VAMOS APRUMAR A CONVERSA? A
MULHER DA SOMBRINHA – Naquela
segunda feira tomei conhecimento de que corria um boato de décadas e décadas de
que uma linda mulher dava sumiço nos trabalhadores da Usina Catende. Ela andava
sensualmente bela pelas ruas, mas ninguém via. Só se davam conta quando
desaparecia uma pessoa, entre os homens e funcionários da usina canavieira,
para logo atribuírem a ela o seu desaparecimento. Todos falavam, porém, jamais
tinham sequer visto. Só se sabia que apenas os escolhidos enxergavam a sua
sedução. Anos e anos se passaram e a cada safra, sempre às sextas-feiras,
desapareciam os homens. Fizeram vigilância na cidade para flagrar seus passos e
parar com esses desaparecimentos, todas investidas foram infrutíferas. No final
de semana, sempre havia o alvoroço de acontecimentos similares. E todos logo
diziam: - Foi a mulher da sombrinha. Certa feita, acertando uma apresentação
minha naquela cidade, pude detectar a presença de um rosto de mulher
inenarravelmente bonita que se destacava na multidão. Tinha certeza de que já
vira aquelas fascinantes faces outras vezes. Aliás, sempre que eu visitava a
localidade, me deparava com aquele ser que logo impactava no meu íntimo
trazendo-me sensações desconhecidas. Qualquer volta que eu desse por quaisquer
das vias dali, eu me pegava com a sua presença a me provocar. Até que no dia
marcado para minha apresentação no Leão XIII, do palco pude vê-la na plateia,
dando-me a sensação de presença familiar e que eu já me dava por obsessivo por
encontrá-la, ou pelo menos vê-la de qualquer forma. E ela estava ali, linda
como sempre. Mais uma vez ela estava ali e eu não sabia como fazer para tê-la
mais de perto ou ao meu alcance, isso eu já tentara diversas vezes sem êxito,
sempre que vinha prali. Era, inclusive, vigente que todo homem palmarense que
fosse macho de verdade, tinha de ter uma amante em Catende, senão sua homência
era posta em dúvida. Pois, aquela pacata cidade parecia mais reduto da macharia
palmarense, do que mesmo dos daquele lugar. Havia também o ditado de que naquela
cidade os habitantes eram majoritariamente femininos, na proporção de trinta
por um. Ou seja, trinta mulheres para um homem só. E isso devido ao
desaparecimento costumeiro das sextas dos marmanjos por mais de cinquenta anos
ou mais. Pois bem, quando entrei no camarim durante o intervalo em que a banda
mandava ver num momento instrumental, mal entrei e dei de cara com aquela bela
mulher que, de sopetão, encheu-me de vida e prazer. Então, agarrou-me num beijo
inesquecivelmente demorado. Senti seu hálito de flor, seu perfumado corpo
elegantemente assimétrico com curvas e saliências estonteantemente sedutoras, e
sua respiração ofegante de fatal e exuberante mulher insaciável. Remexeu-me as
entranhas, o sexo e todas as veias do meu corpo, dominando-me num beijo para lá
de anímico e sideral. Era como se estivesse voando pelo universo agarrado às
carnes suculentas de um ser sobrenatural. Foi demais, tão demais, de eu me
perder de tudo, quando, depois do beijo, ela fitou-me, passou as mãos ternas e
requerentes por meus cabelos, faces, pescoço, tórax, até descer até o meu sexo
rijo e acariciá-lo deliciosamente. Suspirou e me disse: - Mais tarde quero
vê-lo. Venha ao meu encontro. E saiu tal como entrou. Tive que passar um certo
tempo para me recompor, vez que a banda já repetia a introdução da música que
me convidava a retornar ao palco. Embalado por aquele momento, cantei até o
final e não consegui, depois de tudo, me recompor daquele encontro fortuito que
fincara forte sua marca por todo meu corpo e alma. Quando saí do palco para o
camarim, imaginei reencontrá-la. Nada, ninguém ali. Vasculhei todos os cantos
da sala, nenhum sinal dela. Atendi os que chegaram para autógrafos e
felicitações, e logo arribei com a banda para o jantar comemorativo. Mal
chegamos no restaurante, eu me encaminhava para o sanitário, quando uma mão
delicada me pegou pelo braço. Era ela. E disse: - Venha, estava lhe esperando.
Puxou-me e seguimos andando pelas ruas, até darmos no cemitério da cidade. Ela
virou-se agarrada ainda à minha mão, encarou-me com o olhar mais sensual que já
vira e me disse: - Venha, preciso da sua ajuda. Venha me salvar. E me levou
entre as catacumbas até atrás de uma capela onde havia uma gruta que se
iluminara de repente, até que me deparei com uma alcova cujo perfume inebriante
me dominava e ao chegar à sua cama, ela de forma materna e amante, me deitou e
fez-se tudo a maior escuridão. A partir daí o maior prazer do universo me
contemplou num gozo de orgasmo infindável. Viajei céus, infernos e paraísos,
até ver-me restituído à vida como se vivendo num sonho perene que nunca mais me
deixara acordar. Quando dei por mim, passei a ter a sensação de que ela vivia
em mim, dentro de mim, acariciando meu coração e fazendo o meu ser sentir-se
para sempre ao seu comando. Ela nunca mais saiu de dentro de mim, morando
comigo em meu próprio corpo para nunca mais sair nem atormentar a cidade com
desaparecimentos. Só as sextas pré-carnavalescas que ela foge um tantinho de
mim, para desfilar impune pelas ruas da cidade e com a madrugada já sábado, ela
volta pros meus sonhos para retomar os seus domínios. E isso até o dia em
que... depois eu conto e vamos aprumar a conversa aqui.
Imagem: Dessert, da artista plástica Suzy Smith.
Curtindo Sinfonia (Festa, 1958), do
compositor e maestro Cláudio Santoro
(1919-1989) & Orquestra Sinfônica Brasileira.
COMO SAIR DA MARGINALIDADE – O livro A mulher do pai: essa estranha posição dentro das novas famílias
(Summus, 2007), de Fernanda Carlos
Borges, aborda sobre a mulher do pai na família, parentesco, visita ou da
casa, madrasta, relação civilizada, emergência mítica, marginalidade, questão
de identidade, harmonia pela assimetria, bruxa não vira fada, entre outros
assuntos. Da obra destaco o trecho: Os
mitos (razões de ser) que orientam a trajetória humana na cultura estão
enraizados em ritos (modos de fazer). Os modos de fazer são organizados nas
formas do corpo, e estas são sustentadas na postura do corpo: nos músculos e no
esqueleto. Comecemos com uma situação concreta: quando lidamos com algum
objeto-força, primeiro nos posicionamos. Se vamos empurrar um guarda-roupa,
primeiro nos posicionamos com relação a ele. Essa posição determinará os
parâmetros do espaço para a ação que realizaremos. Depois, a posição
transforma-se em atitude, que é a preparação do corpo para a ação. Tudo isso é
organizado na postura do corpo. [...] As
atitudes do corpo são organizações psicomotoras que nos fazem lidar com
determinadas situações de certo modo característico. Precisamos preparar o
corpo para lidar com situações pessoais, com forças humanas e sociais. É assim
que identificamos o jeito de alguns personagens sociais mais característicos.
Nossas atitudes existenciais são modos como sustentamos as forças do mundo
significativamente por meio do nosso corpo e como manipulamos e direcionamentos
o que nos afeta. As atitudes existenciais – como forma do corpo – mais comuns
da cultura e da experiência humana podem ser entendidas como arquétipos que
orientam a experiência coletiva. Tudo acontece no corpo significativo e no
corpo significador. [...]. Veja mais aqui.
A
LENDA DE ALAMOA – No livro Sob o céu dos trópicos (José Olympio, 1038), de Olavo Dantas, encontro a narrativa A
lenda de Alamoa, descrita a seguir: Em
Fernando de Noronha, em tempos muito recuados, um lindo reino encantado. Havia
na ilha uma rainha loura, de beleza deslumbrante. Seu palácio magnifico,
situado no alto de uma colina verde, era um eterno deslumbramento. Todos os
dias, a rainha de cabelos da cor douradas das manhãs de sol passava pelos
esplendidos domínios, que seu poder cobria de palácios, e a primavera, de
flores. O seu reino era uma permanente festa de noivado. Nunca faltavam,
pendentes das ramadas, a policromia das inflorescências e a abundância das
bagas amadurecidas. A renda das espumas do mar bordava continuamente em torno
da ilha venturosa uma teia delicada, que se fazia e se desfazia. Mas as quilhas
das caravelas entraram de sulcar as águas do Atlântico, aquém da linha do
Equador. O Cruzeiro do Sul começava a ser avistado por estranha gente. O reino
encantado devia desaparecer. Os palácios foram convertidos em massas negras de
basalto. As galeras foram transformadas em rochedos. Mas a alma errante da
rainha loura ainda mora na ilha. Seu palácio soberbo foi metamorfoseado no
Pico. E hoje a sua sombra vaga pelos montes e praias da ilha. Por vezes, os
montados – cães selvagens que vivem nos altos montes, como o morro Francês, e o
monte do Espinhaço do Cavalo – soltam longos e sinistros uivos. É a Alamoa que
vai passando. Às sextas-feiras, a pedra do Pico se fende, e na chamada da Porta
do Pico aparece uma luz. A Alamoa vaga pelas redondezas. A luz atrai sempre as
mariposas e os viandantes. Quando um deles se aproxima da Porta do Pico, vê uma
mulher loura, nua, com o corpo mal encoberto pelos cabelos que descem quase ao
chão. Os habitantes de Fernando chamam-na Alamoa – corruptela de alemã. A
Alamoa parece ter sido feita para satisfazer a volúpia dos homens. O passante
incauto são resiste à fascinação daquela mulher sedutora que o chama com a voz
quente das grandes apaixonadas. O enamorado viandante transpõe a Porta do Pico,
crente de ter entrado num palácio, para fruir as delícias daquele corpo
fascinante. Ele, entretanto, é infeliz. A Alamoa se transforma de repente numa
caveira. Os seus lindos olhos, que tinham o brilho das estrelas, são dois buracos
horripilantes. E a pedra logo se fecha, novamente, atrás do louco apaixonado.
Ele desaparece para sempre. A angustia de seus últimos gritos ressoa ainda
durante muitos dias pelos flancos do Pico, escapando-se das fendas profundas do
monte e misturando-se ao uivo dos montados e ao silvo dos ventos do sueste. Veja
mais aqui.
QUANDO
ME ABANDONEI EM TI & OUTROS POEMAS – No livro Selected Poems, do poeta
ucraniano-francês Paul Celan
(1920-1970), destaco inicialmente o poema Quando me abandonei em ti: eras pensamento, / algo / murmura entre nós dois: / do mundo a primeira / das últimas / asas, / em mim cresce / a pele sobre / tempestuosa / boca, tu não chegas até ti. Também o poema Como te
extingues em mim: ainda no último / e gasto / nó de ar / estás lá com uma / faísca / de vida. Ainda o
poema Errático: As noites se fixam / sob teu olho.
As sílabas re- / colhidas pelos lábios — belo, / silencioso círculo — / ajudam
a estrela rastejante / em seu centro. A pedra, / um dia perto da fronte,
abre-se aqui: / ante todos os / espalhados / sóis, alma, / estavas, no éter. O poema Cristal: Não procura nos meus lábios tua boca, / não
diante da porta o forasteiro, / não no olho a lágrima. / Sete noites acima
caminha o vermelho ao vermelho, / sete corações abaixo bate a mão à porta, /
sete rosas mais tarde rumoreja a fonte. Por fim a Canção de uma dama na
sombra: Quando vem a taciturna e poda as
tulipas: / Quem sai ganhando? / Quem perde? / Quem aparece na janela? / Quem
diz primeiro o nome dela? / É alguém que carrega meus cabelos. / Carrega-os como quem carrega mortos
nos braços. / Carrega-os como o céu carregou meus cabelos no ano em / que amei.
/ carrega-os assim por vaidade. / E ganha. / E não perde. / E não aparece na
janela. / E não diz o nome dela. / É alguém que tem meus olhos. / Tem-nos desde
quando portas se fecham. / Carrega-os no dedo, como anéis. / Carrega-os como
cacos de desejo e safira: / era já meu irmão no outono; / conta já os
dias e noites. / E ganha. / E não perde. / E não aparece na janela. / E diz por
último o nome dela. / É alguém que tem o que eu disse. / Carrega-o
debaixo do braço como um embrulho. / Carrega-o como o relógio a sua pior hora.
/ Carrega-o de limiar a limiar, não o joga fora. / E não ganha. / E perde. / E
aparece na janela. / E diz primeiro o nome dela. / E é podado com as tulipas. Veja mais aqui.
PIGMALEOA
& FRIZILEIA – A trajetória de mais quarenta anos de
carreira da atriz de teatro, cinema e televisão Elizabeth Savalla iniciou quando indicada pela atriz Lourdes de
Moraes para a Escola de Artes Dramáticas de São Paulo, quando estudava no Liceu
Eduardo Prado. Tudo começa quando ela assiste no teatro a peça A Moreninha,
baseada no romance de Joaquim Manuel de Macedo, quando tinha apenas treze anos
e se apaixonou pela arte dramática desde então. Profissionalmente iniciou a
carreira com Pigmaleão (1975), seguindo-se Barreado (1981), Lua Nua (1987/90),
Ações ordinárias (1991/93), Mimi, uma adorável doidivanas (1993/95), É...
(1996=2003), e Frizileia – uma esposa à beira de um ataque de nervos
(2004/2008). No cinema, ela participou filme Pra frente Brasil (1982) e dedicou
grande parte do seu trabalho para a televisão. Veja mais aqui.
MESSALINA
–
O filme Messalina (1951) dirigido pelo cineasta italiano Carmine Gallone (1885-1973), traz a história
de uma mulher sedenta por poder e prazer, que possuía diversos amantes, atuando
de forma eficiente com seus interesses e caprichos. No
livro Transtornos de preferência sexual
(Del Rey, 1996), do médico psiquiatra e professor Renato Posteli, encontro que messalinismo ou ninfomania é a
parafilia mais agressiva da mulher, lembrando a imperatriz romana Messalina,
que foi a quarta mulher de Claudio I, famosa por seus excessos. Por
transladação do tempo, do ponto de vista semântico ou semasiológico e histórico,
Messalina passou a significar mulher extremamente lasciva, libertina,
dissoluta, devassa. Trata-se da mulher que é preocupada com ideias eróticas a
todo momento e que sente permanentemente desejo sexual e a cópula, por mais
repetida que seja, não a acalma. Em virtude do exemplo dessa imperatriz romana,
que copulava dezenas de vezes seguidas, que saía à tarde para correr as
tabernas à procura de homens rudes e atléticos e que regressava ao palácio de
madrugada, cansada, mas não saciada. Por isso, houve então o aparecimento de
casas de prostituição de homens em Roma, nas quais os homens robustos e viris
eram mantidos sob vigilância para atenderem às damas romanas. Cada homem era
propriedade de determinada dama e só a ela podia atender, embora pudesse ela
manter vários homens. Quando a dama romana retirava-se após o ato sexual,
mandava selar aquele homem, colocando em sua cintura e pênis uma cinta com
cadeado para impossibilitá-lo de manter relações com outra mulher. A ninfomania
era tão difundida na antiga Roma que havia festas e reuniões de mulheres
ninfomaníacas, as quais faziam entre si concursos sobre quem seria capaz de
despertar nos homens mais sensações voluptuosas. Escritores daquela época
deixaram descrições vivas dessas orgias, que se realizavam nos templos ou nos
palácios dos nobres. A ninfomania é uma hiperestesia sexual acentuadíssima, é
libido insatiabilis e seus sinônimos são andromania, histeromania, metromania,
uteromania, furor uterino. Em um relato, certa ninfomaníaca explicou: Não sou prostituta,
só sou ninfomaníaca. As prostitutas não sentem prazer; eu, cada vez que faço
amor, tento sentir prazer. O destaque do filme é para a belíssima e sempre
charmosa atriz mexicana Maria Félix
(1914-2002), a famosa La Doña, Veja mais aqui e aqui.
IMAGEM DO DIA
A arte do pintor francês Pierre-Paul Prud'hon (1758-1823)
DEDICATÓRIA
A edição de hoje é dedicada à editora e poetamiga
Carmen Silvia Presotto & Vidráguas. Veja aqui e aqui.