O QUASE MEGANHA - Zetaful era
curioso e desconfiado de nascença. Tudo queria saber e meter o bedelho da
dívida no meio do troço todo. De tanto intrometer seu nariz nas coisas foi crescendo
com seu olhar aquilino, nariz graúdo e adunco, um riso sardônico pela beirada
dos beiços, um ar diabólico. Logo no jardim da infância ganhou o apelido salutar
de baba-ovo. Daí pro primário passou pra dedo-duro lambecu, leva&traz da
professora entregando as cabeludas traquinagens. No ginasial era o cheleléu do
censor: o primeiro a se perfilar com os pulmões cheios, mão direita espalmada
ao peito estufado esquerdo, aos berros com os versos do Hino Nacional. Era comum
vê-lo batendo os calcanhares na pisada e às continências para meganhas e
autoridades, pois sonhada um dia usar farda e quepe. No colegial esmerou-se e
ganhou o apelido de araque: todo dia delações às ouças do bispo que era o
diretor, sobre a conduta pecaminosa das meninas saidinhas, do comunismo dos
rebeldes, dos nefastos mal-encarados, fuxicos e suspeitas. Pouco tempo depois
era tratado aos apupos por chumbeta. Aos 17 anos alistou-se todo envaidecido,
só que crescera muito e virou um varapau famélico, de corcova e ar sinistro: Pronde
vai esse esquelético? Foi dispensado. Isso causou-lhe o primeiro desapontamento
na vida. O sonho se esfacelara de deixa-lo abatumado pelos cantos, piongo de
fazer dó. Um professor de civismo encheu-lhe das atenções, orientando-o ao
concurso da polícia militar. Aí pegou gás, inscreveu-se, estudou com afinco, contava
nos dedos os dias dos meses da prova, caprichou na entrada do portão e aprumou
os chutes nas questões: Tô feito! Ansioso pelo resultado: não passou. Voltou-se
pro da polícia civil, novo malogro. Ah, a guarda municipal, essa é canja! E danou-se
no processo seletivo, reprovado. Eita, lasqueira! E agora? Concluído o colegial
era a hora da faculdade: começou a fazer ponto na porta da delegacia. Não demorou
muito lá ia ele todo furtivo catando intrigas e litígios, facilitando pros
agentes. Fez amizade com o escrivão que lhe dava ordens de faz-tudo: conserta
ali, varre aqui, leva o recado pra lá, vai comprar um brebote acolá, e assim se
deu aos pedidos, carregamentos, ajeitados de bregueços, despachos de crianças
pras escolas, quebra-galho das esposas, inspecionava os presos, pegava encomendas
acertadas, trouxas de roupas pra lavanderia, pagava as caranhas, engraxava botas,
levava botijão de gás na cacunda, encerava o piso, carregava feira, portava as
valises alheias, conta pro juiz, acordo pro promotor, intimação de advogado,
dava banho em bêbado, dava pisa em atrevido mais fraco, atirava no pé de safado
e dava bronca: Foi o delegado que mandou! E comeu merda, rasgou dinheiro e foi
parar no hospício, se passando por general de 10 estrelas, enrolado num golpe
de estado pra deixar a cidade independente do país e ele queria mandar e
desmandar como ditador. Ainda hoje eu vi o biruta marchando meio dia em ponto
rua acima e abaixo, coitado! Veja mais aqui, aqui & aqui.
DITOS &
DESDITOS - A violência, em todas as suas formas, é parte integrante do
funcionamento cotidiano da sociedade capitalista – pois é somente por meio de
uma mistura de coerção bruta e consentimento construído que o sistema pode se
sustentar nos melhores momentos. Uma forma de violência não pode ser
interrompida sem interromper as outras. Pensamento da filósofa estadunidense Nancy Fraser, que na sua obra Fortunes of Feminism:
From State-Managed Capitalism to Neoliberal Crisis (Verso, 2013), expressou:
[…] à medida que o neoliberalismo entrou em sua crise atual, o desejo de
reinventar o radicalismo feminista pode estar revivendo. Em um Ato Três que
ainda está se desenrolando, poderíamos ver um feminismo revigorado se juntar a
outras forças emancipatórias visando submeter mercados descontrolados ao
controle democrático. Nesse caso, o movimento recuperaria seu espírito
insurrecional, ao mesmo tempo em que aprofundava seus insights característicos:
sua crítica estrutural do androcentrismo do capitalismo, sua análise sistêmica
da dominação masculina e suas revisões sensíveis ao gênero da democracia e da
justiça. [...] Aqui, consequentemente, encontramos dois conjuntos principais de
instituições que despolitizam as necessidades sociais: primeiro, instituições
domésticas, especialmente a forma doméstica normativa, a saber, a família
nuclear moderna, chefiada por homens; e, segundo, instituições do sistema
capitalista econômico-oficial, especialmente locais de trabalho remunerados,
mercados, mecanismos de crédito e empresas e corporações “privadas”. As
instituições domésticas despolitizam certas questões personalizando-as e/ou
familiarizando-as; elas as transformam em questões privadas-domésticas ou
pessoais-familiares em contraposição a questões públicas e políticas. As
instituições do sistema capitalista econômico-oficial despolitizam certas
questões economizando-as; as questões em questão aqui são transformadas em
imperativos de mercado impessoais ou como prerrogativas de propriedade
“privada” ou como problemas técnicos para gerentes e planejadores, tudo em
contraposição a questões políticas. [...] Enquanto o modelo Universal Breadwinner penaliza as mulheres por não serem
como os homens, o modelo Caregiver Parity as relega a uma “trilha de mamãe”
inferior. Concluo, portanto, que as feministas devem desenvolver um terceiro
modelo — “Universal Caregiver” — que induziria os homens a se tornarem mais
como as mulheres são agora: pessoas que combinam emprego com responsabilidades
de cuidado primário. Tratando os padrões de vida atuais das mulheres como a
norma, esse modelo teria como objetivo superar a separação entre o ganha-pão e
o trabalho de cuidado. Evitando tanto o trabalhismo do Universal Breadwinner
quanto o privatismo doméstico da Caregiver Parity, ele visa fornecer justiça de
gênero e segurança para todos. [...]. Sobre o feminismo
ela ainda expressa: Como eu vejo, o feminismo dominante do nosso tempo
adotou uma abordagem que não consegue alcançar justiça nem para as mulheres,
muito menos para qualquer outra pessoa. O problema é que esse feminismo está
focado em encorajar mulheres educadas de classe média a "se
inclinarem" e "quebrarem o teto de vidro" — em outras palavras,
a subirem na escada corporativa. Por definição, então, suas beneficiárias só
podem ser mulheres da classe profissional-gerencial. E na ausência de mudanças
estruturais na sociedade capitalista, essas mulheres só podem se beneficiar ao
se apoiarem em outras — ao descarregarem seu próprio trabalho de cuidado e
trabalho doméstico em trabalhadoras precárias e de baixa renda, tipicamente
mulheres racializadas e/ou imigrantes. Então isso não é, e não pode ser, um
feminismo para todas as mulheres! Mas isso não é tudo. O feminismo convencional
adotou uma visão tênue e centrada no mercado de igualdade, que se encaixa
perfeitamente com a visão corporativa neoliberal predominante. Então, ele tende
a se alinhar com uma forma especialmente predatória de capitalismo do tipo
"o vencedor leva tudo", que está engordando investidores ao
canibalizar os padrões de vida de todos os outros. Pior ainda, esse feminismo
está fornecendo um álibi para essas predações. Cada vez mais, é o pensamento
feminista liberal que fornece o carisma, a aura de emancipação, na qual o
neoliberalismo se baseia para legitimar sua vasta redistribuição ascendente de
riqueza. Já seu no livro Scales of
Justice: Reimagining Political Space in a Globalizing (World/Columbia
University Press, 2009), ela expressa: [...] A terceira dimensão da justiça é política. É claro que distribuição e
reconhecimento também são políticos no sentido de que ambos sofrem rejeição e o
peso do poder; e normalmente são vistas como exigindo arbitragem estatal. Mas
entendo a política num sentido mais específico e constitutivo, que se refere à
natureza da jurisdição do Estado e às regras de decisão com as quais ele
estrutura o confronto. O político, nesse sentido, fornece o palco onde as lutas
por distribuição e reconhecimento se desenvolvem. Ao estabelecer os critérios
de filiação social e, assim, determinar quem é considerado membro, a dimensão
política da justiça especifica o escopo das outras duas dimensões: ela nos diz
quem está incluído e quem está excluído do círculo daqueles que têm direito à
distribuição justa e ao reconhecimento mútuo. [...]. Veja mais aqui e aqui.
ALGUÉM FALOU: Um holocausto
acontece entre nós: amanhã ao amanhecer, outra planta ou ave antiga estará
extinta; novecentos milhões de pessoas passarão fome; rios represados correm
azedos e solos ressecados se rompem; continentes fervilham de refugiados
ambientais; vírus artificiais são liberados; silenciosamente, um buraco na camada
de ozônio e radiação eletromagnética eliminam
novas vítimas de câncer; vazamentos de óleo sufocam a
vida marinha e o derretimento dos mares ameaça comunidades
insulares; partes de corpos e DNA são cortados e comercializados; pessoas da
cidade respiram ar sulfuroso, sua comida misturada com pesticidas de guerra; e
mães dão à luz bebês gelatinosos sem membros da precipitação nuclear que
circunda o globo. Você também fechará os olhos para esses crimes, o modelo
linear de "progresso" exportado por um Ocidente esclarecido?... Pensamento
da socióloga australiana Ariel
Salleh, que no seu livro Ecofeminism as
Politics: nature, Marx and the postmodern (Zed Books, 1997), ela expressa
que: […] A palavra "ecofeminismo" pode ser nova,
mas o pulso por trás dela sempre impulsionou os esforços das mulheres para
salvar seu sustento e tornar suas comunidades seguras. Das moradoras da
floresta Chipko do norte da Índia, há cerca de 300 anos, às mães da mineração
de carvão dos Apalaches agora, a luta para criar sociedades que afirmem a vida
continua. Ela se intensifica hoje, à medida que a globalização corporativa
expande e contrai, não deixando pedra sobre pedra, nenhum corpo sem uso. A
parceria de Maria Mies e Vandana Shiva simboliza esse comum terreno entre as
mulheres; fala de uma energia popular que é encontrada em um movimento em todos
os continentes. As feministas ecológicas são lutadoras de rua e filósofas. [...].


