RUA DO SOL (Imagem: foto de Marcelo
Albuquerque) – É só uma rua e eu estendi
minhas mãos pro nada e pros indiferentes absortos no seu mundo de sonhos
particulares e olhos maravilhados com as cores barulhentas dos vindos e idos em
todas as direções. É só uma rua e só encontrei amparo no frio poste plantado e
apagado pra iluminação pública sem que eu saiba sequer de onde venho e pra onde
vou desterrado de tudo porque sou de nada. É só uma rua como outra qualquer em
que sou um estrangeiro e meus passos pisam a manhã que vem da praia e se
estende de mim deportado do chão ao ermo e sou bem mais que o tempo na
conquista do espaço e o coração saltando no peito. É só uma rua e não sigo
impune o trajeto no flagrante da hora e sou vivo sem ter pra onde ir na busca
do céu com seu Sol enorme nas minhas veias e esquentam o meu sangue remexendo as
entranhas pra serem exploradas por indigestão ou colapso de quem busca guarida
sem ter onde cair morto. É só uma rua e o dia é quase uma trilha perdida no
meio da mata com toda abusão da cidade que deixou de ser campo de vida para ser
concreto armado com fantasmas reais que seguem espantalhos ao meu encalço,
enquanto sigo pegadas que dão pras esquinas como se cada uma delas fosse um
capítulo a parte do que tenho que descobrir por regos invisíveis e ocomeçam da
praia ao longe e me destinam rieiras pra que eu tenha que depor os bens que não
tenho para confisco, ou debulhar desgraças que nem me vitimaram. É apenas uma
rua com uma praça de nenhum aconchego a servir ao passante que sequer sabe que
sou negligente aos pormenores e sempre relapso ao que foi a mim confiado, e sem
a miserável noção do que se passa em cada alma penada que ignoro o parentesco
mais próximo e sem a versão exata dos acontecimentos que se embrulham em
mentiras e sabotagens e explodem verdades de nenhuma verdade pra me lançar sem
arrimo e sem prumo, abandonado dos que se apiedam e jogado entre os que
perderam a comoção e sem a menor compaixão sçao bastante severos a condenar de
tudo. É só uma rua e atravesso a frieza concreta com o chiado dos ferros, o aço
dos viventes e das cartas marcadas na ponta dos dedos, pra saber o mundo
inteiro ali no ritmo das baladas do momento e das manchetes do noticiário pelo trânsito
com suas businadas, sirenes, insetos, caras fechadas, chuviscos e esbarrões nas
calçadas com o anúncio da última promoção e os cartazes da liquidação das
vitrines e a frenagem dos carros apressados no asfalto, a fumaça dos pastéis e
churrasquinhos de carne de gato, a condução entupida e os prédios silenciosos são
redomas prendendo gritos, sussurros, esperanças, choros e desenganos, e com as
suas fachadas no reflexo dos para-brisas ao lado do arroto do jovem irreverente
e fedorento pelo semáforo que não me deixa ir, é vermelho com o aroma do
perfume barato nas risadas das moças desbocadas, a sisudez dos empregados que
saem dos becos aos reclamos com a carroça atrapalhando o trânsito por causa de
um caminhão na descarga de produtos de uma loja de eletrodoméstico, e o jumento
assusta os transeuntes que vêm desavisados ninguém sabe de onde pra esbarrar no
evangélico que berra com um livro entre as mãos e a falar da salvação dos
pecadores que seguirem seu caminho, enquanto a verdureira com seu avental se
perde na vidraçaria pra se livrar dos motoboys ziguezagueando entre os
apressados automóveis e ônibus entupidos e carretas carregadas de consumo e
solapam as marquises e destroçam o luminoso com a marca de venda e quase
arranca a fachada que cai sobre uma bicicleta que passa sobre o rabo de um
cachorro rabugento a fuçar o lixo na lama do meio-fio e remexer com um gato
morto atiçando o mosqueiro que adorna a ferida em uma de patas e focinho e
aumenta o fedor de mijo e toda inhaca que vem do beco e o monturo de lixo das
lojas, bares e repartições públicas para festa dos garis puxando o contêiner para
recolhê-lo sem dar vencimento da fábrica de dejetos e coisas que caem das
bolsas e sacolas das mulheres e dos homens com sua encolerizada antipatia entre
os distribuidores de santinhos, consultas de pais-de-santo, chips de celular,
empréstimos consignados e planos de saúde, ao som da resenha policial nas
alturas do rádio e o vereador aos discursos de arborizar um logradouro enquanto
enche o prato na bandeja de comida rápida do fogão coletivo, em meio a um rodízio
de estudantes peiticando com um pedinte que atrapalha o seu passeio e a música
barata dos vendedores de cds e dvds piratas jogando porrinha no meio das pulhas
e pules de loteria com a chamada do capítulo da telenovela e anúncio dos astros
desconhecidos de futuras celebridades dos programas de abelhudos das
intimidades, quando um freio brusco da cantada de pneu com afronta ameaçando o
ar em cada quarteirão dos que seguem na vida e dos que abrem da vela. É só uma
rua que sou nesse exato momento como se o segundo do passo fosse a hora de dias
e toda extensão fosse a semana corrida que dá no domingo do fim da linha e
tenho de voltar ou seguir adiante pra onde não sei, refazer toda andada por
declives até o fim da tarde com o por do Sol no mar de onde eu vim. © Luiz
Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais aqui.
Imagem:
a arte do pintor,
gravador, desenhista e professor Ivan
Serpa (1923-1973).
Curtindo o álbum The Girl with Orange Lips (Elektra Nonesuch,
1991), da soprano estadunidense Dawn
Upshaw.
PESQUISA
Anatomia da destrutividade humana (Guanabra, 1975), do filósofo, sociólogo e psicanalista
alemão Erich Fromm (1900-1980). Veja mais aqui, aqui, aqui e aqui.
LEITURA
Museu de
Tudo (José Olympio, 1975), do poeta João
Cabral de Melo Neto
(1920-1999). Veja mais aqui e aqui.
PENSAMENTO DO DIA:
[...] O wertheriano convive com a
morte, derrota ou é derrotado por ela. [...] enquanto o donjuanismo é leve e só pesa a posterior. [...] Levando o simplismo e o paralelelismo ao
exagero, se poderia dividir a humanidade em dois tipos básicos: os que se matam
e os que muitas vezes provocam a morte; o primeiro centrado em si, o segundo na
plateia.
Trecho extraído do romance Confissões
de Narciso (Rocco, 2001), do romancista, contista e ensaísta mineiro Autran Dourado (1926-1954). Veja mais
aqui, aqui e aqui.
Veja mais outros assuntos sobre Violência Sexual, Carl
Rogers, Bertrand Russel, Eurípedes, James
Hilton, Rick Wakeman, Eugène Delacroix, Pelé,
Movimento & Francis Bacon aqui.
CRÔNICA DE AMOR POR ELA
Untitled (1970), do ator, produtor, diretor,
escritor e fotógrafo estadunidense Larry
Clark.
CANTARAU: VAMOS APRUMAR A CONVERSA
Recital
Musical Tataritaritatá