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terça-feira, fevereiro 20, 2024

NATALIE GOLDBERG, ANA MARÍA RODAS, HELEIETH SAFFIOTI, HOMENS & CARANGUEJOS

 

 Imagem: Acervo ArtLAM.

Ao som da Fantasia Sul América para violino solo (2022), do compositor Cláudio Santoro; do Canto dos Aroe (2021), do compositor Roberto Victorio; e Gestures – for solo violin (2022), de Arthur Kampela, todos na interpretação da premiada violinista e professora Mariana Isdebski Salles, autora dos livros Ciência na Arte - Arte na Ciência (Paka-Tatu, 2021) e Arcadas e golpes de arco (Thesaurus, 1998). Em parceria com a pianista Laís de Souza Brasil, lançou o cd Sonatas (ABM Digistal), do compositor Claudio Santoro; e, em parceria com o violoncelista Marcelo Salles, lançou o cd Mosaico (2005) e Mosaico II (2008), com peças para duo de violino e violoncelo de compositores brasileiros; e com o Deuxiéme Trio de Villa-Lobos, gravou o cd Fantasia para violino, violoncelo e piano de Franck Bridge e Trio de Michael Colina (2008). Veja mais aqui e aqui.

 

O BANQUETE & O PRECIPÍCIO (PISCAR DE OLHOS, A HESITAÇÃO E O ABISSAL)... - Quem não náufrago sobrevivente na roda-viva: apatetados metazoários, ruminantes do intelecto solitário, os Ocos de Eliot... Dá-se volta por cima até baixar a poeira porque nada se resolveu ou, se resolvido, nada deu fé. Só sortudo fora dessa! Pros do lado de cá a indagação de Lukáscs no pé do ouvido: Um estado de ânimo de permanente desespero com a situação mundial... quem nos salva da civilização ocidental?... Isso para quem nunca arregou da parada - mesmo que escorregasse pelo corredor público e desse num túnel sem saída como buraco sem fundo: tudo ruindo e o vexame diante do covil com toda contrafação no pé da venta – tem-se a impressão de que não passa de um impostor no buruçú do caos espaçado, valendo-se das sobras feito rufião aos gemidos na quase beatitude. É mesmo? Quem o faminto glutão engolindo tudo? Ah! É só deslembrar da morte esticando seus braços elásticos com as lâminas afiadas do tempo. É mesmo? Coisa besta, sai na urina. Ah, não, como escapar aos seus golpes letais, sem poder fazer nada, um gesto insólito, como dar de ombros, nada a ver, e tudo apodrecendo na chuvada da Ilha das Moscas de Golding. Sim, com Pampineia, Griselda de Vivaldi, Galeotto, meio mundo de gente, a discutir o que sobrou da Justiça, da Esperança, da Razão, levando lero da parábola dos anéis, os dedos que se foram, a ameaça da peste, da fome, dos monstros invisíveis e não sei lá o que mais, escorregando pelas dez jornadas de Boccaccio nas cenas de Pasolini. Danou-se! Leseira, sai nas coxas. Ah, tá! E do nada surgisse Anne Lamott: A esperança começa na escuridão, a teimosa esperança de que, se você simplesmente se levantar e tentar fazer a coisa certa, a manhã chegará. Você espera, observa e trabalha: você não desiste... E mais o patético escabroso das estranhas pelo intolerável soando nos tímpanos de forma ensurdecedora, inoculando o cinismo quase pueril. Como seria a morte? Ixe! Fogo pelando, água da muita, veneno cruel no que é fato e o que é valor, assim por diante - o desejável é seguir a lógica do xadrez dando conta do revogável. Vixe! Tem também o refutável e tudo o que foi violado, afora o protocolar considerado no acordo tácito, na ausência de domínio, tudo por conta de uma suposta isonomia. E é? Ousa-se, ataca-se até que um seja devidamente anulado com a última pá de cal. Aí, tá certo! E sacar Agneta Pleijel: Na batalha entre você e o mundo, fique do lado do mundo... Sacou? Dizem que o homem simples morreu na resiliência, chega dava gosto vê-lo romper a redoma e dormir com um olho só, avalie. Foi esfolado todo, quanta mofa. A desforra ficou nos galhos retorcidos da indiferença, intrusos fizeram a festa, quão leigos no ludíbrio das palavras e intenções, armadilhas sentimentais – será que vai nascer outro? A missão logo à tona, qual? Ah, o que mentem palavras, gestos e intenções, só equívocos. Nada, já dizia Péter Szondi: No seu lugar, uma época para a qual a originalidade é tudo reconhecer somente a cópia... Por pior que seja a súbita captura da esfinge há sempre a habituada potência da resposta estremecida, enganchada, exprimindo a miséria e a perigosa verdade para se salvar da tolice e ter o que bem possa merecer. É só uma primeira tábua em que possa se agarrar do insondável. Contudo, há de levar em consideração as armas em mãos inescrupulosas, a fome devorando, o monstro metendo medo, a desgraça irremediável, a sinceridade e a mentira alheia, quão falso e demasiado: o mundo saiu dos trilhos faz tempo. Mãos não se tocam, lábios não se beijam, braços não abraçam, pernas não se enroscam, pés não caminham, olhares não se veem, dengos não se procuram nem se satisfazem, corações não amam. Que raça é esta, hem? Nem sempre a união faz a força, às vezes rompe, opõe e dá num escambau cabeludo. Sobra o cuspe na cara: somos nossos próprios inimigos, uns aos outros, todos. Onde a obrigação de viver, a comida, a direção, só ódio e morte. Agora só na outra, meu. Viva! A vida é arte: vamos vidartear! Até mais ver.

 

TRÊS POEMAS

Imagem: Acervo ArtLAM.

POETA - O antigo rito me possui \ Várias noites sem dormir \ depois que o rio de sangue cai \ Eu me afogo nele e renasço \ novo como uma moeda redonda \ como um sonho \ perfeito em minha dor \ lembrando apenas o suficiente do passado \ para construir a \ teia de aranha \ com a qual cubro minha cama de solteira.

EI - Novo amante: \ Quero te explicar bem que entre os seus olhos \ e os meus olhos \ só existe desejo. \Que sua pele branca às vezes escurece \ porque quem me marcou ainda está aqui. \ Gostaria de dizer seu nome e não posso \ porque quando abro a boca lembro de \ uma cama diferente, \ outros lábios bebendo meus seios. \ E quando eu choro \ e te agarro com tanta força \ eu não fico feliz, amor. \ É uma chama. II - Ok, \ estou preso, ciumento, inconstante \ e cheio de tesão \ O que você esperava? \ Que ele tinha olhos, \ glândulas, \ cérebro, trinta e três anos \ e agia \ como um cipreste no cemitério? III - Disseram que um poema \ deveria ser menos pessoal; \ Que falar de você ou de mim \ é coisa de mulher. \ O que não é sério. \ Felizmente ou infelizmente \ ainda faço o que quero. \ Talvez um dia eu use outros métodos \ e fale de forma abstrata. \ Agora só sei que se algo for dito \ deve ser sobre um assunto conhecido. \ Só sou honesto - e isso basta - \ quando falo das minhas próprias misérias e alegrias \ posso dizer que gosto de morangos, \ por exemplo, \ e que \ não gosto de algumas pessoas porque são hipócritas, cruéis \ ou simplesmente porque são estúpidas. \ Que não pedi para viver \ e que morrer não é algo que me atrai \ exceto quando estou deprimido. \ Que sou feito \ acima de tudo \ de palavras. \ Que para me expressar \ uso tinta e papel à minha maneira. \ Eu não posso evitar. \ Não importa o quanto eu tente, \ não escreverei um ensaio \ sobre a teoria dos conjuntos. \ Talvez mais tarde \ eu encontre outras formas de me expressar. \ Mas isso não importa para mim agora; \ Hoje vivo aqui e neste momento \ e sou eu \ e atuo como tal. \ De resto, lamento não ter agradado a todos. \ Acho que basta olhar para mim \ e tentar me aceitar \ com ossos, músculos, \ desejos e tristezas. \ E olhar pela porta e ver o mundo passar \ e dizer bom dia. Aqui estou eu. \ Mesmo que eles não gostem. \ Ver.

VAMOS VIVER VALÉRIA - Esqueçamos as coisas que dizem \ até aqueles que chegaram de barco \ do Adriático \ das Cíclades \ de Rodes. \Suas línguas viperinas \ , que poderiam muito bem ser melhor utilizadas em casos amorosos, \sibilaram o mal do cume do Citoro. \ Não, eles não ousam dizer seu nome, \ apenas sussurraram o meu \Sentem medo, \ são hipócritas, \ mentem com putinhas magrinhas, \ vão embora sem pagar o que é justo, que não é muito. \ Vamos viver Valéria, \ depois de milhares de anos \ haverá um poeta diferente \ que nos ensinará o nosso amor \ e criará outra Carmem \ que sonhará cheia de paixão \ Iremos longe \ Valéria \ nossa cama \ serão as estrelas.

Poemas da premiada escritora e jornalista guatemalteca Ana María Rodas. Veja mais aqui.

 

ESCREVER COM A ALMA – [...] Escreva o que te perturba, o que você teme, o que você não tem vontade de falar. Esteja disposto a ser dividido. [...] Somos importantes e nossas vidas são importantes, magníficas mesmo, e seus detalhes merecem ser registrados. É assim que os escritores devem pensar, é assim que devemos sentar-nos com a caneta na mão. Nós estávamos aqui; somos seres humanos; é assim que vivíamos. Que fique claro, a terra passou diante de nós. Nossos detalhes são importantes. Caso contrário, se não estiverem, podemos lançar uma bomba e isso não importa... Registrar os detalhes de nossas vidas é uma postura contra as bombas com sua capacidade de matar em massa, contra o excesso de velocidade e eficiência. Um escritor deve dizer sim à vida, a tudo na vida: aos copos de água, ao Kemp's meio a meio, ao ketchup no balcão. Não é tarefa do escritor dizer: “É estúpido viver numa cidade pequena ou comer num café quando se pode comer macrobióticos em casa”. A nossa tarefa é dizer um santo sim às coisas reais da nossa vida tal como elas existem – a verdade real de quem somos: vários quilos acima do peso, a rua cinzenta e fria lá fora, o enfeite de Natal na vitrine, o escritor judeu no cabine laranja em frente à amiga loira que tem filhos negros. Devemos nos tornar escritores que aceitam as coisas como elas são, passam a amar os detalhes e avançam com um sim nos lábios para que não haja mais nãos no mundo, nãos que invalidem a vida e impeçam que esses detalhes continuem. [...] Se você não tem medo das vozes dentro de você, não terá medo das críticas externas. [...] Escrevo porque estou sozinho e ando sozinho pelo mundo. Ninguém vai saber o que passou por mim... Escrevo porque há histórias que as pessoas esqueceram de contar, porque sou uma mulher tentando se destacar na minha vida... Escrevo por mágoa e como fazer magoar OK; como me fortalecer e voltar para casa, e esse pode ser o único lar verdadeiro que terei. [...] Brinque. Mergulhe no absurdo e escreva. Arrisque-se. Você terá sucesso se não tiver medo do fracasso. [...]. Trechos da obra Writing Down the Bones: Freeing the Writer Within (Shambhala, 2005), da escritora e pintora estadunidense Natalie Goldberg. Veja mais aqui.

 

A MULHER, ENFRENTANDO A VIOLÊNCIA - [...] Como isolar o conceito de gênero? Não se deve isolá-lo de seu contexto econômico, social e político. Aliás, eu utilizo cada vez menos esse conceito, porque gênero é um conceito a-político, a-histórico e bastante palatável. Tão palatável, que o Banco Mundial só financia projetos com recorte de gênero. Se fizermos referência à “ordem patriarcal de gênero”, os projetos, certamente, não serão contemplados com as verbas solicitadas. Mas o patriarcado está aí, presente em todas as relações humanas. Chegamos ao paradoxo de os homens sustentarem a existência do patriarcado e a maioria das feministas mulheres a negarem. [...] É óbvio que não existe ninguém que consiga ficar neutro diante de uma contenda. Tenho minha posição, pública e notória, mas não tenho filiação, porque não quero perder minha liberdade de pensamento. [...] Estamos entupidos de cristianismo e isso representa uma face do fundamentalismo. Odeio fundamentalismos. [...] Não há sequer uma totalidade social; mas tão somente caos. Não gosto do pensamento pós-moderno, porque é fragmentário e projeta essa fragmentação na realidade, quando, para mim, a sociedade é uma totalidade, e a crença nisso me fez progredir teoricamente. No Brasil, sou considerada a teórica feminista, o que não significa que não sei pensar em políticas públicas, nem tampouco que não existam outras estudiosas do tema, criando teorias. Estudo o tema violência com a finalidade de lançar políticas públicas para as mulheres, oferecendo-as aos governantes, cujos meios para sua implementação estão ao seu alcance. [...] Logo, não sou apenas teórica, gosto também de pensar nas práticas, embora não me vincule a nenhum movimento, mantendo muito boas relações com todos eles. Não me agrada nada, nada, esta divisão: feminismo acadêmico versus feminismo militante. No Brasil, a academia abriu, sem resistência digna de nota, suas portas à temática de gênero e, ademais, há um trânsito fácil entre acadêmicas e militantes, sem contar o fato de que muitas militantes são também acadêmicas ou, pelo menos, leem e discutem suas leituras, não sendo, por conseguinte, apenas militantes. [...] É claro que o espaço doméstico é eminentemente feminino, mas não é o espaço da privacidade. É o espaço do trabalho não reconhecido, do trabalho não pago, do trabalho doméstico. E por que razão não é o espaço da privacidade? Porque vige um regime social, político e econômico androcêntrico ou patriarcal ou viriarcal. Em outros termos, vivemos sob o patriarcado. [...] O homem cuidava da chácara, era caseiro, e a mulher era empregada doméstica. Quando ela se referia a relações sexuais com seu marido, sua linguagem relativa a seu marido era a seguinte: “quando ele quer me usar...”. Era essa a linguagem utilizada, nunca me esqueci; e já ouvi essa expressão sendo utilizada por muitas mulheres do Nordeste, que moram aqui, em São Paulo, de paulistas e de mulheres de outros recantos do país. Ou seja, elas se consideram objetos para o uso e o abuso do seu amo e senhor. [...] Hoje, já existe uma jurisprudência de cerca de mil e quinhentos casos. É, sem dúvida, importantíssima esta terceira permissiva penal para o aborto. Há muitas pessoas lutando para a aprovação da súmula vinculante, não apenas para poupar trabalho. O juiz de primeira instância é aquele que vai para o interior e não vê mais nada, não tem universidade na cidade onde atua, ele não dá aula, não estuda. Se há um conflito entre um artigo de qualquer código comercial, tributário, penal, civil, ou qualquer outra lei isolada, de uma parte, e, de outra parte, a Constituição, é obvio que prevalece a Constituição, pois é a Lei Magna do país. Mas os juízes não estudam mais, então não percebem que estamos em outro mundo, que a Constituição acabou por derrubar vários artigos do Código Civil e eles não podem atuar segundo aqueles artigos. [...] Nós não temos como estar apenas fora do gênero, nem nós mulheres, nem os homens. Como ficar fora do gênero? Isso é impossível. O que nós podemos é lidar com todas as matrizes que nós conhecemos, simultaneamente. Então, a minha maneira de criar, porque eu não sou nenhum gênio, é: eu leio um livro, absorvo aquilo que me parece interessante, e tento avançar. Tento avançar um pouco – a ciência avança milimetricamente. Uma grande descoberta é fruto do acaso, porque ninguém é tão inteligente para ter uma ideia brilhante por semana. Então, vou fazendo o que eu posso, que é caminhar assim na criação, milimetricamente. [...]. Trechos da entrevista concedida pela socióloga Heleieth Saffioti (1934-2010), extraída da publicação Heleieth Saffioti, uma pioneira dos estudos feministas no Brasil (Estudos Feministas - UFSC, 2011) de Luzinete Simões Minella. Veja mais aqui, aqui e aqui.

 

HOMENS & CARANGUEJOS, DE JOSUÉ DE CASTRO

[...] Da evasão daquela paisagem humana parada e monótona. Desejo imperioso de sair de tudo. De sair de dentro de si mesmo. De sair do círculo fechado da família. Do ciclo do caranguejo. Da cidade do Recife. Um desejo desesperado de arrebentar com todas as amarras que o ligam à lama pegajosa do vale do Capibaribe e às folhas viscosas do mangue. Sair vagando pelo mundo afora com os navios que passam ao largo da costa, soltando com indiferença um arrogante penacho de fumo por suas longas e grossas chaminés [...].

Trecho extraído da obra Homens e caranguejos (Bertrand Brasil, 2003), do médico, professor catedrático, pensador, ativista político e embaixador do Brasil na ONU, Josué de Castro (1908-1973). Veja mais aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui e aqui.

 PS: Esta postagem é em homenagem a dois Joões coincidentemente de Araújo: o primeiro é professor e ESO em Língua Inglesa UFRPE, João Paulo Araújo e, o segundo, bibliotecário e parceiramigo da Biblioteca Fenelon Barreto, também, João Paulo Araújo.  Procês, zis abrações.

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domingo, junho 13, 2021

EINSTEIN, HARRIET STOWE, QUINTETO D’ELAS, CAPIBA & PHILIP GALINSKY

 

 

TRÍPTICO DQP – O que não foi nem nunca aconteceu... - Ao som dos álbuns Louise Farrenc (Paulus, 1999) & Vol. 2 (Paulus, 2001), do Quinteto D’Elas, composto pela violinista Betina Stegmann, a violista Adriana Schincariol Vercellino, a violoncelista Marialbi Trisolio, a contrabaixista Ana Valéria Poles e a pianista Helena Scheffel. – Em plena vigência do genocídio duplamente sindêmico do Fecamepa, tudo isso era real e lá estava eu às voltas com as insólitas aventuras no espelho de Wang Tu. Pelo menos, ao me encontrar envolto pelos labirintos da loucura, aliviava a crueldade premeditada da trágica realidade do cotidiano. Passei por tudo: desde a descarga de um raio no cocuruto até o esfacelamento de veias numa transfusão vampírica do mandatário Coisonário. E toda vez que ele passava a trupe dele gritava: Mico! Mico! Mico! Fico na qual é ou será outra a piada? Não foram poucas e o pior: a constatação de que o país não aconteceu nunca, a reboque do umbigocentrismo dos mamelucos sesmeiros que implicam suas questiúnculas coloniais, uns aos outros, para ver quem mais poderoso na preação fedorenta, só para depois barrunfarem desavergonhados os coprólitos de legítimos cucarachas entre os primeiro-mundistas. Triste constatação e maior cara lisa. Estaria eu pior, não fosse, certa feita, assim do nada, emergir a compreensiva observação de Einstein: Todos somos muito ignorantes. O que acontece é que nem todos ignoramos as mesmas coisas. Eita! Que coisa! Chega arriava entre escombros noitadentro, maior desalento. Vez em quando assediado pela esperança quando quase amanhecia com a presença inopinada da novelista e abolicionista estadunidense Harriet Beecher Stowe (1811-1896): A primeira hora da manhã é o leme do dia. As lágrimas mais amargas derramadas sobre os túmulos são pelas palavras que não foram ditas e coisas que não foram feitas. Uma mão amiga no meio da escuridão em pleno raiar do dia. Ao despertar percebi algo tão estranho e não conseguia identificar. Paredes, teto, cama, lençóis, móveis, objetos, tudo muito familiar. Ah, inadvertidamente percebi, estava lá: era o Travesseiro de Chen-Tsi-Tsi.

 


Duas badaladas do sonho múltiplo... - Os sonhos vinham e se misturavam uns aos outros atravessados por pesadelos terríveis do dia-a-dia, acompanhando a trilha sonora agradabilíssima, até ser interrompida por alguém apressado que nunca vira. Era o maestro estadunidense Julius Fifer: Não precisamos de alguém balançando os braços para entendermos uma frase! Não entendi, mas dizia como se aplaudisse a eloquente apresentação do quinteto. Logo saiu para me sacudir numa espiral vertiginosa de tombar estendido no matagal de uma chã. Em meu socorro apareceu Che Guevara (1928-1967): Sonha e serás livre de espírito... luta e serás livre na vida. Derrota após derrota até a vitória final. Ofereceu-me a sua mão, puxou-me e ajudou-me a ficar de pé. Apontou-me ladeira abaixo alguém que confidenciava para uns presentes. Quem era? O jornalista e advogado francês Jules Ferry (1832-1893): O importante é aprender verdadeiramente aquilo que não se pode ignorar. Prestei atenção e logo notei a presença de alguém querendo saber o que se passava. Dei de cara com Dalton Trevisan: O que não me contam eu escuto atrás das portas. E abri o jogo: a viagem onírica compensava a dolorosa ciência de existir naquele momento tão nefasto, para mim, como para todos os meus. Em todo planeta já se começava a respirar; aqui, não, roubavam o oxigênio e nos empurravam para as emergências indigentes e lotadas, quando não para o sepultamento em covas anônimas. É tudo muito triste.

 


Três tons para enganar a dor... – As surpresas não foram poucas: sobre o travesseiro repousava o volume Maracatu Atômico: Tradition, Modernity, and Postmodernity in the Mangue Movement and New Music Scene of Recife, Pernambuco, Brazil (1999), tese de doutoramento do etnólogo estadunidense Philip Galinsky, tratando sobre o movimento dos mangueboys Chico Science & Cia inspirados no Josué de Castro & a lama recifense & a poeira das faces matagrestelitor&sertão. Se o coração inchava satisfeito, logo passou a bumbar retumbante: os tons familiares e efervescentes que buliam nas veias, vísceras e interstícios. Era o cantor Gonzaga Leal com o seu E sentirás o meu cuidado (Autor, 2004) com os tons de Capiba noutras vozes especiais: Naná Vasconcelos, Teca Calazans, Francis & Olívia Hime, Dalva Torres, Kelly Benevides, e eu só solfejando Lá vai na serra Quando se vai um amor Cem anos de choro Depois Relembrando Nazareth pela Valsa Verde e Azul, Sem pressa de chegar no Cais do Porto ou na Nação Nagô Cantando sem saber cantar Duas janelas da Casinha pequenina porque Tu que me deste o teu cuidado. Isso me faz crer que vale a pena viver. E lá vou eu aos expulso do paraíso aos trancos e barrancos entre inferno e purgatório. Até mais ver.

 

Veja mais aqui, aqui, aqui, aqui e aqui.

 


quinta-feira, setembro 05, 2019

JOSUÉ DE CASTRO, JOHN CAGE, RADHAKRISHNAN, LUIZ MARINHO, BÁRBARA ANGEL & ZÉ DO MÉ


UMA BANDEJA, APENAS E... - Zé do Mé prosperou. Três meses seguidos de apurados na bodega sortida, além da expectativa e frutos de muito trabalho, noitedia. Olhos dele só cifrão, contando e recontando, polegar no indicador viciado. Fiado? Quem vê morre! Só tome lá, dê cá. Conversa mole? Oxe, tenho mais o que fazer, ora. Lengalenga: Ah, deixa disso e vá arrumar uma lavagem de roupa! Ele lá, juntando o molho da dinheirama embaixo do colchão, moedas e cédulas. Trancou-se no quarto, desconfiado e ficou totalmente ferrolhado brincava de jogo de bafo: Um pra eu, dois pra eu, três pra eu... Refletiu: era hora de mudar de vida. Aí, deu logo um jeito no guarda-roupa bocomoco cheínho de vestes novas, deu um banho de loja na esposa e filhos, pintou a casa, ajeitou o bar, deixou tudo nos trinques. Depois de muito gasto, apurou direitinho e viu que dava para adquirir um carro zero. Não deu, se ajeitou mesmo num carango meio mandú, do tipo de ricaço, com inscrição Diplomata nas portas e na traseira, quatro portas, seis bocas – Oh, bicho bebão da gota! Mas dos bons: basta encarcar o pé que dá mais de cem no mesmo instantinho! É só apertar que ele corre, vrum, de nem botar a língua de fora. Levou para casa e ficou paparicando a aquisição: lavava, cobria com cobertor, alisava, mimava, conversava por horas, como se fosse de estimação. Na hora da folga do final de semana, tirou da garagem, juntou a família com altas recomendações para não sujarem sua posse e, na primeira debreada, o bicho empancou: Ué!?! Desce todo mundo. Rebocou para a oficina, diagnóstico do mecânico sabido: a caixa de marcha está cheia de pó de serra, só uma nova. Eita! Tem jeito não, só outra. Um amigo socorreu com indicação de um ferro velho próximo, que tinha uma da mesminha, seminova, seis cilindros como a dele e por menos da metade do preço. Comprou a vista. Uma semana depois, tudo consertado. Danou-se a passar marcha: Agora, sim! Virou a cabeça e instalou um som incrementado e danou-se a dar volta só para se amostrar e matar os vizinhos de inveja, às risadagens, dentes no quarador. Equipou com pisca-pisca, lameiro, reboque, bagageiro, pneus novos com cinta branca, antena maria-mole para radioamador e bregueços outros. Maior matutagem. Depois de gastar mundos e fundos, juntou a família de novo e aos bregues para controlar a mundiçada: Num vão arranhar nem sujar o carrão, seus porras! Acomodou todo mundo, sentou-se ao volante, a mulher se intrometeu: Liga o ar condicionado pra gente saber como é! Tá doida, é? Se ligar esse bufante num dá pra gente nem sair do canto, o danado bebe demais. Vamos assim mesmo! Mas tá calor! Quando andar, passa. Engatou marcha, saiu da cidade e se mandou pela rodovia. Tá vendo? É, muita frescura mesmo. Acelerou que só, quase voa: Eita, bicho bom, macho todo! E a meninada: Êêêêê! Tira o pé do bolso, motorista! A paisagem passava rápida, a mulher e os filhos cada vez mais pendurados nos pegadores: O bicho corre mesmo! Segura no tabeliê, mulher! Destá. Reta, curva, tudo aprumado, pé fundo, u-huuuu! De repente um estalo na suspensão e era uma vez... capotou sonhos, prosperidade, alegrias e felicidade. Coitados. © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais aqui.

DITOS & DESDITOS: [...] A arte não é algo feito por uma única pessoa, mas um processo iniciado por muitos. Os materiais de música são som e silêncio. Integrá-los significa compor. Eu não consigo entender porque as pessoas estão com medo de novas ideias. Estou com medo das antigas. Um erro é simplesmente uma falha no ajustar imediatamente um preconceito para uma realidade. Sou dos que amam apagar a distinção entre arte e vida. Não é necessário renunciar ao passado ao entrar no futuro. Ao mudar as coisas, não é necessário perdê-las. Pensamento do compositor, escritor e teórico musical estadunidense John Cage (1912-1992). Veja mais aqui, aqui & aqui.

ALGUÉM FALOU: [...] A arte de descobrir é confundida com a lógica do teste e uma simplificação artificial dos movimentos mais profundos dos resultados do pensamento. Esquecemos que inventamos por intuição quando testada pela lógica. [...] A técnica sem inspiração é estéril. [...] No tabuleiro da vida, as diferentes peças têm poderes que variam de acordo com o contexto e as possibilidades de sua combinação são inúmeras e imprevisíveis. O reprodutor de som tem uma sensação de bem e sente que, se você não o seguir, será falso consigo mesmo. Em qualquer situação crítica, o progresso é um ato criativo. [...]. Trechos extraídos da obra Uma Visão Idealista da Vida (1929), do filósofo e estadista indiano Sarvepalli Radhakrishnan (1888-1975).

O TEATRO DE LUIZ MARINHO: Apenas procuro defender e valorizar o que amo. Que viva o teatro maior, de todas as regiões e pátrias. O premiado dramaturgo Luiz Marinho (1926-2002) é autor teatral que procurou em suas obras o universo cultural e social do nordeste brasileiro. Dos seus 14 textos, destacam-se Um sábado em trinta, Viva o cordão encarnado, A incelença, A família Ratoplan, Corpo corpóreo e As três graças, entre outros, transmitindo um pouco das memórias interioranas, a partir de crendices, violeiros, cangaceiros, vaqueiros e tipos locais. Sua trajetória foi registrada na obra Luiz Marinho: um sábado que não entardece (FCCR, 2004), de Anco Márcio Tenório Vieira. Veja mais aquiaqui & aqui.

A ARTE DE BÁRBARA ANGEL
Sou amante de interpretações, adoro ser, estar diferente.
A arte da fotógrafa Bárbara Angel. Veja mais aqui.

A OBRA DE JOSUÉ DE CASTRO
A fome é a expressão biológica de males sociológicos. Grupos inteiros de populações se deixam morrer lentamente de fome, apesar de comerem todos os dias. Existem 2/3 de pessoas que não dormem porque sentem fome, e 1/3 de pessoas que não dormem por medo dos que sentem fome. Metade da humanidade não come e a outra não dorme com medo da que não come. Fome e guerra não obedecem a qualquer lei natural, são criações humanas. O que falta é vontade política para mobilizar recursos a favor dos que têm fome.
A obra do médico, professor catedrático, pensador, ativista político e embaixador do Brasil na ONU, Josué de Castro (1908-1973) aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui & aqui.


terça-feira, janeiro 22, 2019

PIERRE WEIL, JOSUÉ DE CASTRO, SIDNEY AMARAL, AS PREGAS DE ODETE, HOMENS & CARANGUEJOS NO FESTIVAL CARIRI


AS PREGAS DE ODETE – Odete? Valha-me! Já sabe, né? Se não, deixa só ela aparecer com aquele penteado na marra da peruca desajeitada no quengo, gola feita cacharrel abotoada até o queixo, mangas compridas atacadas nos pulsos, a barra do vestido no meio dos cambitos, galocha velha e fumaça pelas ventas, segure a onda que ela bota moral de tão queixuda. Alguém já ouviu uma risada dela? Mostrar os dentes pelo menos? Só se for de raiva. Basta ela abrir aqueles boticões de olhos que o esparro come no centro: mexe com quem está quieto, desonra valentão, arma o maior barraco e só para quando a trovoada arrasou o quarteirão e redondezas, dela se ver consumida de todas as energias de gasguita rouca. Só assim. Quando dá na veneta ela muda percurso de procissão, horário de festa, enterro, até o que fazer e o escambau, depende só da Lua e ela aos pitís. Haja pantim. Ah, não existe na face da terra quem saiba de tudo mais do que ela: tem a ficha corrida de todo mundo, é dona da razão; o que diz, segundo ela mesma, é tiro e queda; é Deus no céu e ela nesse mundão das coisas mais desmanteladas. Por ela, consertava tudo: fome, miséria, briga de casal, encosto, tempo ruim, violência, o que aparecer, em dois tempos, tome lá. Se fosse prefeita, a sua cidade seria um brinco, assegura batendo o punho fechado; se fosse governadora, o estado tinha moral, brinque não; e se fosse presidente, dava um jeito nesse Brasilzão véio, arrevirado e de porteira escancarada, duvida? Ela bate o pé, esfrega o dedo no seu nariz, bota as mãos nos quartos e arreia o verbo: Aqui está tudo errado, eu dou jeito! E ai de quem pagar pra ver. Católica apostólica romana daquelas papa-hóstia de rosário entre os dedos, vocifera que a praga do mundo é crente, xangô e espírito ruim: Enquanto houver isso o mundo não presta! Diz e está dito. Ela se autoproclama justiceira e ao preparar um despacho na esquina não tem quem desenrole e se botar a mão no exorcismo, nunca mais corre bicho por aí. E não é só isso não: não larga os evangelhos, clama por todos os santos e usa de todo tipo de expediente para dar fim ao que achar por perturbação ou quizília. Se é pra aconselhar, ela não pestaneja: bota tudo na roda, mexe o pirão e ai de quem discordar do que ela diz. Pense numa tabacuda ineivada. Quem procura por seus conselhos ou sai doido comendo merda e rasgando dinheiro, ou nunca mais se apruma na vida, dizem. Ela está sempre ali, em cima da bucha: Êpa! Não precisa convocá-la para nada, pois chega no desaviso, cheira o duvidoso e deixa tudo às claras, segundo seu próprio tino: desmancha o que está certo, desacerta o que já está errado; bota gosto ruim, peitica, mete o bico no alheio, compra fuxico e passa o recibo, esfola a pereba, mete o dedo na ferida e no furico dos outros: Pimenta no cu dos outros é refresco, zomba. Pronto, com ela a cloaca abre e a coisa está feita: se está dando certo, bota tudo a perder. Pense num estrupício medonho. Com ela ou tudo está prestes ou gorou de vez. Chega ao ponto de arengar pelo que está certo porque entendeu tudo errado. Vá explicar. Ela mesma diz: O remédio de um doido é outro na porta. Só duas dela, a primeira, uma coisa é certa: quando o cara quer casar não tem quem demova a ideia. É? Parece que é. Chama Odete pra ver. Ela sozinha já descasou uma tuia e desfez um monte na porta da igreja. E ainda sai se vangloriando por que salvou duas almas, uma era pouca. Taí. Outra? Já viu um suicida voltar atrás? Pois voltou e quase mata Odete. Como não conseguiu seu intento de enforcá-la com as próprias mãos, matou-se assim mesmo jogando-se num tonel cheio de bosta. Como? Ah, Odete está por aí, pra cima e pra baixo. Se não existisse teria de ser inventada, só ela mesmo pra aprumar as conversas desconversadas. Eu, hem? Depois conto mais dela. © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais aqui.

DITOS & DESDITOS
[...] Existem, segundo as tradições e as recentes pesquisas transpessoais, quatro estados ditos “de consciência”: o estado de vigília, o estado de sonho, o estado de sono sem sonhos e o estado de plena consciência ou vivência holística. As características da plena consciência são conhecidas através das tentativas de descrição dos que a vivenciam: inefabilidade, caráter paradoxal, saída do espaço-tempo, não-projeção da mente sobre os objetos, superação da dualidade sujeito-objeto ou estado não dual, vivência de uma luz radiante que impregna o espaço, vivência da vacuidade plena, vivência de amor indescritível, sentimento de viver a realidade como ela é, perda do medo da morte e descoberta do verdadeiro sentido da existência. Como já afirmamos, componentes fisiológicos caracterizam esse estado que é, neste nível, passível de mensuração através da eletroencefalografia, da avaliação de mudanças circulatórias, respiratórias, eletrocutâneas, etc. A plena consciência é acompanhada também pelo fim do sofrimento psicológico, pelo despertar da verdadeira sabedoria, indissociável do amor, e por uma ilimitada capacidade – ou limitada apenas pelo corpo físico – de aliviar o sofrimento dos outros, aproximando-os da alegria de viver. [...]
Trecho de O que se entende por plena consciência?, extraído da obra Holística: uma nova visão e abordagem do real (Palas Athenas, 1990), do educador e psicólogo francês Pierre Weil (1924-2008). Veja mais aqui, aqui e aqui.

A ARTE DE SIDNEY AMARAL
A arte do escultor, pintor e fotógrafo Sidney Amaral (1973-2017). Ele é licenciado em Artes Plásticas pela Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP-SP) e estudou pintura acadêmica e fotografia e foi aluno do Museu Brasileiro de Escultura (Mube-SP). Ele realizou diversas exposições e mostras individuais e coletivas, e seu trabalho consiste na apropriação de objetos cotidianos e prosaicos e na sua recriação em materiais como mármore, resina, porcelana e, principalmente, bronze. Já apresentou sua obra em diversos espaços brasileiros e em países como Angola, Cabo Verde e Moçambique. Veja mais aqui.

HOMENS & CARANGUEJOS NO FESTIVAL CARIRI
Acontecerá até o dia 26 de janeiro o II Festival Cine Cariri em Nova Olinda, Crato e Juazeiro do Norte, com debates, oficinas e exposições. O destaque fica por conta do documentário ficção Homens e caranguejos, de Paulo de Andrade, baseado na obra homônima do médico, sociólogo, antropólogo e geógrafo Josué de Castro. Veja mais aqui e aqui.
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A obra de Josué de Castro aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui e aqui.
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muito mais na Agenda aqui.
 

quarta-feira, setembro 05, 2018

NICANOR PARRA, JOSUÉ DE CASTRO, OSCAR WILDE, FAUSTO WOLFF, KARITA MATTILA, CAMPANELLA, ILIA POPKHADZE, SALOMÉ & O INCÊNDIO DA BIBLIOTECA


O INCÊNDIO DA BIBLIOTECA – Imagem: The destruction of the Great Library of Alexandria - A Biblioteca Pública de Alagoinhanduba atendia o público no expediente normal e, ao cerrar suas portas de noite, servia de entretenimento para seus fantasmas. Isso era o que todos diziam entre cochichos e ouvidos. Diariamente, ao abrir o atendimento de manhã, estudantes acorriam para realizar seus trabalhos, ou visitas de classes escolares ao acervo, afora a costumeira presença de maníacos que se passavam por bibliófilos, ou de personagens que fugiam das suas histórias para nunca mais dar sinal de vida, ou mitômanos que renovavam seus repertórios em longas consultas, ou obcecados que mais endoidavam com as leituras, ou mortos que não foram avisados e ainda insistiam em achar que estavam vivos, ou malucos que se envultavam entre as páginas para retornarem assumindo a identidade de seus heróis. Assim era todos os dias até o início da noite. Quando davam as vinte e uma horas, era uma correria: não ficava ali ninguém, todos saiam às pressas para não toparem com os famigerados fantasmas que ouviam dizer ali existirem. É que ao longo dos anos a população denunciava que a biblioteca era malassombrada. E diziam que durante toda noite ouvia-se o som do maior festejo. Ninguém tinha coragem de conferir, quem era doido? Tanto é que depois das enchentes que devastaram a cidade, todos iam logo conferir se haviam destruído aquele recinto. Nada, enxurrada que fosse, a cidade quase desaparecia, mas ela ficava, intacta, só com o acervo destruído. O prédio, na verdade, aguentou tsunamis de todo jeito. O acervo, realmente, aniquilado: móveis suntuosos e antigos doados pelo Império e pela elite açucarocrata, registros históricos, descobertas arqueológicas, objetos desconhecidos, discos, gravuras, utensílios folclóricos, livros antigos e luxuosos, fitas de filmes antigos, jornais de antanho, obras e documentos raros, fotos antiquíssimas, quadros, esculturas, artesanato, enfim, tudo aquilo que a população inteira chamava de velharia havia sido sucateado ou surrupiado por sabidos da Administração Pública. Tinha até o disse-me-disse de gente da cidade e de Ribigudo que possuía mobiliários e bibliotecas privadas só com o que sumira do seu acervo. Boato ou não, ninguém perdia tempo em investigar. Pois bem, a exemplo das tantas bibliotecas públicas do Brasil, a de lá também sofria com o descaso da administração: quadro funcional regularmente reduzido, prédio em petição de desabamento, instalações com infiltrações e riscos de curtos nos circuitos elétricos e etc e tal. Foi por conta dessa penúria que, uma noite lá, os fantasmas resolveram tomar conta da situação. Fizeram um levantamento dos problemas e resolveram inicialmente reverter a situação e ajudar os funcionários. O primeiro a chegar ao trabalho, ao deparar com aquela assembleia, saiu na carreira de findar internado num manicômio, repetindo a todo instante: É verdade, tem fantasma na biblioteca! Os demais, aos poucos, mulheres corajosas, mesmo aos sustos e redobrados receios de serem atacadas, comedidamente mantiveram contato com os rebelados e tomaram pé da proposta deles. Como eram duas ou três apenas, aceitaram desconfiadas a colaboração sobrenatural, vez que ao chegarem tudo já estava limpinho e organizado para o início das atividades diárias. Com o passar dos dias já se acostumavam com a intervenção deles no atendimento de crianças e jovens que acorriam ali com dificuldades para pesquisas, ou nas visitas escolares, ou mesmo desavisados que por ali passavam equivocados com o endereço de algo que precisavam. Os assíduos apareciam com um pé atrás, mas logo entraram na roda e se metiam com os alienígenas em contações de históricas, encenações de obras ou mesmo saraus, recitais e serenatas que começavam logo de manhã e duravam a semana inteira por anos. Isso até o dia em que os boatos se avolumaram e arrepiaram fanáticos religiosos que entraram em pé de briga com aquela insolência misteriosa do mundo dos mortos entre vivos. O fato era que, como crianças, jovens e mulheres estreitavam relações com aquele absurdo, logo as religiões correriam o risco de perder esses fiéis entre as suas fileiras, o que levou a um ecumenismo geral que findou num ataque de exorcismo, com o objetivo de expulsar aqueles intrusos. Nada adiantou. A revolta religiosa logo passou do nível razoável para o mais aguerrido, a ponto de se preparar a destruição total daquele despropósito. Foi, então, que contando com o apoio da gestão pública que achava melhor acabar com aquilo do que manter um local cheio de obsoletas tranqueiras, aliado a policiais e gente que sempre odiou estudo, reuniram-se em frente da igreja da matriz e de lá partiram para acabar de vez com aquela farra. Invadiram de forma violenta o recinto, findando por provocar desabamentos ruidosos, resultando num incêndio sem precedentes de restar nem cinzas na memória da população sobre aquela biblioteca. Era uma vez. O fogo queimou com altas labaredas por dias e semanas, até ser tudo consumido de restar apenas um buraco onde antes estava aquele estabelecimento. De peito lavado, a população fez uma festa, comemorou o fim dos abusos sobrenaturais que tanto atormentavam os munícipes mais temerosos, regado a muita roda gigante, montanha russa, bailes e assustados, bebidas e orações. Agora não precisam mais de ler nada, nem lembrar nada, a vida segue como sempre fora: um passeio pelos dias de sol a sol com a noite no meio, nada mais. © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais abaixo e aqui.

RÁDIO TATARITARITATÁ:
Hoje na Rádio Tataritaritatá especial com a música da soprano finlandesa Karita Mattila: Salomé de Richard Strauss, Myrskyluodon Maija, Erwartung op. 17 de Arnold Schönberg & Triunphant Return NYC & muito mais nos mais de 2 milhões & 600 mil acessos ao blog & nos 35 Anos de Arte Cidadã. Para conferir é só ligar o som e curtir. Veja mais aqui, aqui e aqui.

PENSAMENTO DO DIA – [...] A fome no Brasil é consequência, antes de tudo, de seu passado histórico, com os seus grupos humanos sempre em luta e quase nunca em harmonia com os quadros naturais. Luta, em certos casos, provocada e por culpa, portanto, da agressividade do meio, que iniciou abertamente as hostilidades, mas quase sempre por inabilidade do elemento colonizador, indiferente a tudo que não significasse vantagem direta e imediata para os seus planos de aventura mercantil. Aventura desdobrada em ciclos sucessivos de economia destrutiva ou, pelo menos, desequilibrante da saúde econômica da nação: o do pau-brasil, o da cana-de-açúcar, o da caça ao índio, o da mineração, o da “lavoura nômade”, do café, o da extração da borracha e, finalmente, o da industrialização artificial baseada no ficcionismo das barreiras alfandegárias e no regime de inflação. É sempre o mesmo espírito aventureiro se iniciando, impulsionando mas, logo a seguir, corrompendo os processos de criação de riqueza no país. É o “fique rico” tão agudamente estigmatizado por Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil, a impaciência nacional do lucro turvando a consciência dos empreendedores e levando-os a matar sempre todas as suas “galinhas de ovos de ouro”. Todas as possibilidades de riqueza que a terra trazia em seu bojo [...]. Trecho extraído da obra Geografia da fome - o dilema brasileiro: pão ou aço (Antares, 1984), do médico, professor catedrático, pensador, ativista político e embaixador do Brasil na ONU, Josué de Castro (1908-1973). Veja mais aqui e aqui.

CIDADE DO SOL – [...] As artes mais fatigantes obtêm maior estima, como a do artífice, a do pedreiro, etc. ninguém se recusa a exercitá-las, porque a elas se aplicam pela particular tendência revelada na infância, e também porque o trabalho é distribuído de modo que nunca possa ser nocivo à pessoa, mas, ao contrário, deve torná-la e conservá-la melhor [...] As mulheres exercem as artes menos pesadas. Todas devem ser hábeis na natação, e reservatórios especiais de água foram preparados não longe da cidade [...] À Cidade do Sol costumam chegar comerciantes das diferentes partes do mundo, que compram dos solares o supérfluo. Os habitantes não recebem dinheiro, mas trocam com as mercadorias de que precisam, sendo que, muitas vezes, também as compram com moedas. Mas, de todo o coração, riem-se os meninos solares ao verem tanta abundância de coisas deixadas por tão poucas bagatelas; não se riem, porém, os velhos. A fim de que a cidade não seja corrompida pelos maus costumes dos servos e dos estrangeiros, fazem todo o comércio nos portos, vendendo os prisioneiros de guerra ou mandando-os para fora da cidade a cavar fossas e para outros trabalhos fatigantes [...] Possuem de tudo com fartura, desejando cada qual mostrar-se o primeiro no trabalho, que não fatiga e é útil. Os seus ânimos são dóceis e assim obedecem a quem preside aos mesteres, chamando-lhe rei. Nem esse nome lhes desagrada, pois é criação dos habitantes solares, que não o entendem à maneira dos ignorantes [...]. Não ofendem ninguém, mas também não toleram injúrias, brigando só quando agredidos. Dizem que o mundo alcançará tanta sabedoria que os homens viverão como eles. Admiram a religião cristã e esperam, neles e em nós, a confirmação da vida dos apóstolos [...]. Trechos extraídos da obra A cidade do Sol (Guimarães, 1980), do filósofo e poeta italiano Tommaso Campanella (1568-1639). Veja mais aqui.

À MÃO ESQUERDA[...] Uma noite de inverno em que o minuano parecia querer cortar as orelhas da gente de tanto frio, ele, que devia ter então uns sete anos, levantou os olhinhos pra mim e perguntou, vozinha triste: “Por que é que isto está acontecendo com a gente?” Rapaz, me deu uma agonia por dentro, como se tivesse vidro quebrado no estômago. Me senti burro, infeliz, miserável e triste. Eu não sabia por que aquilo estava acontecendo com a gente! […] Que Deus ruim é esse que faz uma moça bonita como a minha mãe se casar com um homem bonito como o meu pai, ter noves filhos, para depois matá-la? Por que faz nascer uma criança com o nome de Querido de Deus para depois deixar ele apanhar toda noite, sem um beijo, sem um carinho, sem uma lágrima morna de mulher para confortar a cabecinha dele? [...] Começo falando um assunto, entra outro na minha cabeça, desvio e, quando quero voltar, já esqueci. [...] Para se casar, um rapaz precisa ter pelo menos 480 mil metros quadrados de terra, que recebe do pai ou que vai pagando a ele aos poucos. As filhas, quando se casam, ganham de presente da família um cavalo de montaria, utensílios de cozinha […]. Se o rapaz é pobre, o casal se estabelece em terras devolutas. Irmãos e cunhados solteiros ajudam na preparação da terra e na construção da casa. Logo após o casamento, o casal inicia a vida de colono e procura ter o maior número de filhos. Os homens são mais bem-vindos por causa da força física […]. Em Esperança, a virgindade é fundamental e controlada pela comunidade. [...] Depois que se meteu nesse negócio de escrever, nunca mais teve de suar o couro para ganhar o dinheiro dele. […] A não ser que vocês considerem que escrever é trabalho. [...] Se algum dia alguém ler este meu diário, talvez se espante com o fato de uma colona se expressar tão bem em português. [...] Pronto, já está sorrindo, não é mamãe? É a morfina. Está viciada, não é mesmo? Eu sei que é bom. Já experimentei, sabia? Só que a senhora está morrendo e eu, não. Estou morta, mas não como a senhora. Quem morreu dentro de mim foi a moça que queria ser feliz e a senhora matou. […] Estou com cinquenta e cinco anos, mamãe, e a senhora está morrendo com quase oitenta. Mas não podia deixá-la morrer sem saber quanto a odeio. A senhora, provavelmente, não lembra, mas tive uma oportunidade de ser feliz muitos anos atrás. Ele era professor e comunista.[...] Aliás, meu filho, seu neto Anibale, é um homossexual incansável, conhecido em todas as saunas da cidade. Certamente, vai morrer de Aids, sabia? [...] Eu, porém, nunca o amei, e uma mulher tem direito de amar uma vez na vida, não é mesmo? Embora soubesse que quase todas as minhas amigas tinham amantes, eu era uma mulher ingênua. Estava à espera do meu príncipe encantado. [...] A senhora aproveitou para convidá-lo para a nossa casa de praia em Fregene. Deu-lhe um porre, fez ele jogar pôquer com seus amigos e perder alguns milhões de liras. Ele teve de pedir dinheiro emprestado para cobrir os cheques que assinou. [...] Quando voltei, a senhora ameaçou me deserdar se eu continuasse com ele. Lembra o que me disse? Se você precisa tanto de sexo, minha filha, arranje um gigolô, mas arranje um profissional discreto que sai muito mais barato [...] O que, mamãe? Fale mais alto, sua vaca, ou acha que eu não sei que a senhora traía papai com titio, sua santarrona, que trepou até com o mordomo. [...] A senhora nunca foi sodomizada, mamãe? Nunca felaciou ninguém? Claro que sim. Eu também. Já fui para a cama com negros, com mulheres, com prostitutos e prostitutas [...] Eu amava aquele homem, mamãe. Foi o sentimento mais bonito que já tive por alguém e a senhora acabou com ele para me transformar no que sou: uma puta rica. [...] Acordei mais cedo e depois de tomar banho, em vez de me vestir, descer e dar as ordens do dia aos empregados, me surpreendi olhando meu corpo nu no espelho. Nos meus trinta e seis anos de vida nunca vi outra mulher nua, nem a minha mãe ou minhas irmãs mais moças, Yolanda, Amália e Ofélia. O que vi no espelho não me desagradou. Tenho um rosto simpático, seios firmes, cabelos e olhos negros e um sorriso que raramente aparece em meu rosto, mas que quando aparece todos elogiam. Sou mulher honesta e virgem. Tenho um defeito grave: meço um metro e oitenta e dois e sou mais alta que a grande maioria dos homens que conheço [...]. Trechos extraídos da obra À mão esquerda (Leitura, 2007), do jornalista e escritor Fausto Wolff (1940-2008). Veja mais aqui.

MUDANÇAS DE NOMES - Aos amantes das belas letras / anuncio o meu maior desejo: / mudarei os nomes de algumas coisas / Minha posição é esta: / o poeta não cumpre sua palavra / se não mudar o nome das coisas. / Com que razão o sol / há de continuar chamando sol? / Peço que se chame Micifuz / das botas de quarenta léguas / Meus sapatos parecem ataúdes? / Saibam que de hoje em diante / os sapatos se chamam ataúdes, / comunique-se, anote-se, publique-se / que os sapatos mudaram de nome / desde agora se chamam ataúdes. / É certo que a noite é longa / e todo poeta que se preze / deve ter seu próprio dicionário / e antes que eu me esqueça / há de se mudar o nome de Deus / cada qual o chame como queira / pois esse é um problema pessoal. Poema do poeta e matemático chileno Nicanor Parra (1914-2018).

SALOMÉ
[...] Ah! Beijei a tua boca, Iokanann! Beijei a tua boca! Os teus lábios têm um gosto amargo. Era gosto de sangue? Não! Foi talvez o gosto do amor... dizem que o amor tem um gosto amargo... mas que importa? Que importa? Beijei a tua boca, Iokanaan, beijei a tua boca!...
Trecho da peça teatral Salomé (Itatiaia, 1989), do escritor e dramaturgo britânico Oscar Wilde (1854-1900). Veja mais aqui, aqui, aqui e aqui.

AGENDA
V Feira de Leitura: Territórios Interculturais da Leitura & muito mais na Agenda aqui.
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A arte do artista georgiano Ilia Popkhadze.
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Gratidão de ser em doar, Peter Sloterdijk, Josué de Castro, Lygia Fagundes Telles, Encarnación Sobriño, Luís da Câmara Cascudo, Guillaume Cornelis van Beverloo, Gleidistone Antunes da Silva, Nós & a Biodiversidade, Cláudio Santoro, Marija Mihajlovic, Criolo & Eleonora Falcone aqui.


NOÉMIA DE SOUSA, PAMELA DES BARRES, URSULA KARVEN, SETÍGONO & MARCONDES BATISTA

  Imagem: Acervo ArtLAM . Ao som dos álbuns Sempre Libera (Deutsche Grammophon , 2004), Violetta - Arias and Duets from Verdi's La Tra...