FORTE
E SADIO QUE NEM O POVO DO TEMPO DO RONCA - Uma dor de cabeça e Zé Corninho quase doido. Uma causa,
todos sabiam, ele também: as gaias dando curto circuito no quengo. Dessa vez,
só isso não. Já se dava por hipocondríaco de tantos médicos consultados, meio
mundo de cachete e nada: uma dor crônica. Já desconfiava em dar razão pra
mundiça. Para ele, a essa altura do campeonato, só Padre Bidião ou doutor Zé
Gulu de todas as ciências que resolviam. Logo, o mais fácil. Na porta do bar, soube
que o doutor arribara carregado duns braquearos pra carburar as ideias com uma
pilha de livros e uma reboladeira dengosa pro furunfado lá pras bandas duma
ilha deserta. Já o padre Bidião, tomou ciência de que ele andara envultado no
seu disco voador a dar trabalho à humanidade. E agora? Doro sugeriu Mãe-Lena,
uma raizeira afamada que era tida por malquista catimbozeira pra população em
peso. Quem? Vou nada! Ela vivia num conluio de décadas com o não menos doutor
Baita, um farmacêutico que possui uma drogaria que vendia de tudo: desde raiz
de pau a veneno de última geração – incluindo antraz, tabum, sarin e outras
reengenharias químicas inventadas por ele e mais eficientes, só vendidas pra
exportação pros gringos em guerra. Da união escondida entre ambos, nasceu um
menino mais conhecido por O homem da cobra, propagandista do principal produto
da botica: a salsa, caroba e cabacinha – a panaceia para todos os males. Tá
doido? De primeira, o enfermo refugou: vai que ela prescreva lacrau prele comer
e, ao invés de curado, ele morresse envenenado. O pariceiro persuadiu o
renitente adoentado que a dita cuja era perita na cura de todas maledicências
da face da Terra, vez que vem gente até do exterior pra se tratar com ela.
Prova disso, era o fato de que fora ela a responsável pela saúde do ferro do
padre Bidião: - Você já viu o padre arriado alguma vez? Deveras, o padre
arrotava saúde. Como também o próprio Doro, testemunha viva das artes da
benzedeira, isso desde que fora tratado, nunca mais soube o que era a tal da doença.
Zé Corninho apertou o juízo, remexeu na cachola e mesmo com o juízo trabalhando
na baixa, resolveu topar a coisa. Chegando lá, a prestimosa curandeira fez um
exame detido da situação do acamado a base de passes e rezas, chegando ao
diagnóstico que ele estava achacado dum mal dos brabos e que pra remediar só
ele morrendo pra renascer de novo, porque perspectiva de cura alguma havia. Mas
ela que não perdia nunca a viagem nem um paciente que fosse, resolveu encarar o
desafio em cima da bucha e foi logo lá pra dentro, remexendo nas tranqueiras
dela e trazendo um copo cheio dalguma coisa pra ele tomar: - Tome! Quéquéisso?
Ayahuasca, cura-tudo! Ele olhou pro Doro desconfiado que lhe deu um empurrão
mandando tomar logo o remédio. Vai, peste! Ingeriu a pulso, de biquinho, foi
sorvendo com uma careta dos diabos! Toma, infeliz! Engoliu, tossiu, engasgou-se
e quase vomita! – Segura frebento! Aí foi a hora dum ritual carregado de
orações de benzeduras machas com um molho de matos e plantas amarrados e esfregado
na venta do combalido, isso por horas. Tome tempo e ela sacudindo o mato nas
fuças, tronco e membros do achacoso, dele queimar de febre e suar mais que
tampa de chaleira. O cabra quase desaba de vez e bate as botas. Foi aí que ela
emborcou o sujeito, dele ficar de cu pra cima, deu-lhe uma pisa de urtiga pra
tirar todas as maleitas, depois sacudiu-lo embaixo do chuveiro com banhos de mais
folhas e matos de toda espécie, fez uma defumação geral do cara quase morrer de
tanto tossir, deitou-lo numa mesa forrada com toalha branca e copos com
diversos líquidos e cheinhos pela borda, bateu bombo, saracoteou, baixou santo,
falou com meio mundo de mortos, deu tapas, tabefes emurros nos costados do
desinfeliz, revirou ele de todo jeito de quase botá-lo pelo avesso, até
sacudi-lo em pé com uma ordem: - Pronto! Tá curado. E num é que tava mesmo!?!
Ele até sorriu se dizendo bonzinho na hora, novinho em folha. Aí foi a vez das
prescrições num receituário sem fim: banhos de manhã, de tarde e de noite; chás,
infusões e sucos disso e daquilo com todo tipo de casco, pé de pau, raiz e
inseto – êpa, isso não! -; essências, emplastros, óleos, unguentos, xaropes e
infusões dum tanto de coisa com meizinhas diversificadas e, o mais importante, uma
dieta a base de taioba, gengibre, açafrão, pimenta malagueta, barro, poejo,
sabugueiro, linhaça, manjericão, avelóis, chicória – isso no por enquanto, de
quinze em quinze dias tinha que ser tudo revisto na dieta geral, isso só em
nova consulta- e fazer a oração da cabra preta como manda o rital: nu, meia
noite em ponto, numa encruzilhada. Tudo isso pra não mais ser acometido de
porqueira de doença nenhuma. Cruz-credo, pensou ele. Nu mesmo? Pelado de tudo!
Vixe! A encruzilhada mais próxima da casa dele era a do cemitério. Virgem,
santa! Deu com pé atrás. Como sinal de apoio, Doro se prontificou de acompanhá-lo
na horagá. Mas num é isso! O que é? É que não sou bicho nem sou achegado a só
comer mato, preciso de coisa que dê sustança pra mode dar vencimento nas mulheres.
Ah, aí são outros quinhentos! Ou faz, ou morre, escolha. Seguiu à risca. E num
é que o cabra não foi mais acometido por moléstia nenhuma, vez que toda vez que
sentia algo estranho, corria logo pra prevenção: receita da Mãe-Lena, drogaria
do doutor Baita! Pronto, pra ele, as gaias nunca mais deram curto circuito! E
pra quem nunca caiou, não seria agora que ia passar vexame, né? Tinha as
garrafadas à base de catuaba e outros afrodisíacos tirados do chão e que ela
mesma aprontou pra ele de nunca passar vergonha. A bronca é que ele encheu a
casa de bruguelos até de um olho só e, pra isso, não tem remédio que dê jeito:
língua falou, pingulim funcionou, o cu pagou. E vamos aprumar a conversa &
tataritaritatá! © Luiz Alberto
Machado. Direitos reservados. Veja mais aqui e aqui.
Imagem:
a arte do pintor, desenhista,
gravador, escultor e ceramista belga René Mels (1909-1977).
Curtindo o álbum Diva (EMI, 2004), uma compilação dos melhores momentos da carreira
da soprano e cantora lírica romena Angela Gheorghiu.
PESQUISA
Geografia da fome - o dilema brasileiro:
pão ou aço (Brasiliense,
1957), do médico, professor catedrático, pensador, ativista político e
embaixador do Brasil na ONU, Josué de Castro (1908-1973). Veja mais aqui
e aqui.
LEITURA
Poesia moderna da Grécia (Guanabara, 1986),
seleção, tradução, prefácio e textos críticos de José Paulo Paes, reunindo
poemas do folclore, Kaváfis, Kazantzákis, Seféris, entre outros. Veja mais aqui
e aqui.
PENSAMENTO DO DIA:
Italo Calvino by Wesley Merritt
& Cloe/Las ciudades invisibles de Italo Calvino
by Giagarofalo
No momento que
a ciência desconfia das explicações gerais e das soluções que não sejam
setoriais e especialisticas, o grande desafio para a literatura é o de saber
tecer em conjunto os diversos saberes e os diversos códigos numa visão
pluralista e multifacetada do mundo.
Trecho extraído do livro Seis
propostas para o próximo milênio (Vozes, 2000), do escritor italiano Ítalo Calvino
(1923-1985). Veja mais aqui, aqui e aqui.
IMAGEM DO DIA
Ecce Homo, projeto da
artista e fotógrafa alemã Evelyn
Bencicova, retratando motivos artísticos comuns com origens bíblicas,
representações de violência e guerra, narrativa de mistério e questionamentos.
Veja mais sobre
Bernard Shaw, Richard Wagner, Somadeva Suri, Mary Cassatt, Gilberto Gil, Betty Williams, Patrick
Süskind, Pigmalião, Karoline
Herfurth, Susan Strasberg & Pedro Du Bois aqui.
CRÔNICA DE AMOR POR ELA
Gravura do pintor, gravador e ilustrador
francês Paul-Émile Bécat (1885-1960).
CANTARAU: VAMOS APRUMAR A CONVERSA
Recital
Musical Tataritaritatá