À
PROCURA DA PATERNIDADE (Imagem: arte do artista
plástico espanhol Ernest Descals)- Não
sabia de si. Para ela, só o mundo dos olhos. Dentro dela, um negrume de vazio
abissal. Muitas querências insaciáveis, rompidas, irreveláveis. Tinha até medo
de fechar os olhos e se perder no nada. Assim era o que foi e o que será. Aos
dezesseis anos, sonhos e fantasias espatifadas no piso que agora lhe fugia aos
pés num futuro negro e incerto. A vida passa depressa, o mundo corre solto
pelas calçadas e ruas. Perder o bonde torna tudo mais difícil. Passou, ah
passou, uma nova espera. A espera de sempre. Por um instante a fragrância da
infância, quando era riso pra tudo: mimos, trelas e tretas. Agora, a inocência
perdida. Restava a efígie no espelho da parede. Gostava de expor-se: batom
vermelho nos lábios, calcinha, sutiã e salto alto. Vermelhos. Uma dama de luxo
cobiçada por todos, a sua vaidade. Insinuante, olhos tímidos. O vestido
vermelho, o decote nos seios, o corte do tecido macio a mostrar-lhe as coxas,
as pernas, achava bonito seus calcanhares sobre a colcha da cama. Era quando
ficava embalada com o pensamento do sarro no namorico, aos beijos, tudo
espionado por uma implacável perseguição. Sabia. Adivinhava. Agora entendia
porque a mãe insistia em chamá-la de malagradecida. Era ciúme, só podia. Bastou
depará-la mocinha, quase mulher feita e ela mudou por completo. Antes, mãe
dedicada, prestimosa, tolerante. Agora não, desde o flagra de braços e corpo
colado ao namorado, daquele dia em diante, ela passou a ser reticente, aborrecida,
repetitiva: não foi pra isso que lhe criei, malagradecida. Não pra isso que
passei horas de sono, cuidando de você. A bem da verdade, ela não tinha mesmo
muito a ver com o jeito, nem com nada do que era. E tinha quase certeza que eles
não gostavam dela, privaram-na de tudo, sempre um não pra tudo que lhe
trouxesse alegria. Isso depois de mocinha. Na lembrança repassava os dias em que
o pai bêbado, a mãe na missa, galanteios e carinhos afetados, não entendia
nada, era a princesinha dele, alisando os cachos do cabelo, obrigando-a submissa
a sentar no seu colo, e ele mãos com dedos quase na vagina dela, um ajeitado
nos peitinhos, beliscões delicados nas nádegas, chamava para chupar sorvete,
puxava a alça da blusinha, a palma da mão dela levada para um alisado numa
saliência que emergia da braguilha dele, promessa de presentes deslumbrantes se
alisasse direito, brincando de adivinha, o que é o que é, ela à mercê. E isso
desde criancinha, por isso, pra ela, era tudo natural, estava acostumada, nem
ignorava já mocinha sonsa usar disso para conseguir o que queria. Quando o pai
aquiescia, assentindo o que quisesse pra sua felicidade, a mãe botava gosto
ruim, implicava na maior peitica, até estragar tudo. Parece que ela adivinhava
o que se passava quando trancada no quarto com o pai. Ou dissimulava na hora e
se vingava dela pro resto da vida. Agora não mais, consoante a investida dele, embriagado,
desvencilhava-se como podia. Agora, aquilo lhe dava náuseas. Não mais a
provocante e fatal sedutora. Agora, decentemente trajada, procurava um rumo pra
sua vida. Tinha de ter cautela, estava encurralada. Detendo-se, à espreita, fitava
a casa mobiliada carregada com todas as memórias insustentáveis. A descoberta
dos pais postiços assim de súbito, dera o sinal de sua ruína. Perdia a noção da
vida e de tudo. Não havia mais a quem recorrer, nem o namorado inspirava
confiança, ele sabia e não lhe dissera nada. Esfacelara-se no meio de toda
rememoração. Pra onde ir, não sabia. Da mãe biológica, apenas Maria. Nenhum
sobrenome pra sair à procura de quantas mães Marias na face da terra. Comovida
pela triste sorte, sentiu-se à beira de um precipício: a constatação da
orfandade. Não havia mais em quem acreditar, não discernia mais o falso do
verdadeiro. Deu vontade de morrer, matar-se de tudo, uma nódoa na alma, nada
como remover, demovê-la dos seus martírios. Quem sua mãe, seus pais, não sabia,
nem tinha pistas do paradeiro deles. Restava debulhar as lágrimas e sumir do
mundo. Não havia mais sentido em viver, a vida acabou. Não sabia. Trancou-se em
si e não mais viu nada. A sua solidão reinava. © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais
aqui e aqui.
Imagem: arte do artista plástico espanhol Ernest Descals.
Curtindo o álbum Espelho d’água (ViSom, 2001), da harpista, cantora e compositora Cristina Braga.
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mais aqui.
PESQUISA
Lenda, mito e magia na imagem do artista: uma experiência histórica (Presença, 1988), de Ernst Kris & Otto Kurz, tratando o enigma do artista sob as perspectivas psicológica, a natureza do homem criador de obras de arte; e a sociológica, como é que tal pessoa, a cujo trabalho é atribuído um valor particular, é avaliada pelos seus contemporâneos.
LEITURA
PENSAMENTO DO DIA
Acho o nosso planeta maravilhoso,
mas precisamos tratá-lo bem porque é o único que temos.
Foto: astrônoma e professora de Física e Astronomia da University
Washington, pesquisadora do Goddard Space Flight Center – NASA, e autora do
livro Vivendo com as Estrelas (PandaBooks,
2009), Duília
de Mello.
Veja mais Brincarte
do Nitolino, Hermilo Borba Filho,
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Loren & Léon Bakst aqui.
CRÔNICA DE AMOR POR ELA
Imagem: arte do artista
plástico espanhol Ernest Descals.
CANTARAU: VAMOS APRUMAR A CONVERSA
Recital
Musical Tataritaritatá