Ao som
dos álbuns Vinha da Ida (2017) e Apneia (2022), da instrumentista,
cantautora, circense e bacharel em sociologia, Livia Mattos.
TRÍPTICO
DQP: Das lâminas e labaredas de Érebo... - O poeta sentiu a lâmina do tempo no corte profundo: a cicatriz guardava
o sangue perdido e o fez singrar qual Odisseu pela névoa funesta de pesadas
nuvens. Sabia desde Homero: A noite é terrível
sobre os mortais infelizes. Não era o seu
caso e nem se intimidou: enfrentou as labaredas de Érebo que emergia do caos e do
esquecimento, saído das profundezas do Aqueronte com o coro das moiras e horas,
fugindo do cárcere no Tártaro. Visível o seu ressentimento pela emboscada
urdida por Nix, havia se libertado sozinho e era a primeira vez depois da
Titanomaquia. Com ele as trevas da primeva escuridão nos ventos das belas
tranças de Circe. Era então o vulcão da Ilha de Ross prestes a explodir sua
erupção na Antártida, se agigantando como a cratera de Marte a mostrar o rio da
morte e a fronteira entre dois mundos. Trouxe mulheres e homens despidos de
seus legados, regurgitando a memória e lamuriando o luto dos vivos. Falsamente
gentil ofereceu a imortalidade dos deuses por ser o universo, senhor dos cosmos
e dos buracos negros. Não havia como escapar, todos haviam de passar por ele, como
afirmara Hesíodo e os ditos das
órficas e rapsódicas. Viu-se então Sully Prudhomme: Na minha
alma trava-se um combate sem vencedor entre a fé sem prova e a razão sem
encanto... Mais dissera Paul Heyse:
Se a cabeça e o coração se contradizem, o
coração acabaria por dizer: a pobre cabeça cede sempre, porque é a mais
prudente... Um descuido do deus e subiu ao Monte como se recitasse o Poema em Linha Reta de Pessoa.
E no topo cerziu seus poemas com a queimadura: transformava a dor em grandiosa
mudança. Era como se salvasse aos primeiros raios da manhã. Sabia-se ainda vivo
e voou nos versos de itinerância: até que tudo se esvaia na
navalha do tempo...
Apocalipse lírico... - O que nunca tive não faz falta nenhuma, nem mesmo
do que perdi ou ignorei. O que sei de mesmo: tudo pra ser revirado e refeito. Sim
e refaço todas as horas de todos os dias. Em cada amanhecer já sou outro, tudo
ficando para trás consumindo-se nos instantes e já era. Guardo comigo as
palavras de Alicia Kozameh: Pego na mão o que sinto como beleza e, então,
posso incluir a música que me é indispensável e o jogo de palavras... É sim
o que me basta, os tons das cores musicais em cada uma das minhas vértebras. Aos
poucos esqueço até de mim mesmo, só recomeço nos versos do Poema final de Andree Chedid: Onde estão as palavras, \ O fogo eterno, \ O poema final?
\ A fonte da vida?... Esteja sabe-se
lá onde, jamais serei o mesmo e até nem precise existir depois da desconstrução
por que sou apocalipse lírico...
O bicho do Vau... - Um choro de menino e perscruto à toa. Logo uma das lavadeiras do
lajedo: Não vá! Demorei a entender, até que ela, pálpebras baixas, olhar no
vazio: Eu já tinha nascido quando a Sinhá nos trouxe para serviçais na casa
grande. O coronel marido dela nunca gostou de mim: era como se eu fosse uma
afronta e desconfiava do segredo da minha mãe, seria ele meu pai. Confesso: também
não gostava dele e cresci assim, até tomar corpo e ele abusar de mim na volta
do Vau. Fui mandada pra longe, escondida à sete chaves e tomaram-me o
recém-nascido jogado na enchente do rio Jacuípe. Quantos não se afogaram
investigando os gemidos pungentes. Hoje meu filho ainda chora nas profundezas
do açude. É a maldição que atormenta todos aqueles que querem encontrá-lo.
Silenciou... Fitou-me com insistência e me disse KateBornstein: Acho que há pouca compaixão no mundo agora, então precisamos desenvolver
a nossa própria para compensar isso... Pude sentir sua dor e dela apenas o
sumiço e as fatídicas notícias. Até mais ver.
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