MARIA
ESPERANTINA, ORGASMO DE UMA NOITE & NUNCA MAIS (Imagem: arte da artista
plástica austríaca Xenia Hausner). –
Enviuvara há cinco anos, não convolara novas núpcias. Absteve-se, resignada,
sua experiência marital não fora das que se diga lá perto do razoável, só
privação, sacrifícios, precisões. Homem, sexo e fogão. E ela, quase ninguém. Prazeres
ínfimos, quase nenhum. Pernas abertas de plantão: a vontade dele, os horrores
dela. Na boquinha da noite, agonia nem anoitecida. Ela, só cansaço, revia-se
firme e forte. Tinha de acertar os ponteiros com ele, energia renovada e
urgente. Até que gostava, não sentisse tão morta na lama, cuspida na sarjeta.
Depois, o suplício: roncos de costas na cama. A aflição de não ser nada, valia
nenhuma, apenas objeto de consumo. De manhã, roupas sujas, poeira nos móveis,
comida pro dia e uma faca de ponta afiada invisível no coração. Pigarro, bafo
de cachaça, desolação. A sua rotina, a vida quase estragada. Maria Esperantina
de batismo, Gonzales esponsal. Não mais. Era a caçula entre três, a única
sobrevivente. Há cinco anos, o preço da solidão, a liberdade de nada valendo
que tanto. Sempre comedida, pudica, quase beata. Não fosse o socorro de Vera
naquela manhã desequilibrada, jamais sairia dos seus haveres solitários.
Soubera duma cidade, o seu nome. Um dia especial, seria. A promessa de um Apolo
sonhado na indicação arrojada de Vera alvoroçada. Abriu-se-lhe uma esperança,
nenhum entusiasmo. Apenas aquela esperança de quase nada alcançável. Uma cidade
aprazível, província perdida nos rincões do Brasil. Era outono, depois de
tantos choros ao pé da porta, uma ponta de riso no canto dos olhos. Desconfiada,
continha-se. Não demonstrava desespero, apenas solícita, curiosa. Findaram
indo, as duas. Vera acompanhou o trajeto até o lugar, promessa de esbaldar,
soltar os demônios, tangas a voar. Ela não, reprimida em si. Vera que fosse.
Viu-se enredada, num assalto de surpresa, perdeu o fio da meada. Com a viagem
desentoxicava-se, novos ares. Nem dera conta acompanhada num quarto de pousada com
um estranho que pouco simpatizara. Como se dera, não sabia. Como pudera,
fugiu-lhe o poder. Como que envolvida num estratagema, deixara-se levar. Enjeitara
tudo em si, o seu interdito. Quantas novenas noites a fio, agora nada valiam. A
voz rouca assustava, rubores de pernas cruzadas. O riso dele era um insulto.
Fez figa, segurando a barra do vestido. Na beira da cama, uma mão boba, uma
carícia ao braço escapando limites, a queda no colchão. Olhos marejados,
resistia. Insistia a vergonha, a culpa, o remorso. Inútil. A mão insistente
desabotoava suas vestes, nenhuma palavra, olhos no chão. Desnudada, tudo em cima
pros olhos grandes dele e a sua língua lambendo os beiços como quem armou de
tocaia a arapuca certeira. Queria só lavar égua, tomaria dela tudo que tivesse.
Removeu o sutiã e abocanhou seu seio esganado. Não protestava, nem resistia. Removeu-lhe
a calcinha, apenas escondia a fogosa insaciável trancada a sete chaves. Ela só
desamparada, pálida e seduzida, aos sobressaltos, mãos no coração. Ele arvorado
com pegadas por tudo que era dela: perdeu-se de tudo que era seu, nem mais era,
agora nada. Lívida, encarava a judiação. Tomada no abraço, a catinga do macho
roubou-lhe os sentidos. Estava tomada, reduzida presa, dominada. Mais resistia
e se benzia na autocensura. Engolia o soluço na luz apagada e se preparava para
morrer embaixo do cobertor. De novo a lama, não saberia que seria mais dela.
Voltava pro nada, desprotegida, seviciada. Domou-lhe os punhos, à força.
Fungados na nuca, mordiscados nos ombros, indecências ao ouvido. Arremetidas
teimosas invadiam-lhe a carne, a honra suposta e a alma penada. Calcanhares
afastados, pernas perdidas, intimidade roubada: possesso com ajeitados bruscos
e invasões indesejáveis. Devassidão que pra ela até Deus duvidava, dores nos
quartos. Tudo de novo, pro nada. Cavalgava como quem tratava bicho. Apavorada,
excitava-se mordendo a fronha do travesseiro. Os seus segredos se revelaram, perdia-se,
rendeu-se ao que podia de prazer. Enlouquecida, largou-se ao paroxismo. E gemeu
num gozo demorado, a primeira vez do orgasmo em cinquenta e três anos de vida.
Possuída, dilacerada, sentiu-se feliz de verdade pela primeira vez, pelo menos.
A tortura de sempre, agora mais que um gozo, prazeres. Esta noite e nunca mais.
Nunca mais o que era antes, nunca mais virá depois. Arrependida, juntou os
trapos que lhe restara, quase nada de si. Sentira-se ninguém, mais que nada.
Como sempre, depois de consumado, só restara ir embora. Ele se foi, que se vá. Não
haverá próxima vez, insistia. Apaziguada com o recuo e, depois, a saída
desarmada do adversário, sentiu o alívio de quem se libertara do que não sabia.
Havia sido invadida, ultrajada, agora não mais. Não haverá outra vez. De volta
pra casa, determinada. Era outra vida agora. Não mais passado nem lembranças.
Às cinco da tarde, o silêncio caiu: trinado do telefone. Disposta, não arredara
o pé. Não mais, resistente. Nunca mais. Meia hora depois, toda prendada no
quarto do intruso. A nudez refeita, entregou-se rendida. Tudo outra vez,
permitiu-se. Era ela. © Luiz
Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais aqui.
Imagem: Trem
das Alagoas, ilustração do premiado ilustrador e quadrinista Guazzelli (Eloar Guazzelli Filho). Veja
mais aqui.
Curtindo o álbum ao vivo Oropa, França e Bahia (BMG/Ariola, 1988), do cantor e
compositor Alceu Valença. Veja mais
aqui, aqui e aqui.
PESQUISA
O sexo na história (Francisco Alves, 1980), da historiadora
e escritora britânica Reay Tannahill (1929-2007). Veja mais aqui.
LEITURA
Hoje
é dia poeta Ascenso Ferreira
(1895-1965).
PENSAMENTO DO DIA
Protesto é quando eu digo
que algo me incomoda. Resistência é quando eu me asseguro que aquilo que me
incomoda nunca mais acontecerá
[...] Como Auschwitz foi possível? O que
era o antissemitismo na Alemanha? Usou-se o ódio do povo à sua dependência
pessoal do dinheiro, como uma maneira de troca, sua busca pelo comunismo.
Auschwitz significa que seis milhões de judeus foram assassinados e jogados em
aterros sanitários pela Europa, por serem aquilo que lhes foi apontado ser -
Dinheiro-Judeus. O que aconteceu foi que o capital financeiro, a elite e os
bancos, o núcleo do sistema do capitalismo e do imperialismo, desviou a atenção
e o ódio do povo de si mesmo para os judeus.
Palavras
da jornalista, escritora, ativista e guerrilheira alemã Ulrike Marie Meinhof (1934-1976), encontrada morta enforcada com
uma corda improvisada de uma toalha, no dia 09 de maio de 1976, durante os
festejos do Dia das Mães, na Alemanha. Investigações oficiais dão conta de que
fora suicídio, mas o laudo foi contestado por acusações públicas com massivas
demonstrações de protesto pelo assassinato. Décadas depois veio à tona a
notícia de que o cérebro dela havia sido retirado pelos patologistas, sem
conhecimento da família e conservado durante 26 anos em formol para estudos no
hospital de Magdeburg. Dela ainda pode ser encontrado o filme Bambule (1970), que foi roteirizado por
ela e que fala sobre a vida de jovens mulheres num reformatório, como também o filme
Ulrike Marie Meinhoh (1994), dirigido
por Timom Koulmasis.
Veja mais Ascenso Ferreira, Alexander Scriabin, Ortega y
Gasset, Wilhelm Reich, Esperantina & o Orgasmo, Renato Alarcão & Pablo Garat aqui.
CRÔNICA DE AMOR POR ELA
Imagem: arte da artista
plástica austríaca Xenia Hausner.
CANTARAU: VAMOS APRUMAR A CONVERSA
Recital
Musical Tataritaritatá