RENASCIDO
DA SEGUNDA MORTE - (Imagem:
acrílico da artista plástica Chris Cozen)
– Era uma manhã nublada de julho, 1983. Uma noite mal-dormida de cansaço pelo
ensaio, reuniões, debates. Álcool no sangue e a cabeça ao vento. Estava
apressado, uma quase mania. Tudo no ponto, porém, a pressa, pois, pra mim
deveras atrasado para o labor. Nada, inconsequência minha. Açodamento desnecessário.
Impaciente de esperar a condução, prefiro, então, descer até o cruzamento e me
juntar na guarita com outras pessoas. Ali aguardo o ônibus sempre muito mais
atrasado que eu. Passar o tempo, conversa mole, piadas ocasionais. Era bom
estar àquela hora com essa gente, logo o transporte chegaria, entraríamos todos
e manteríamos a manhã agradável como precisava que fosse para mim em mais um
dia estafante de trabalho. A vida não era como eu queria, levava, persistia,
resistia, perseverava. Alguma coisa começava a dar certo: novas amizades, novos
projetos que saiam do papel e adquiriam a prática da realização, acomodações,
conjunção de objetivos. Eis que no meio do converseiro, um ruído de frenagem
brusca, um abalroamento. O mundo começa a girar, uma confusão tremenda: não sei
mais de mim, nem de nada. Vertigens, um coro de vozes graves e uma ascenção
infinda. Subia, eu era apenas sensação, apenas: um piloto que não sabia para
onde ia, seguia a ermo, elevando-me, ao que parece, a rumos estelares. Tudo
muito confuso. Os dias e as noites começavam a se confundir no meio de um pé de
vento que se deu num redemoinho de nuvens e, depois, num tornado, que findou
num penhasco de várias montanhas em pleno solstício. Estava por vales, voando
sobre depressões e já equinócio, muitas paisagens em espirais, o insólito no
crepúsculo que virava alvorada, o extraordinário nas geleiras da Estrela de
Neve, o incrível no encontro entre o Oriente e o Ocidente em Constantinopla: o
corpo caloso da Humanidade. Instantaneamente, tudo mudava e eu sentia uma
temperatura amena, nem quente, nem frio. E de repente, tudo se transformava,
não sabia qual percurso, meu estado e tudo que me ocorria tornavam-se
indescritíveis. Eu era apenas o que via e sentia. Vozes e vozes, algaravias.
Estupefato, meu estado interior é impreciso: perturbado e, ao mesmo tempo, não
sei ao certo se apaziguado. Era como se um caleidoscópio me revelasse cenas de
acontecimentos, ao mesmo tempo em que me via despencando por quedas
vertiginosas, ou por subidas quiméricas que me davam a impressão de que a vida,
naquele momento, não fosse mais que um ninho de artrópodes: dúvidas, dívidas,
tentações, miragens, intolerância, egoísmo, tudo inerente ao ser humano com seu
o carma, o soçobrar ao horror da guerra e ao cataclismo, a degeneração pela
catástrofe, a busca incessante pela paz. Alguma coisa me era dito por uma voz
indistinguível que se sobressaía das demais, mas não conseguia decifrar, nem
entender. Sabia-me quase refratário diante do visinvisivel, minha vida toda
fora na ilusão do psiquismo. Sabia que aquilo tudo não era assimilado pelos
sentidos, mas algo se somava ao meu sacudido vazio interior, à desordem e
perplexidade, ofuscado, confundido. Não sabia nada e me sentia de repente, como
se um buraco abrisse do nada e eu começasse a cair carregado de pavor. Recobro
os sentidos, sou sacudido pela buraqueira do trajeto, deitado no banco traseiro
de um veículo conduzido por um desconhecido. Sinto dores e a velocidade do
trânsito, buzinas, motores. O meu ombro e braço esquerdos doem demais. A dor é
maior na passagem entre as placas do asfalto, ou no quebra-mola. Sinto que o
condutor estaciona e a porta traseira do automóvel é aberta e vários
enfermeiros me arrastam para uma maca, me empurram às pressas e me jogam no
meio de outras tantas macas num recinto quase insalubre de paredes úmidas
desbotadas, gemidos que se misturam com o frio intenso do ar condicionado,
entra e sai de gente. Sinto meus dedos engelharem com o ambiente friento, tinha
só a certeza que ia logo padecer de uma pneumonia porque fiquei bem embaixo da
boca do aparelho condicionador de ar. A movimentação era grande, ora cochilava,
ora acordava assustado, entre a vigília e o torpor. Muito tempo ali, não
conseguia nem me virar de tantas dores. Uma longa espera sem que pudesse
organizar uma ideia sequer, nenhum pensamento me passava pela cabeça mergulhada
nas dores e na urgência de atendimento, completamente abandonado. De repente
ouvi a chegada de uma pessoa procurando por mim, quando fiquei sabendo que já
era mais de meio dia. Tomei pé da situação e percebera que passei a manhã toda
ali, doendo, imóvel e sem saber o que fazer. A assistente social se apresentou
e providenciou que cuidassem de mim. Fui arrastado por corredores infindos. Um
médico examinou-me, fui pra sala de Rio-X. Com o resultado, vi feições de
reprovação. Aplicaram anestesia no meu braço direito, uma a dor a mais em tudo
que já sentia. Tempos depois, ficou constatado que a medida não surtira efeito,
quando o médico começou a demover as mulheres e crianças do recinto, colocou-me
de cara pra parede e começou a fazer uma raspagem no lado esquerdo da minha
cabeça acima da orelha. Em seguida, senti uma pontada na carne do meu crânio,
gritei, berrei, resmungos e palavrões. Uma tortura interminável. Quando me vi
quase morrer, ouvi que teve de fazer o curativo em carne viva, demovendo metais
e tintura que se alojavam no meu couro cabeludo. Mandou que fizessem uma
atadura pra minha clavícula e braço esquerdo fraturados. E que me levassem dali
pra outro hospital. Correria, ambulância, trânsito, outra enfermaria. Três dias
de sofrimento, a cabeça zunindo, ataques de muriçocas e pernilongos noitedia,
não havia paz ali. No lado esquerdo, um paciente que só olhava, não se mexia; no
outro lado, um que estava nu com uma bala na nuca em estado de coma. Abandono,
mal-estares e picadas de inseto. Pedi pra ter alta, não me sentia bem, mas
aquilo era o inferno. Insisti. A cada visita da família, eu implorava. Até que
quatro dias depois, sob assinatura de responsabilidade familiar, tive alta,
pude ir pra casa. Dali, três meses de fisioterapia: a atadura que colocaram
apertava tanto que meu braço esquerdo virou ossos esverdeados. Ao cabo de
quatro meses depois, estava recuperado e dentro duma delegacia depondo sobre o
incidente que sequer vira. Durante todo esse tempo pude refletir sobre a vida:
a importância de viver e a inutilidade. Do nada pode acontecer tudo. Mesmo não
tendo a capacidade de discernir nem de conjeturar o meu destino, pude constatar
que o significado dos acontecimentos me escapava à compreensão. Contudo, para
meu espanto, estava encorajado a seguir em frente na aventura que me coubesse. Adquiriria
a consciência de deveria estar pronto pro meu carma, porque me foi dada a
oportunidade da compreensão. E com a coragem de avançar aprendi que hoje pode
ser melhor que ontem, com certeza; e que amanhã será melhor que hoje. Com isso,
pelo coração aprendi a indulgência com todos os temperamentos para quem,
impaciente como sempre fora, jamais tivesse. Tive a consciência do
livre-arbitrio: sou responsável por meu destino. Sou grato à vida por isso. E porque
aprendi a não provocar os acontecimentos, deixando-me levar sereno, esperando o
essencial que não seria assimilado ali, na hora, mas nalgum outro momento,
outro dia, sei lá, quando for porque nenhuma certeza me apoiava, nem poderia
estar certo do que quer que fosse. Só sei que a verdade chegaria e que seria
além do que pudesse prever. A experiência vivida teve o teor de instantes que
valem uma vida. Afinal, o acaso não existe. © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais
aqui.
Imagem:
a multiarte da
pintora, escultura e cineasta francesa Niki
de Saint Phalle (1930-2002).Veja mais aqui.
Curtindo Concerto d'Amore (2016), do compositor,
maestro, produtor e professor holandês Jacob de Haan, com a Harmonie Eendracht
Dronten & regência do próprio compositor.
PESQUISA
Comunicação
em prosa moderna (FGV,
2004), do filólogo, linguista, ensaísta e crítico literário Othon Moacir
Garcia (1912-2002), abordando acerca das sutilezas da moderna terminologia
semântica e discute problemas lingüísticos e lógicos com os quais se defrontam
todos aqueles que se dedicam à escrita. Veja mais aqui.
LEITURA
João Ternura (José Olympio, 1980), do escritor, professor e homem de teatro Aníbal
Machado (1894-1964). Veja mais aqui.
PENSAMENTO DO DIA:
INCAPACIDADE DE MANTER FORMAS
Os líquidos se
movem facilmente. Eles fluem, escorrem, esvaem-se, respingam, transbordam,
vazam, inundam, borrifam, pingam, são filtrados, destilados, diferentemente dos
sólidos, não são facilmente contidos – contornam certos obstáculos, dissolvem
outros e invadem ou inundam seu caminho. [...] A extraordinária mobilidade dos fluidos é o que os associa à ideia de
leveza. [...] manter fluidos em uma
forma requer muita atenção, vigilância constante e esforço perpetuo – e mesmo
assim o sucesso do esforço é tudo menos inevitável.
Extraído do livro Modernidade
líquida (Zahar, 2001), do
sociólogo polonês Zygmunt Bauman,
em que aborda que a transição da modernidade imediata, que é leve,
líquida, fluida e mais dinâmica que a modernidade sólida que suplantou e que a
passagem de uma a outra acarretou mudanças em todos os aspectos da vida humana.
Nesse sentido ele procurar esclarecer como se deu essa transição, audiliando a
repensar os conceitos e esquemas cognitivos usados para descrever a experiência
individual humana e sua história conjunta, fazendo uma análise das condições
cambiantes da vida social e política. Veja mais aqui, aqui, aqui e aqui.
IMAGEM DO DIA
Charge Thinker, do cartunista, desenhista e
ilustrador estadunidense Andy Singer.
Veja mais sobre
Primeira reunião, Pär
Lagerkvist, Torquato Neto, August Strindberg, Camille Saint-Saëns, Serge
Gainsbourg, Lena Nyman, Carl Heinrich
Bloch, Waltraud Meier & Lucy Gordon aqui.
CRÔNICA DE AMOR POR ELA
CANTARAU: VAMOS APRUMAR A CONVERSA
Recital
Musical Tataritaritatá