domingo, janeiro 30, 2022

V. ALEIXANDRE, AUGUSTINA BESSA-LUÍS, ARMANDO LÔBO & JULIA BONDAR

 

 

TRÍPTICO DQP – Veneno Bento... – Inspirado ao som do recém-lançado álbum homônimo (Projeto Mucambo/CO.MO, 2022), de Armando Lôbo. - Nenhuma pegada e a rodagem sou eu na pisada de quem se perdeu pelas paragens do Catimbau dum sonho de Samico e não sei onde mais as curvas dos ventos. É só a poeira no vestido da mulher com seu manto vermelho, e se eu não sei quem é, segue ao meu lado e meus passos por onde houver caminho. Não sei se a Fera do Sol na seca da minha cabeça de voo matagreste pro litoral, e é para lá talvez o galope porque foi um sonho de Luiza na miragem de Marcela que dançava branca com Isaac no que restou de açude ali e acolá. Ouço o poeta aboiar lá longe para animar o gibão do fantasma vaqueiro que comigo perseguia o regaço no chão batido, como se o lengotengo fosse Romero altivo no que foi Raimundo de Lua&Barbalho e o lamento das horas, porque apagaram as lendas que as nuvens choraram noutro lugar. É só o abismo no dedilhado das violas e se disparo veloz é a voz de Surama que carpe incelenças porque vou subir até satori, onde Sue solfeja com se fosse um coral de fêmeas. Levo aboiado no peito e a disparada segura para driblar tocaias & hybris, morena ou cabocla, a salvação na alquimia da zabumba. Preciso já a garganta seca, se não há veneno bento não há vida, fica tudo incolor até que o diabo apareça no fundo da garrafa com episódios da vida de Block e sirva de unguento para salvar a noite de todos os dias e as coisas tais como são. O gole de nenhum castigo ou recompensa, à custa do que sou, sem engano ou tédio, ouvindo Luís Jardim: O que há de bom em nós é herança da criança que fomos. E as cores são muitas na festa do amanhecer.

 


Todo ápice cambaleia... – Inspirado no livro homônimo e inédito de Vital Corrêa de Araújo. - A beira do abismo é redonda e a poesia em queda livre no que não sabia de Heisenberg: O Universo não é apenas mais estranho do que pensamos, é mais estranho do que podemos pensar. A eternidade é inútil, o infinito é pequeno, quem não desmoronou, quem não soterrado pelas circunstâncias imprevistas. Quando eu vi a equação de Torricelli era a minha maçã de Newton e eu só queria o pomo da imortalidade de Idun, ledo engano. Nem adiantou ter feito o décimo primeiro trabalho de Hércules, as maçãs douradas do Jardim das Hespérides foram escondidas por Afrodite porque sou Sísifo e fadado à queda de Camus. Não sabia que a banana era a musa paradisíaca de Lineu, tudo porque desci ao inferno de Rimbaud como se fosse Galileu no alto da Torre de Pisa. Quanto equívoco e era eu a árvore envenenada de Blake, sonhando com as da Ilha de Avalon onde foi forjada Excalibur. Para quem perdido, só restava a estrofe final da Felicidade do poeta Nobel italiano V. Aleixandre (1898-1984): Canto o céu feliz, o azul que se desponta, / canto a felicidade de amar doces criaturas, / De amar o que nasce sobre as pedras limpas, / agua, flor, folha, sede, lâmina, rio ou vento, / amorosa presença de um dia que sei existe. Precisava desse dia, acaso existisse e talvez o que não sabia, porque me perdi por quantos parágrafos e tantos se opuseram ao que fiz ou deixei de fazer, feitos que nem lembro e imputam o que nada elucida, ah, chutei as evidências centrípetas e os segredos suspensos nos livros, aliás, pus tudo de lado para depois, era só do que me servia, a esperança nos tendões do amanhã.

 


A salvação de Pítia... - Imagem: arte da artista visual ucraniana Julia Bondar. - O que fiz ou deixei de fazer? Mandei meu ego dar uma volta no quarteirão e fui trocar de alma. Sim. A primeira que encontrei foi a dela: a camponesa consagrada pitonisa de Apolo na dança das chamas e eu mais que dionisíaco como se buscasse a árvore Bo entre o nascimento e a morte. Era uma jovem delgada que aspirava um fumo aromático das folhas de louro e da farinha de cevada queimada num altar jamais visto e me fez passar pelo oikis até o adyton que ficava no subsolo, para se agachar na frente de um túmulo no que se podia saber da fonte de Cassotis. Depois do ritual explicou-me que tudo foi feito para oficiar como se eu fosse um deus insular. Logo se entusiasmou só porque fui sorteado pela promancia e consagrou a mim a sua virgindade sob o império de Piton. Era bom para quem errou demais da conta e  me serviu purificada depois dos ritos preparatórios na fonte de Castália que brotou ao pé das Fedríades. Nem deu para piscar o olho e ela logo se arranchou nua com seu sexo no meu a dançar com tremores e convulsões agitadas, enquanto no êxtase dos lábios frases desconexas aravam meu coração e aliviavam o jugo da fatalidade, e temperavam de piedade o frio rigor das velhas leis e ensinavam a não desesperar. Depois do gozo extraordinário, ela me deu o talismã de ônfalo – a pedra sagrada encerrada em uma rede fita de lã branca, o umbigo do mundo. Fiquei maravilhado e lá para as tantas, já saciada de mim, disse-me Augustina Bessa-Luís: Só se pode sentir a evidência das coisas até um certo ponto: além disso, ou nos rebaixamos ou nos aproximamos do sentimento superior que nos liberta. De fato, o verdadeiro estado de liberdade é o de ultrapassar a imaginação. Era a cantiga da nova hora e o universo dentro de mim. E lá fui eu além do tempespaço sem ter que me valer da angústia do amanhã. Até mais ver.

 

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