Ao som do Concerto Grosso (2014) pelo Quarteto Radamés Gnattali e Fantasia para violoncelo (2022) interpretada pela violoncelista Eleonora Rodrigues, ambas do premiado compositor J. Orlando Alves (José Orlando Alves), atualmente professor da Universidade Federal da Paraíba (UFPb) e coordenador do Laboratório de Composição Musical (COMPOMUS-UFPb).
TRÍPTICO
DQP: - Invenção do visinvisível - O poeta olhou e viu: o cio do amanhecer. Durante o espetáculo ouviu o vento varrendo as ondas, poeiras e
chão para aprumar pedras e caminhos; mais escutou do diálogo entre as gotas
d’água se avolumando na correnteza dos rios e oceanos, e muito mais atentou com
o desabrochar das sementes, a expansão dos tentáculos das raízes, a ramificação
dos caules, o florescimento dos galhos, a pujança do fruto, mais as vozes e
lamentos humanos que o fez sentir as entranhas da vida em cadeia e a sua
reverberação. O poeta assistiu atento ao caos e distinguia o que dissera Parveen Shakir: Uma gota de chuva ficou
presa em meus cílios e afundou no olho... Faça o que quiser, mas tenha isso em
mente: o sol também foi acusado de ter beijado e abraçado a noite... Era o apocalipse lírico a sua
estesia. E sabia que a vida real era essa, não a que seus olhos flagravam pelas
ruas e cotidianos, cruzando seres hipnotizados como se estivessem vendados
dentro de milenar mitologia. Em si comungava a invenção do visinvisível...
Retratos de identificação... – Inspirado no documentário
homônimo de Anita Leandro (2014). Imagem:
"Não esquecer,
nem perdoar", mural em homenagem às Mães da Praça de Mayo, em Buenos
Aires – Vidoutra essa, muito diferente da que presenciava pelos
amanheceres e minguantes crepusculares. O que sei, onde moro qualquer lugar
igual mesmice e falsas impressões. Na minha solidão falava alto Annie Dillard: Eu desço até a água para refrescar meus
olhos. Mas em todos os lugares que olho, vejo fogo; o que não é pederneira é
isca, e o mundo inteiro faíscas e chamas... E expôs entre as mãos: Este é o verdadeiro crânio perdido de Schiller, os demais são todos
apócrifos. E mais mostrou das cartas de mortos, revelavam o que temia: os tribais sorielisarb. Ora, porque éramos e os nossos, tão
antagônicos quanto assemelhados com seus anseios de bunkers fortificados
protegendo-se de si e de nós mesmos. Fez-se então Filha da dor no Efeito Genovese, agora a sua foto com uma quina sobre
o peito na hora da pose, o clique, e a minha face em todas as fotos de outros
desaparecidos mundafora. Uma lágrima rolou sobre a face dela. E disse que não
era hora de chorar. Sei que todos ignoram, os que se dizem vizinhos são tão
estranhos quanto na horagá, os que trabalham e apenas isso, ou seja lá o que
for, alheios a tudo. Era como se ouvisse Ivo Andrić: Entre o medo de que algo aconteça e a esperança de que ainda não
aconteça, há muito mais espaço do que se pensa. Nesse espaço estreito,
duro, vazio e escuro, muitos de nós passamos nossas vidas... E dizia que era preciso tomar pé
dos batentes falsos, das emboscadas por muitos e quantos descaminhos. Em cada abraço um ato de amor entendido como
loucura ou delito. Para quem vive havia de se cuidar, não será nada fácil
passar por onde quer que seja. O que sei é que ela não deixou nenhuma carta,
disse adeus e se matou sob um trem que passava numa estação de Berlim.
Cantarolava
Mariazé... – Imagem: Quietude (2017), da
artista plástica Marcia Gebara, integrante do Grupo Ateliê Virtual 2022. – Sim, cantarolava efusiva Mariazé a Sabiá de Zé Dantas e Gonzagão: A
todo mundo eu dou psiu \ Perguntando por meu bem \ E tendo o coração vazio \ Vivo
assim a dar psiu \ Sabiá, vem cá também \ Tu, que andas pelo mundo, sabiá \ Tu,
que tanto já voou \ Tu, que fala aos passarinhos \ Alivia a minha dor \ Tem
pena d'eu \ Diz, por favor\ Tu, que tanto andas no mundo\ Onde anda o meu amor,
sabiá? E era pra lá e pra cá, fstiva, radiante. Acompanhava seus passos atentamente,
sua vozinha, seus afazeres, sua disfarçada consternação. Por ser ruiva era apelidada pelos parentes de Boadicea; pros estranhos era reiterada Boadica. Não, não era, tinha
certeza. Fui tirar isso a limpo e indaguei a razão pela qual tratavam-na pela
tal. Respondeu-me tal Zelda Fitzgerald: Olhe mais perto e
você verá algo extraordinário, mistificando algo real e verdadeiro. Nunca fomos
o que parecíamos. Estranhei e só muito depois ela achegou-se reveladora: tornou-se o que a chamam ao tomar as dores de uma sua amiga que foi
esquartejada pelo marido ciumento. Ninguém sabia a razão pela qual o crime
ocorrera. E a notícia não demorou: explodiram também a cabeça dela, irreconhecível.
Durante o enterro ouvi alguém soltar sigilo entre dentes com desdém, de que ela
presenciara um crime e denunciou o assassino que foi preso; mas, pouco tempo
depois, conseguiu fugir e foi à forra: tiros esfacelaram seu belo semblante.
Dias depois um irmão dela também foi alvejado por balas até agora anônimas e
está sepultado no silêncio de décadas. Comigo a dor de cada qual, dores pelos
descaminhos. Mas o mundo pode ser diferente e melhor. Viver pode ser bom,
necessariamente. Enquanto isso, até mais ver.
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