ENFERMEIRA & A DOR DE SER MULHER (Imagem:
A musa chora sobre a coluna, da
artista plástica Nanduxa) - O
coração doi, como o meu nome: Das Dores. A dor sempre, convivência. Doía mais
quando entrei na profissão. Tudo começou quando terminei o segundo grau e fui
fazer um curso de primeiros socorros. Descobri o que era de gosto, foi isso que
escolhi. Sempre adorei cuidar de gente, todo tipo, principalmente crianças e
velhos. As crianças me enchiam de satisfação, a índole maternal. Pras pessoas
de idade avançada, eu me envolvia numa atração apaixonante entre afeto e
comiseração. Era a minha forma natural de ser caridosa, sempre ao auxílio de
quem necessitasse. Comecei estagiando num posto de saúde num bairro próximo à
minha casa. Foi daí que pude, então, começar a fazer um curso técnico. Mais
dois anos, passei no vestibular e iniciar o curso superior. Cinco longos anos
entre o atendimento e a formatura. Não foi fácil, muitas vezes tive de virar a
noite em claro, entre estudos e emergências. Durante essa caminhada, fui
contratada para trabalhar num hospital particular de uma cidade vizinha. Foi
quando conheci todo universo de gente estropiada. Confesso que chorei muito ao
longo desses anos, quantos problemas, quanta gente doente. No hospital a coisa
era mais complicada: doenças, acidentes, crimes. Aquilo não era o mundo de paz
e harmonia que eu sonhara, não era nada do que pensava ser a vida. O inferno
estava a cada segundo da noite ou do dia, em cada porta que abria, em cada
corredor que passasse, em cada lágrima escondida no banheiro. Gente doente com
falta de ar, ou a face desfeita e inchada por pauladas muitas, ou balas,
facadas, escoriações, amputações, fraturas expostas, desilusões depressivas,
enlouquecimentos, enfermidades tantas. Meus sentimentos foram se moldando com o
passar dos tempos, perdi o afeto, tive de perder a compaixão. A vida ensina. O
pior era que ainda por cima tinha de encarar os lobos maus de branco com
apalpadelas, cantadas, promessas e injúrias. Caísse na antipatia deles, estava
ferrada. Todos eram de uma forma ou de outra parentes ou achegados dos sócios
donos do hospital. Uma panelinha pronta para quem caísse na berlinda, uma
arapuca sem saída. Um dos donos mesmo gostava de chegar tarde da noite com bafo
de álcool pra revolucionar: dar alta, remediar, prescrever exames e
medicamentos emergenciais, afora sair beliscando as nádegas das enfermeiras,
quando não agarrando-as e se esfregando, levantando as saias e obrigando ao
sexo fosse na enfermaria, apartamento, no dormitório, onde fosse. Uma vez
mesmo, numa madrugada que eu aplicava a medicação de um paciente de idade e que
só mexia os olhos abertos desde que chegara, assim, de repente, esse doutor
dono invadiu a enfermaria como se eu fosse a última fêmea da face da Terra. E foi
logo me agarrando por trás, levantando minha saia, enfiando uma das mãos na
minha vagina dentro da calcinha, a outra se enfiando dentro do meu sutiã para
amolegar meus seios, grunhindo com olhos vermelhos e costumeiro bafo de bebida,
apressado já abrindo a braguilha e demovendo minha calcinha, de sentir seu
membro quente e rijo entre as minhas coxas e intimidades, quando o paciente
moveu uma das mãos e pegou a minha, levando-a até o seu ventre, ao que gritei e
se assustaram, o médico e paciente. Apressadamente me recompus e saí chorando. A
minha desilusão não parou por aí nessa noite, descobri o papel de cafetina
exercido pela enfermeira-chefe para se manter no cargo e no emprego, a me
aconselhar simpatia e bom grado às investidas dos donos, médicos e pacientes.
Não aguentei e, mesmo assim, fui ultrajada, injuriada e demitida por me
recursar dessa prática. Eu me vi no olho da rua, sem horizonte, sem futuro, sem
nada. O meu sonho havia sido pisado e jogado no lixo. Tive de refazer a vida,
graças a um concurso público, pude conhecer o inferno de um hospital geral
público. Plantões longos, intermináveis: uma criança que engoliu moedas, um
marmanjo acometido de priaprisma, uma senhora em estado de choque, uma jovem
suicida sofrendo o mal de amor, um ancião com fratura na espinha dorsal de uma
queda, um jovem com um tiro na nuca, um casal vítima de atropelamento, um
motoqueiro semimorto, um médico se entupindo de medicamentos e bebidas para
suportar seu trabalho, ocorrências diversas, acidentes e fatalidades. O mundo
me ensinava ainda mais. Ninguém se encosta para ajeitar na ajuda, só atraso de
vida. Quando a bondade aparece, vá ver: é só tapeação. E a desilusão é uma
porta que se abre constantemente para desmantelar qualquer condição de
dignidade e respeito. A minha profissão me fez desumana, insensível. Procuro
por mim mesmo e não me encontro: essa não sou eu. Apesar da voz melíflua, da
minha maternidade latente e da ternura que carrego ao peito, a dureza do
cotidiano laboral me faz ser o que não sou: um robô cumprindo ordens e tratando
indiferentemente cada necessitado. Essa não sou eu. Doi-me mais o desencanto
dos amores desfeitos, das paixões mal-resolvidas, da incompreensão dos homens. Agora
doi mais o coração de uma mulher. © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados.
Veja mais aqui.
Imagem: A arte do escultor, performer e artista plástico alemão Joseph Beuys (1921-1986). Veja mais aqui.
Curtindo o álbum Cello Music of the fin de
siecle in Vienna (Camerata, 2000), com
obras dos compositores Johanna
Müller-Herman (1868-1941), Karl
Weigl (1881-1949) e Anton Webern
(1883-1945), na interpretação de Othmar
Müller (cello) e Leonore Aumaier
(piano).
69 histoires de désir (Electa), do professor e pesquisador
francês Jean-Manuel Traimond, em
obras que estão na História da Arte da França, Alemanha e Espanha.
A
artista do corpo (Companhia das Letras, 2001), do escritor,
dramaturgo e ensaísta estadunidense Don
DeLillo. Veja mais aqui.
O ser humano não é somente o ser pelo qual se revela a
negatividade no mundo. É também o que pode tomar atitudes negativas com relação
a si, da obra O Ser e
o Nada: ensaio de ontologia fenomenológica (Vozes, 1997), do
filósofo, escritor e crítico francês Jean-Paul Sartre (1905-1980). Veja
mais aqui e aqui.
Veja mais Erich Fromm, Dalton
Trevisan, Plinio Marcos, Camões,
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Chabrol & Katharine Hepburn aqui.
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