ENTRE
TOPADAS E SONHOS – Confesso:
o primeiro, não sei; o segyndo, não lembro; o terceiro, lascou. Do que fui pro
que sou, entre sonhos e topadas, quase nada sobrou. Da infância: travessuras no
quintal, mimos de vô e vó, o olho nas fechaduras, o segredo das saias, a beira
do rio. Não fosse o chão, eu seria o super-heroi do pé de goiaba. Não fosse a
tarde, não saberia dos bichos e sonsos que reinam na noite, o medo do coração
aceso de Jesus na viga da sala, os castigos do bicho-papão, o acalanto do boi
da cara preta que faz a gente dormir e sonhar. Não fosse o bigodinho ralo em
cima dos beiços, eu não teria dado um pulo da catinga do mijo pro enxerimento
com as meninas do ginasial. Foi quando tive as primeiras aperturas do coração:
as damas da coreia, o escurinho do cinema, os gibis e o catecismo de Zéfiro, as
primeiras lapadas de meiotas, tragos e goias nas bitucas de índio, cavalo de
aço, boca de sino, paz e amor, cabeça de vento. Não fosse precoce, não pisaria
tanto na bola, não olvidava de tudo, nem teria recaídas sentimentais, muito
menos erraria tanto e demais. Não fosse a sorte de sempre, peito estufado de
perna de pau, o rumo das ventas, correrias tontas, chamegos nos sarros diários,
estudos com música, presepadas teatrais, olhos grudados nos livros e nos
decotes, errancias além da conta, não fosse aprendendo às quedas, não saberia
jogar xadrez, dar voltas no mundo, safar de cruzetas, levar tudo na prosa e na
ponta dos dedos, a saber que a valia de agora é instante e já era, a corrida do
dia entre chuva e Sol, sem saber das estrelas nas noites viradas, o nada pro
triz, não dando fé das decepções nem vergonha na cara com tudo acontecendo
embaixo do nariz. Não fossem alguns versos tirados em cima da bucha, não teria
de noite a valia do dia, nem saber que vivia no mundo da lua, entre choros
insones e dupla talagada, os passos corridos e broncas safadas, o tempo perdido
com conversa fiada, os temores vencidos na pá virada, os sonhos preteridos na
vida agitada, e o que era sentido, enfim, era nada. Não fosse um dia, já bem
homem feito, quase passando do ponto, dormir bem menino e acordar madurado,
desaprendendo depressa todo caminho trilhado, refazendo o que foi feito e tudo
traçado, aprendendo direito e esquecendo o passado, dar de cara em parapeito e
sinal fechado, corrigindo defeitos de ser malcriado, saber que tem jeito um
futuro aprumado, pois sou um sujeito, quase pau torto, tudo endireitar ou por
tudo a perder, ou ficar sempre de sobreaviso nas circunstancias, perdendo o
bonde, a banda e tudo passar. Claro que não, em mim quem manda sou eu. Posso não
estar certo, nem ser o dono da razão, nem quero, mas sei que posso recomeçar. Afinal,
hoje quase já nem sei o que é sonho ou real. E vamos aprumar a conversa &
tataritaritatá © Luiz Alberto
Machado. Direitos reservados. Veja mais aqui.
Imagem:
arte da
pintora espanhola María Blanchard (1881-1932). Veja mais aqui.
Curtindo a vídeo-instalação Baccus, do compositor, cineasta e
radialista espanhol Miguel Álvarez-Fernández, baseada na condutividade elétrica do vinho e apresentada no Festival
Vinfonies (Vilafranca del Penedès, Barcelona, 2011), e o documentário em
longa-metragem No
escribiré arte con mayúscula, do compositor com Luis Deltell, em homenagem
ao pioneiro da conceptual arte espanhola Isidoro Valcárcel Medina. O compositor
ainda apresenta o programa semanal Ars
Sonora, desde 1985 na Rádio Nacional de España, dedicado à arte sonora e
música experimental.
PESQUISA
Estrutura da linguagem poética (Cultrix, 1978), do ensaísta francês Jean Cohen (1919-1994), efetuando uma
análise acerca dos níveis fônicos e semânticos na estrutura dos procedimentos
característicos da linguagem poética. Veja mais aqui e aqui.
LEITURA
Poesia completa (1940- 2004,
Tooopbooks, 2004), do
premiadíssimo escritor e ensaísta alagoano Ledo
Ivo (1924-2012). Veja mais aqui e aqui.
PENSAMENTO DO DIA:
As culturas do ressentimento são possíveis, e prosperam como nunca,
porque pelo encontro da frustração e tempo livre existe muita atenção
concentrada em guardar rancor pelas humilhações; os cuidados sempre em vigília
dos intelectuais produzem inquisições incessantes mudam contra as ofensas do
êxito. Resta a dúvida de que essas formas de luxo redundam em proveito da
cultura total, seja lá isso o que for. Desde o ponto de vista otimista, pode
observar-se como o ressentimento estimula o metabolismo da agressão mediante
fantasias de humilhação ricas em material maduro.
Extraído
da obra Esferas (Siruela, 2003/2009),
do filósofo alemão Peter
Sloterdijk. Veja mais aqui.
IMAGEM DO DIA
Tanztheater Wuppertal (2001/2016), da memorável coreógrafa, dançarina, pedagoga
e diretora de balé alemã Pina Bausch (1940-2009). Veja mais aqui.
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