogava conversa fora. - Bonita mesmo foi a morte da
Isadora Duncan, até a morte dela foi trágica e linda. Sabia que ela cheia de
glamour, beleza ímpar, fez-se passear num automóvel quando seu xale charmoso
enrolou-se na roda traseira do veículo, estrangulando-a? Que conversa mais fora
de lugar, pensava Pedim, ou ele tá bêbo ou tá variando. Eu, hem? Depois da meia
noite, dois litros e meio de vinho tomado, subiram para o apartamento. Sobressaltado,
Pedim verificou que dormiriam no mesmo quarto numa cama de casal larga. Arrepiou-se
com a possibilidade do coito anal. Ih! - Vou dormir no chão mesmo, padre! E
ele: - Pode vir, dá para nós dois! Pedim todo desconfiado: - Não, eu posso
incomodar o senhor no seu santo sono! Aí o da batina disse: - Que é isso? Isto
é a cama do senhor, cabe até mais, se avie homem, venha ver como ela está
quentinha! Todo desconfiado Pedim deitou-se bem no canto, fitando pela beira do
olho as intenções dele. E ao tirar a batina ele constatou o excesso de matéria
sebácea escondida, ele não se parecia tão gordo com ela. Que coisa mais feia!
Pra comer um bicho desse tem que tá bêbo, doido ou liso. Num havia tesão do
mundo que fizesse ele se agarrar com um protótipo de geladeira. Se vier para a
minha banda eu fôdo ele mas de porrada. E o padre ficou nu. Que coisa mais
horrível. Sentou-se num dos lados da cama, começou a rezar em latim. Depois da
ladainha, deitou-se com remexido, descansando uma das mãos numa das coxas do
Pedim. Ih, olhe o bicho pegando. Eu dou uma porrada nesse padre fresco. Pedim
duro, num mexia nem os nervos. Ao cabo de alguns minutos dormiram o sono dos
inocentes.
Retornaram
logo cedo. O padre satisfeito com os serviços do motorista, requisitava mais
dos serviços dele às irmãs para viajar. Nasceu uma nova amizade. De marido das
freiras para macho do padre, ih! Oito anos viajaram juntos o Brasil inteiro,
isso sem se desgrudar das atividades religiosas. Pedim já fazia todos os
serviços, de controle financeiro até recepção de donativos, organização das
roupas à compra de mantimentos. Carne e unha.
Quando
soube que Oscardo estava boatando que ele tava amigado com o padre, ficou puto.
Não podia se vingar do Oscardo, visto que era um veado de prestígio na cidade e
que já descabaçara iniciando muitos na vida e, por isso, fora, há anos, amigado
com o prefeito, o juiz quando molecote, os ricões quando taludos do lugar e
gozava dum relacionamento muito bem aquinhoado, protegendo suas boatarias.
Todos mantinham Oscardo na conta do maior respeito. Que bicha mais astuta!
Uma
doença arreou a lenha no padre, que acometido de mal brabo, foi definhando numa
enfermaria da Santa Casa. Três dias depois falecia. Pedim alí, nos pés do
padre, noite e dia, acompanhando toda agonia dele, sepultou-o mais dois dias
depois e ficou a ver navios. Ao final do enterro, quando todos retornaram às
suas casas, Pedim fora interpelado pelos familiares do morto.
-
Cadê a herança dele?
-
Num sei.
-
Sabe, você sabe tudo dele, onde está o dinheiro e os pertences dele?
-
Que eu saiba, venha cá!
Pedim
levou os desconfiados até a casa paroquial, escancarando tudo, eles vasculharam
encontrando seus pertences, poucos, por sinal.
-
Cadê o controle bancário dele?
-
Ele não possuía conta corrente, não, era tudo em dinheiro que guardava no bolso
e gastava com a paróquia. Sobrou nada não. Podem investigar, procurem!
Vasculharam
tudo mesmo, de cabo a rabo, beatas, fiéis, nada. E reclamavam: - Porra! Só tem
um colchão véio desse? Quem quer uma merda dessa? Ao cabo de um mês foram
embora com uma mão na frente e outra atrás. Pedim, de mãos abanando, ficara
apenas com o colchão dele. Mais nada. Também, mais não tinha. Nem ele sabia
porque levou a porra do colchão pra casa. Só sei que uns meses depois ele
apareceu com um carro novinho, comprou uma casa própria, uma outra casa para a
amante, apareceu cheio das gaitas, fez fortuna e vive hoje se balançando na
rede e peidando contra os ventos só pra ter raiva da catinga. Pode? Tem cada
pantim, hem?
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