TRÍPTICO DQP – Diário da memória... - Ao som dos álbuns Open Source (2020), Fullblast
(2009) e No Gravity (2005), do
compositor e multi-instrumentista Kiko Loureiro. – Um dia noutro como se o futuro fosse o presente que insistia no
passado. Não mais ontem, chega! Agora arrombava inclemente com o que os alienômanos insistem em manter de suas
platitudes, mimetizam o que ouso, emulam o que detesto. Se o tom distópico é
mais que sinfonia inaudível, meus olhos sabem o que não viram. De resto um voo
sem águia por companhia, pés nas folhas e o aroma da infância era eu menino da
beira do rio, rompendo o que restava de ínvia mata feito aquela pequenina
Maelys que se deparou com a nudez pálida de Brune Renault, dada pelo Cadavre
exquis (2012) da Léa Mysius. Ali fiquei a vê-la desacordada entre juncos, como
se fosse esperança de quem se realiza no destaque pros olhos do paraíso. Cuidei
dela por horas, na verdade fui mais buliçoso que providente, até arrastá-la ao
abrigo inventado da minha solidão de nunca mais voltar para casa. Estendida na
cama improvisada cultuei como se morta não estivesse. Sim, aquela pele era
tudo dos seus despojos acaso eu pudesse renascê-la do meu íntimo de sonhos
pouco prováveis. Foram dois dias até mexer as pálpebras e me achar mais
desamparado, como se espantasse com minha companhia jamais vista. Aos poucos
recobrou os sentidos e revitalizada disse-me buscar os faróis da alma de RuPaul que nunca soubera e que vicejou porque
podia ser Béatrice Lourmel, a tenente da Transferts
(2017). Viu-me os olhos perdidos e me disse John Green reticente: Meus
pensamentos são estrelas que eu não consigo arrumar em constelações... A
verdade resiste à simplicidade. O que fazer diante daquilo era o que mais
me chamava atenção e adormeci entre seus braços e seios, não previa reencontro
nem quando.
A viúva inominada... - Imagem: arte da pintora polonesa Monika Luniak. - Não, era outra e
sequer sabia a razão pela qual revia depois de décadas insones e anos perdidos,
aquela viúva cujo nome não poderia
ser dito nem lembrado. Estava coberta por um véu que recaía da cabeça ao peito,
deixando à mostra apenas os lábios aliciadores e parte da face desmaiada. Enviou uma mensagem distante por um pombo-correio porque se aproximava o Carnaval do Arlequim de Miró e eu era o seu convidado. Nem bem o abraço ardente, alisou
minhas faces, deu-me as costas e saiu com um aviso de espera. Logo revia Bagoas a me saudar com a notícia da blitzkrieg no Império Bizantino: Ah, apronte-se que vamos pro Cabaré Voltaire! Hem? Era tudo muito
desconexo, aliás, como a vida sempre foi em mim: um quarto escuro. A lembrança
era a voz dela ao meu ouvido. Vi-a chegar do inopinado: o Violino
d’Ingres: ela como se fosse a minha Kiki
do eu Ray. Levou-me nua a passear pelo
adro do grande pátio das Murtas, na arquitetura de sonhos do palácio Jenna
el-Arif que nunca vira antes, e percorremos o estreito onde jorram jatos de
água até atravessar a sala da Bênção, a das Duas Irmãs, para chegar na dos
Segredos com suas alcovas e banheiras de mármore. Levou-me até o gineceu onde
escravas aguardavam-na para o hammam. Dispensou todas, exceto o eunuco que a encaminhou à terma
privada. Sentou-se sobre um banco de mármore para sauna e o serviçal untou seu
corpo com ocra esfregada para depois enxaguá-la com massagem. Encerrando o
ritual enrolou-a numa toalha de esponja cor de romã e a fez repousar. Tudo
assistia. O emasculado piscou um olho: Aprenda. Deu-lhe hidromel e depois poliu
seus dentes com pedra-pome, com a oferta de uma mistura de nácar, casca de ovos
e carvão moído. Mascava bételes e viu-me ali desconfortável. Sorriu-me enquanto
cochichava algo ao ouvido do escravo e saiu com um adeusinho na ponta dos
dedos. Ele atravessou comigo corredores que deram num amplo salão. Lá estavam
várias pessoas estranhas. O poeta Abu Nuwas que disse cheio de graça: Menos de cinco é a solidão;
mais de cinco, é o bazar! Todos riram. E fui convocado à festança enquanto o
semíviro me confidenciava ser ele o seu amante, advertindo que seria jamais de bom
tom servir juntar duas iguarias que não combinassem, demonstrando ser um
excelente conhecedor tanto da exegese corânica como da arte culinária,
lançando-se em uma longa e brilhante dissertação gastronômica. Apenas foi
interrompido pela muito simpática poeta Zamab
que falava doutro, o Al-Shereshi: A morte apodera-se de todos. O
luto é mais triste que a brancura dos cabelos. Viu-me e sorriu. Depois ela recitou
poemas sobre sexo e vinho, e contou de uma sessão do hammam que foi a mais dura prova de sua vida:
Se eu soubesse antes o que me iriam fazer passar, eu teria sem dúvida
renunciado ao casamento. E contou sua desdita. Todos riram e ela recitou O colar da pomba e a triste sina de Ibn Hazm. Houve quem mencionasse sobre a
caminhada aviltante, e ouviu por resposta que só se salva
da Lei de Talião nos Lupanares de
Andaluzia. Gargalhadas de todos quando apareceu alguém que soou como interdito.
Apenas sei que era abstêmio e ofereceram-lhe uma bebida com a indicação no rótulo:
Suco de frutas, Lojas de Ishaq al-Wasoto. Serviu-se e sentou-se com empolgação,
agarrando a garrafa e virando copos, um atrás do outro, alegando sede dumas
três garrafas. Assim dispuseram e dali a pouco o estranho desmoronou
completamente embriagado. Quem? Silêncio total. Arrastaram-no não sei para
onde. Fiquei só, avalie.
Lição de sobrevivente – Imagem: gravura do artista visual
sul-africano William
Kentridge. – Que dia era, se sexta ou sábado, só sei que revi aquela
sonhada com seus cabelos acobreados e unhas brilhantes, como se chegasse na
liteira para me surpreender alta madrugada, tal Giselle Beiguelman a me falar do egoscópio
e sua poétrica, como das retóricas visuais e biopolíticas do mundo
covídico. Não tinha eu mais que o horror de saber qual seria o meu verso se a formiga sequer precisava do viés
moral nem nunca distinguiu o carvão do diamante, nem decifrou o círculo
de Giotto, ou do Ensō, muito
menos da autobiografia dos versos de Michael Palmer: Às vezes temos que bater no
fundo antes de descobrir a vida. Nunca compare o seu interior com outra pessoa
do lado de fora. A presença dela era magnífica em todos os sentidos, meus órgãos
festejavam e nem cabia em mim mesmo, já dela e para ela. Foi preciso que uma
semana ou mais dias, não sei, para ter a dimensão da posse dela sobre mim. Se ouvisse
Douglas Adams saberia: Não acredite em nada que você lê na rede.
Exceto isto. Bem, incluindo isso, suponho. Resumindo: É um fato bem conhecido
que todos que querem governar as outras pessoas são, por isso mesmo, os menos
indicados para isso. E não discernia de nada, se tivesse saída ou
reconhecesse um novo renascimento, nada impossível. Só que ela chegou como se fosse Geninha da Rosa Borges: nascedouro e permanência. Era
nela que eu revivia o que mais desejava, não fosse a ausência quase suicida.
Onde? Deu-me uns versos de Mauricio Rosencof: se
este fosse meu último / poema, / insubmisso e triste, / roído mas inteiro, / uma
única palavra escreveria: / companheiro. E tal como ele diria: Eu
sou os que foram. E se nos perdemos mais de uma vez, a festa não era só o
reencontro: era dela a alma. Foi aí que enfrentei meus monstros e o abismo
outra vez na ampulheta do peito vazio, legado de xexéu escasso porque a flurona
roubou a eudaimonia e o diploma – o pergaminho da superstição popular de Lima Barreto, que deu para mim o mesmo
triste fim de Policarpo: Cada louco traz em si o seu mundo e para
ele não há mais semelhantes: o que foi antes da loucura é outro muito outro do
que ele vem a ser após. E essa mudança, não começa, não se sente quando começa
e quase nunca acaba. Cada um agora está mais vivo que antes, apesar de tudo. Nada
mais. Vidaviva, vivavida. Até mais ver.
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