segunda-feira, fevereiro 29, 2016

O LOBISOMEM DE ALAGOINHANDUBA


 Imagem: Homesome, o homem virando lobisomem, pintura de Waldomiro de Deus (foto: Varnderlei). Veja mais aqui e aqui.

O LOBISOMEM DE ALAGOINHANDUBA

Luiz Alberto Machado

O lugar era bastante pacato não houvesse tantos rumores de se correr bicho pela redondeza. Bastava cair a noite o temor convivia com os moradores locais. Falavam temerosos de um lobisomem atormentado a todos, principalmente mulheres que, quando não sumiam da face da terra, eram encontradas estupradas ou estropiadas. A maior parte delas ou não saiam dos pés do padre Quiba em confissões intermináveis, ou endoideciam e, muitas das vezes, pariam meninos que eram abandonados à sorte.
As casadas eram as que mais eram vitimadas pelo indesejável monstro. Sempre que os maridos saíam para as reuniões dos clubes de serviço, ou da Câmara de Vereadores, ou os encontros no bar pros jogos ou conversa fora, as indefesas eram atacadas nas dependências dos seus próprios lares.
Não se tinha notícia de viúvas ou separadas, desquitadas ou divorciadas acometidas pela sandice do desgraçado. Talvez pela solidão delas, aquiescessem sequiosas por seus ataques. Uma ou outra solteira ou debandada que dava nos dentes com reclamações da invasão dele. No mais, eram as casadas as que faziam o grupo de risco.
O padre Quiba não sabia mais o que fazer, reunindo os cidadãos vitimados para uma caçada ao famigerado lobisomem. Por noites e madrugadas repetidas não lograram o mínimo êxito. Até aumentavam os ataques dele, justamente às esposas dos que se encontravam entre os caçadores. Chegaram a conclusão que só o padre Bidião poderia dar cabo de tais fatos. Todavia, como ele se encontrava hibernando na construção do seu Evangelho, nada se poderia fazer.
Foi a partir de então que os mais medrosos daquele distrito, cerravam suas portas logo à boquinha da noite quando imperava o pânico e o pavor. Aquele arruado de casa domiciliava humílimas pessoas que o tempo ruminara. No centro, uma pracinha ainda por florescer e já seu cartão de visitas, para desleixe nas horas minguadas do dia, num carteado e conversas sobre a vida de todos os moradores, dissecadas nos mínimos detalhes pelas narrações mais escabrosas possíveis. A pabulagem era a ocupação principal daquele povinho e quando anoitecia naquela comarca, cedia lugar às invencionices e temores noturnos peculiares à imaginação de quem não tem o que fazer além de coçar o saco e ver as horas se exaurirem no trâmite da vida, vez que a energia elétrica cessava seu esplendor exatamente às vinte e duas horas noturnas, ficando a cidade entregue às trevas.
Tudo começou com a boataria quando o lugarejo fora assaltado por seres extraterrestres. Era uma verdadeira procissão inominável e, amedrontados, não ousavam abrir as portas, nem olhar pelas frestas para decifrar o sucedido. Ouviam apenas ruídos de uma marcha descompassada pelo calçamento com uma iluminação externa de meter medo. A luz desses ETS atravessava as brechas das portas e janelas, clareando o interior das residências. Importunando durante a noite inteira, os alienígenas pezunhavam toda cidade sem serem aplacados por vivalma. O povo com um bafume por dentro, tudo tremendo que só vara verde com o acontecido.
Na manhã seguinte um burburinho nascia no interior das alcovas, discutindo o que ocorrera naquela madrugada lôbrega. Era um disse que era, contradições revisadas, invencionices descabidas, tudo do aloprado e das transcendências siderais. Arrepiados e aflitos com o acontecido arremataram ter sido aquilo um sinal do apocalipse, visto todos serem crentes do velho testamento e fiéis visitantes da igreja principal. Reuniram-se em todos os lugares e oraram o dia todo para que a força divina interviesse para salvação da alma deles de mais um atormentado sofrimento. O fato, de tão cabeludo que ficara, sobrepujara as cercanias e alcançara ouvidos alhures, chegando a estampar manchete de primeira página de jornal doutros confins. Ninguém que nunca ouvira falar de Alagoinhanduba, agora, depois de ser manchete televisiva, escrita e falada, tornara-se sensação nacional do Oiapoque ao Chuí. Repórteres do mundo inteiro azucrinaram o juízo dos cristãos, buscando depoimentos esclarecedores para um fato tão insólito, alimentando as organizações não governamentais do assunto, a se ouriçarem como pinto no lixo, com assunto tão de terceiro grau como aquele. Tornara-se uma notícia bombástica e, pelo andor da carruagem, mudaria de uma vez por todas aquela localidade.
Descobria-se, enfim, uma cidadezinha, senão, mal-assombrada, um lugarzinho daqueles, destamaínho, agraciado por uma invasão de ETS, era um privilégio dos grandes quebrando a rotina. A população nem queria falar do assunto envolvida numa atmosfera de temor. Temiam os castigos de Deus e uma nova investida dos tais interplanetários. Ninguém, na verdade, tivera coragem de presenciar in loco. Prostrados, o medo dominava. Quem mais marcou presença nos noticiários foi o vigário profetizando um grande armagedom sobre a cabeça dos pecadores. A lengalenga não cessara e o padre berrando pela salvação em Jesus, não dava descanso aos ouvidos timoratos. Mesmo assim, ninguém lhe dava atenção. Ele berrava em nome dos santos e santas, arcanjos e anjos do novo e velho testamento, anunciando a fúria de Moisés sobre todos aqueles que fizessem vista grossa às suas anunciações e que não haveria pecador que se salvasse daquele vaticínio, pois que todos os provérbios foram ditos aos tímpanos dos que residiam ali e não haveria uma nova arca de Noé para salvar quem não estivesse imbuído do espírito cristão dele e aos moucos propositais restaria a participação numa torre de Babel que jamais sairia do labirinto esconjurado. Um blablablá sem fim. De fato não era levado a sério o que dizia porque todos se achavam fiéis que receberiam a salvação invariavelmente. Temiam, sim, mas com a ciência de que eram legítimos fiéis da crença em Deus e maldiziam dos outros que deveriam estar cometendo ilícitos para serem agraciados com a fúria do senhor. Em suma, todos se achavam santos e, ao mesmo tempo, acusavam-se, uns aos outros, de demônios camuflados. E tinha mais: esperavam o reaparecimento do padre Bidião que, com certeza, resolveria esses incidentes em dois tempos.
Um mês e meio depois a cidade fora dada por esquecida na sua insignificância, restara apenas o pavor de um apocalipse vindouro naquela gente pobre e crédula. Arribaram dali todos os helicópteros humanos ávidos de detalhes; acabara-se o interesse pelo recôndito rincão do mundo.
Três semanas depois voltara todo tormento quando a Besta Fubana muito irada, a dar pipocos pelo meio da rua, relinchando alto, aparecera no meio da madrugada, amaldiçoando a tudo e todos na noite mais comprida que se tem notícia. Foram horas e horas de vociferações acusatórias contra aquele povinho besta, um a um, desenhando a sua personalidade e delatando as intimidades mais esdrúxulas de cada qual. Maridos, esposas, namorados, honestos, autoridades, todos, desde o paupérrimo morador da última casa da rodagem até ao Juiz, o Prefeito e o Bispo entraram na roda das difamações inflamadas pela Besta. Lá pras tantas, já cansada de desnudar, de debulhar a vida dos coitados moradores, a Besta arribou com uma zoada estrepitosa de estourar os ouvidos de todos dali. Os profissionais da imprensa acorreram às pressas a fim de flagrar mais uma história sobrenatural sucedendo naquela localidade. O plantão dos ávidos locutores durara dois meses até perceberem apenas informações imprecisas de casos desencontrados, colhidos de uma gente temerosa e arredia quanto a profanação dos mistérios do oculto. O que sabiam de mesmo era que a ausência do padre Bidião por ali, causara tantas coisas impressionantes e inimaginárias.
Nada mais ocorrendo, dias depois Alagoinhanduba voltara ao seu normal respirando aliviada, porém, sobressaltada a qualquer sinal advindo como agouro: uma coruja rasgando mortalha; um morcego que barroava nas portas; um piado de pássaro estranho; um silvo de cobra desconhecido; um gemido lá longe; tudo deixava o tirocínio com caraminholas por identificar. O sinal estava dado e obrigava reza diuturna aos sôfregos corações provincianos, genuflexos perante os altares de dia e noite, noite e dia, selando juramentos de não cometerem mais pecados, implorando pela clemência divina, visto que estavam sendo assolados injustamente por acontecimentos sórdidos.
Normalidade definitiva, mesmo assim não quiseram suspender a vigilância das orações, visto a qualquer momento nova fatalidade ocorresse, precaução de matuto de inteirar logo, passando da conta, melhor se creditando que deixar débito com as coisas do outro mundo. E viera, até que chegara as doze badaladas noturnas, uma voz agourenta, cheia de micagens, rasgando o silêncio de mortalha na noite.

- Com quem ficará o penico de Dona Chiquitinha Gonzaga?

Estremeceram todos mediante o anúncio daquela voz do além, daquela não escapava qualquer vivente. Para eles a morte viera buscar Dona Chiquitinha Gonzaga.

- Com quem ficará a caçola da véia?

Um serrote estridente fazia-se ouvir por toda cidade. De repente um estampido surgira, devia de ter sido arma de fogo. E era. Os cachorros assanhados latiam afobados.

- Vá-se embora, espírito zombeteiro!

Era a voz dela, moradora distante, viúva de anos, morava próximo ao cemitério, era doente de fúria, brava sempre. A sua companhia era, apenas, a criadagem vítima de sua arrogância. Há tempo ninguém lhe via as faces, deve de ter envelhecido até a bruxaria para a morte vir lhe cobrar agora a sua sorte partilhando os seus bens num serra-véia.

- Quem herdará os bisquís dela ?

Novo pipoco de espingarda seguida de uma gargalhada tonitruante. A voz era de fato agourenta e a velha destemida, enfrentava com todas as forças que lhe fartavam do gênio ruim, dos maus bofes dela com todos, ficando os ouvintes a torcer ora pela voz horripilante, ora pela coragem da anciã.

- Vá serrar a véia da sua mãe!

- Será o seu Camafeu?

Com a citação do nome de Camafeu numa acusação ruidosa, uma zoada ensurdecedora, vários estampidos foram disparados no meio da noite. Aquela insinuação caíra como uma bomba sobre a cidade, causando cochichos e disse-me-disse. Meus Deus! Camafeu, segundo as más línguas, era um farmacêutico do lugar, muito simpatizante da carunchosa e muito bem recepcionado por ela. Dizem mais que desde tempo remoto, a senil senhora nutria afeições especiais pelo marmanjo, deduzindo-se que o seu finado marido morrera de um ataque cardíaco por haver comprovado que fora corneado pelo boticário. Os tempos se passaram e tudo foi abafado como convinha a quem tem dinheiro e poder no lugar; e agora um novo escândalo vinha à tona envolvendo a macróbia e o dono da botica.
Corria-se que à noite perambulava uma tocha nas imediações da casa dela, a reluzência aparecia no meio da rua, se dirigindo ao cemitério e ficava rondando a casa da Dona Chiquitinha. Rica e avarenta como era ela, na época pensava-se ser um castigo de Deus para lhe atormentar, ou uma perseguição do diabo.

- É a tocha! É a tocha!

Era um asteroide para frente e para trás, causando pavor em todos. Era quase um cometa que desfilava pelas limitações da cidade e fazia peripécias nas proximidades da casa dela. Até hoje mistério não desvendado.
Agora era o além que mexia naquele vespeiro. Os mais desmemoriados do tempo se riam confidencialmente em meio ao alarido. Riam do jeito de ninguém ouvir. Era uma mangação que podia dar no maior nó cego. Aquela afirmação causava um rebuliço de ferver no sangue de quem estava quieto; quem ouvia aquela insinuação sabia que o chumbo grosso ia sobrar no meio da canela à caça dos destemidos espíritos. Outro tiro zuniu na escuridão e todos sabiam da pontaria certeira da coroca.  A zoada do serrote continuava inclemente, distribuindo a quem de direito todos os pertences da vetusta.
Ante meridiem! Virgem Maria! Uma correria varria a cidade por todas as suas locas, vasculhavam tudo, prenderam gente, esfolaram outros, torturaram vários para saber a autoria de tal asneira insolente. Nada apurado, um verdadeiro quartel de trombudos sentara praça nos arredores da moradia de Dona Chiquitinha. Ficaram mais de mês esperando o serra-véia do outro mundo. Aquilo não era brincadeira, todos armados até os dentes, pronto para sacrificar o cretino autor de tal avaria. Ao cabo de longo tempo a autoria daquelas ingresias permanecia anônimo, impune de levar socavões e de ser agarrado pelas mãos da justiça mais carniceira do mundo.
Depois, muito tempo depois, ora, foram uivos lancinantes e ganidos emitidos de regiões limítrofes ao município. Noite de lua cheia, ave! Ouvia-se ululante animal percorrendo as intimidades soturnas do sítio, vociferando presságios e causando arrepios temerários. Enveredando pela periferia mais ainda se ouvia os estrépitos no escuro como um abismo do mundo.
Nos dias seguintes ao plenilúnio, a calma voltava a habitar entre os munícipes. Isso, até a prisão de Jetevaldo. Bastou uma passada do padre Bidião por aquelas paragens, tudo se resolvera como num toque de mágica. Foi ele quem levou tudo pro Jetevaldo, um sujeito já vinha na mira da desconfiança e fora agarrado após a descoberta do assassínio de Rosimari. Esse crime pegou de cheio na consternação popular que jurara surrar o infrator desalmado. Foi uma agitação desmedida, o sujeito com a cara mais cínica do mundo, depois de cometido o delito à jovem debutante, caminhava ileso pelas ruas. É certo que os cachorros latiam muito com a sua presença. Ninguém suspeitava que ali estava um desafortunado filho do diabo. Havia um odor de sangue cru a cada aproximação dele, era um rejeitado, amaldiçoado. Era filho de Dona Ornela, uma senhora trabalhadora que perdera o marido muito jovem e possuía desse matrimônio, um único rebento: o Jetevaldo. O rapaz, segundo descoberta dos vizinhos, era muito estranho e dado a maus costumes causadores dos maiores vexames à sua santa maternal. Aprontava das muitas sugando da mãe os últimos míseros centavos de seu sustento. Possuía um sotaque repuxado adquirido de uma viagem, sem motivo aparente, a São Paulo. Sabe-se, apenas, que desaparecera de casa deixando a mãe aos prantos de tanto procurá-lo. E sem mais nem menos, reaparecera ele cheio de gírias, afeito a namoricos escondidos e safadezas muitas com as mocinhas da gente de bem.
Um dia, sob o pretexto de remeter missiva para uma amiga paulista, Jetevaldo convidou Rosimari para redigi-la em lugar e hora acertados. As garotas de Alagoinhanduba suspiravam ao seu encalço pela sua diferença de ser, seu jeitão desligado, todo adiantado, cheio de modas e modos, gesticulando muito, descompromissado com tudo e com todos, sempre de lero para cima das débeis mocinhas, dançando coisas não ainda vista, falando de um tal funk, punck, rock, house, tecno, coisas do gênero. Rosimari, fulgurante por ter sido a escolhida por ele, tratou de se embelezar como nunca para o encontro marcado, para impressioná-lo e, por certo, conquistar o amor dele que seria, sem dúvida, o seu príncipe encantado, dono do seu coração. Aproveitando que Dona Ornela se dirigira até a cidadezinha vizinha para receber valores oriundos de seu beneficio, sua aposentadoria, preparou o deslavado todo ambiente para recepção da jovem. Na residência do malandro, Rosimari cumpria, com gentileza esmerada, a solicitação dele, atendendo o ditado e corrigindo possíveis escorregões gramaticais praticados pelo desajeitado. A carta estava impregnada de situações luxuriosas, causando rubor nas faces dela. À certa altura da carta, ele se achegou e beijou seu pescoço, dela se arrepiar todinha. Apalpou os peitinho miudinhos da moça, levando um tipo de recusa que escondia a satisfação dela ao leve toque dos dedos nos seus seios. Insistentemente pôs-se a beijá-la por todo corpo, os braços, as pernas, o umbigo, por baixo da saia, retirando-lhe a calcinha com jeito, a rejeição consentindo a manipulação de suas intimidades, em atitude de não permissiva, mas trazendo um aconchego mais saliente aos seus dotes, numa volúpia que a levara até a nudez. Ai nasceu um verdadeiro estupro. Gritos surgiram, até que Jetevaldo realizou um verdadeiro espancamento, fraturando as suas pernas à altura das coxas, deixando-a molezinha, sem forças para reagir às investidas dele, deflorando-a quase desmaiada, introduzindo o seu membro em sua vagina, sangreiro derramando, rasgando-a por dentro, até que, depois de um vai-e-vem doloroso, retirou o caralho, deitou-a de bruços, aliviada e começou a roçar-lhe o ânus, carinhosamente, e enfiou-lhe a rola cu adentro dolorosamente, dilatando suas pregas, lascando o seu íntimo e depois de ejacular no seu procto deixou-a sobre a cômoda, em decúbito dorsal, lânguida. Depois disso acendera um cigarro e às longas baforadas ficou admirando a bundinha dela ali oferecida a seu bel prazer. Terminando de fumar ficou ele esfregando a pica na região glútea da jovem, lambuzando-a mais e logo o cacete ficou teso, sem parcimônia, enfiou-lhe no cuzinho, provocando novos gritos até a sua ejaculação. Desfalecido e ofegante, encostou-se na parede e foi retomar a respiração. Excrementos lhe cobria a pele da barriga e das coxas, misturando-se ao sangue espirrado e ensopando o piso da casa. Desmaiou de vez a coitada. Satisfeito, suspendeu-a pelos braços jogando-a numa valeta existente no quintal. Com a água fria ela despertou assustada prevendo que seria afogada e não teve tempo de reagir nem de viver às cacetadas desferidas por ele com um escavador, acertando-lhe à cabeça. Após isto teve a precaução de cobrir a morta com folhas de zinco para que ninguém descobrisse sua delinquência. Ocupou-se em limpar o assoalho e queimar as folhas de papel com a caligrafia dela, para perpetuar a sua impunidade. Depois de banhado, teve num bar, ingeriu secamente duas talagadas de aguardente, saindo sem dizer nada. Não se dera conta de sua sandice. Anoitecera. E de supetão surpreendera a mãe se despindo para o banho.

- Mãe, o espírito de pai entrou em mim!

- O que é isso menino ? Tome jeito!

- É o espírito de pai, mãe! O espírito de pai!

Assim, se acercou da mãe e com uma força descomunal venceu toda a sua resistência, numa sedução louca, a mãe não teve tempo de gritar, possuída por aquele triste diabo. Foram horas e horas de luta, vencendo-a, já servida, viu aquele monstro escapulir de seu ventre com uns olhos avermelhados e chispentos, horripilantes caninos à mostra e um bafo nojento a tropeçar pelas moitas. Choramingou ela o tempo todo, vira aquele momento que o seu sofrimento não mais lhe abandonaria e estaria assim, para sempre, fadada à infelicidade. Seminua, saiu tombando pela casa até alcançar o terreiro que dava para a varanda, ajoelhando-se aos prantos e esconjurando o filho.
Um uivado lúgubre e prolongado fez-se ouvir no seio da noite, devido a hora, ninguém a vira naquele estado. Dormira, a mãe desolada, ali mesmo.
No dia seguinte, acordada pelos raios fulgentes da manhã, recompôs-se e se dirigindo ao interior da casa, chorou ainda mais. Ninguém imaginava a sua dor, jamais saberiam mensurar o seu sofrimento. Se banhara demoradamente buscando forças para enfrentar aquela situação. Pensativa, depois do banho, fez coar o café na chaleira, tomando-o lentamente, bastante fervido. No seu descanso, da porta ouvira que um vulto que se encontrava no interior dos seus aposentos. Ela assustou-se, ficou atenta ao mínimo movimento. Ficou à espreita, indefesa.

- É o pai, mãe!

Era o Jetevaldo novamente com os olhos em brasa, puxando-a da cadeira com uma violência avassaladora, arrastando-a pelo chão e escancarando-lhe as pernas. Seviciada, novas lágrimas brotaram do seu rosto até que conseguiu gritar, recebendo, em contrapartida, uma mãozada no rosto, um novo grito ecoando. Reuniu as forças para recusar, saiu embolando casa adentro, indo parar no quintal onde já se amontoavam vizinhos com o padre Bidião que apareceu para convocar a todos em seu socorro e foram para mais de vinte a mode segurar o tinhoso. Bastou o padre tocar-lhe a testa, logo o cabra arreou e rendeu-se. Prenderam o monstro e amarraram-no, conduzindo-o até a delegacia. Um chá de porradas acalmara o desditoso e no meio do festival de pancadas confessara a procissão de caranguejos com velas sobre o casco o que o povo dizia ser extraterrestre; o jegue com um monte de peido-de-véia explodindo amarrado na cauda parecendo ser a Besta Fubana; o serra-véia para Dona Chiquitinha; o assassinato de Rosimari e outros tantos delitos indecorosos.
A revolta da população fora deveras violenta, tentando escorraçar o marginal, quando garantias policiais propiciaram a Jetevaldo ainda viver. Ainda ontem ele fugira da cadeia para lugar incerto e não sabido. (Veja mais aqui).
CRÔNICA DE AMOR POR ELA
Imagem: arte do pintor francês de origem polaca Balthus (Balthasar Klossowski – 1908-2001).
Veja aqui e aqui.


domingo, fevereiro 28, 2016

BIRITOALDO – A VINGANÇA NO FORMIGUEIRO


BIRITOALDO: A VINGANÇA NO FORMIGUEIRO - Biritoaldo, meu Deus, esse veio de encomenda! Ele até que se esforça, mas pense num horror! Imagine o que é um ré-pra-trás! Imaginou? O cara não acerta uma, sequer! O parvo é só o sol na moleira com o sal se pisando pra banda dele! Primeiro veja o bronco: a camisa, a gola desajeitada, o colarinho troncho, a carreira de botão cada um na casa errada, a calça cu-de-mochila, queimando o arroz, uma perna maior que a outra no desabanhado e, o pior, pegando borboleta! A mangação: - Vixe, que coronha! Quando não: - Ei! De braguilha aberta, mô fio?!? Bote vexame no riscado! Quando vê um cachorro, se estranham dele fugir das mordidas; quando cruza com um gato, o bicho que se arrepia todo. Jumento? Olhe o coice, desgraçado. Quando feliz, pisa num tolote de bosta. Ih, tira o pé da merda, zé-roela! Se vai na calçada todo nos trinques da domingueira, tem de algo acontecer pra jogar lama e botar tudo a perder! Vai pegar condução, destino errado. Se vai falar, logo se vê que se trata de um conselheiro Acácio. Amizade? O último amigo abotoou o paletó faz tempo. Livrou-se dele. Os dentes queiros tudo encruado na boca, imagine tudo doendo duma vez só! Por isso, nunca entende direito o que falam - Ô cara tapado da porra! Se é da mulher, só leva desacerto; dos vizinhos, xingamentos; da família, reprovação. Ou seja: além queda, cotovelada nas fuças! Se cai de costa, quebra a pomba; se leva topada, empena o espinhaço. Avalie, só vive com o pau da venta arranhado e levando pisada na unha encravada. Ai, doeu. Quando se deita na cama, o lastro arrebenta e acorda todo mundo! Maior buruçú pra tudo que é lado. Ah, quando dão espaço, maior folga: cheio das intimidades. Oxe, o cara não tem o menor simancol! Só é bronca na caixa dos peitos e muito grito por desaforo na lata. Isso quando não é Alceste pra todo lado no maior esporro! Pelo visto, já viu, né? O cara não tem moral nenhuma: o que apanha da vida, não tá no gibi! Exceto... ah, quando não tendo mais de onde levar bordoada, se tranca no banheiro pra chorar. É aí que aparece a sua vingança! É que na hora da micção, aparece lá no vaso sanitário, uma desavisada duma formiguinha zanzando ao léu. Aí meu, ele apruma a pontaria do pingolim e só fica satisfeito quando leva a bichinha na força do mijo pra morrer afogada. Pronto, feliz da vida. Vingado! De peito lavado! Agora, sim. E fica esperando pra ver se aparece outra prele esmagar com a força do mijo. Eita, apareceu! A hora da vingança II. E lá vai ele empurrando a formiguinha pra descarga! Fica horas nisso. Não sei onde ele arruma tanta carga pra detonar! Aí dá a curiosidade de ver se tem mais: achou uma tuia delas fazendo carreirinha na borda do vaso. Oxe, lá vai a força do jato da mangueira dele pra atacar suas inimigas! Agora foi. Não deixa uma só pra remédio. Por conta disso, já deu até de se ajeitar no arruado lá da casa dele, de não poder avistar um buraco na terra que, pra ele, vira formigueiro. Inclusive, criou uma técnica pra não ser flagrado pela polícia mijando na rua. Sabe como é? Ele chega, ajeita a perna da calça, apruma o calcanhar como uma biqueira bem na loca das formigas e deixa a urina escorrer pra causar maior maremoto de urina na morada delas. Ô vingança! Freud explica? Jung, por favor! (Luiz Alberto Machado). Veja mais das Proezas do Biritoaldo aqui, aqui e aqui

 Imagem: arte do artista visual e editor Jamilton Barbosa Correia. Veja mais aqui.

Veja mais Ferreira Gullar, Oscar Wilde, Montaigne, Louis Malle, Lisztomania, Juliette Binoche, O morto e a lua, Luhan Dias & Virginia Lane aqui.

CRÔNICA DE AMOR POR ELA
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sábado, fevereiro 27, 2016

VICENTE DO REGO MONTEIRO & IARAVI, A FILHA DO FOGO


IARAVI, A FILHA DO FOGO (Imagem: ilustração de J. Lanzellotti) – Um belo dia, ao singrar a mata nas proximidades do rio Gôio-Xopin, ouvi uma voz maviosa solfejando uma cantiga que falava o meu nome. Uma suave e encantadora voz de mulher. Ao me aproximar das margens das águas translúcidas e prateadas daquele estuário, pude ver pela ramagem da encosta que era Iaravi, a formosa filha de Minarã. Ah, era a mais bela das caingangues! Nunca que tivera visto beleza igual. E eu nem podia me arvorar na aproximação, todos os que ousaram desposá-la, foram queimados vivos pela ira do pai. Ali fiquei todas as manhãs por dias e dias a ver aquela linda vestal ameríndia a se banhar, nadando e mergulhando naquelas águas caudalosas. O pai dela era o único possuidor do fogo na Terra. E ela inocente, tinha a incumbência de vigiar o fogo para que não fosse roubado e, por sua vez, seu pai, às escondidas, vigiava todos os passos dela. Quem se aproximasse, era surpreendido pela fúria paterna. Tive, então, que ter cuidado e planejar como conquistar o coração da Iaravi e, ao mesmo tempo, pegar o fogo para distribuir com todas as tribos. Não havia jeito, Minarã era inexoravelmente implacável. Tive que usar da inventividade e transformei numa gralha branca. Voei me lançando ao rio, deixando-me ser levado pela correnteza. Fui acolhido pelas macias mãos de Iaravi. Meu plano havia dado certo. Ela me pegou aos seios nus e me afagou como quem resgata um filho perdido. E me levou pra sua cabana onde o fogo se escondia. E cuidou de mim como quem cuida de um enfermo terminal. E se afeiçoou de mim solfejando a canção que ouvira e que melodiosamente entoava meu nome. Ali fiquei entre seus braços e seios dias, tardes e noites, mesmo sob o protesto de Minarã que com suas desconfianças sempre providenciava para ela novos afazeres. Quando ela me pousava junto à lareira dos fulgores deslumbrados das brasas acesas, indo pras exigências do pai, ele me fitava com seu gênio rude e terrível, ronronando como quem jurava dar cabo de mim. E ao retornar ela já me chamava na procura: - Xakxó! E ao me encontrar, carinhosamente me abraçava cantarolando: - Ó Xakxó, Fiietó! Era o meu nome que ela repetia sempre que cantava: - Fiietó, xakxó! Com isso, eu já estava perdidamente apaixonado quando resolvi contar-lhe do meu amor. Mas eis que nessa hora seu pai entra afobado, descarregando sua furiosa raiva com tudo e com todos. Não foi dessa vez. Os dias se passaram, Minarã ali irredutível. Assim se passaram os dias até que numa tarde em que ele saíra pra caçar, eu balbuciei seu nome: - Iaravi! Ela se assustou, olhou em volta curiosa, e eu repeti: - Iaravi! Ela me viu ainda xakxó e desconfiada se aproximou de mim: - Xakxó? E eu lhe disse: - Sou eu, Fiietó! Ela tomada de susto na hora se afastou. Eu pude então desfazer minhas formas e voltar a ser o que sempre fui. Ela me olhou com seus olhos grandes: - Fiietó? Não lhe deixei repetir meu nome. Fui ao seu encontro e a envolvi nos meus braços com um beijo amoroso, no qual revelou o meu ardente amor por ela. Um beijo demorado de quem descobrira a maior de todas as paixões. E ela correspondeu àquele beijo e se entregou por inteira e pudemos ser um pro outro a partir daquele instante. Completamente embriagado pela sua expressão, pude, mesmo assim, contar do que planejara. Ela ouviu atentamente, apanhou um graveto em brasa e me tomou as mãos para sairmos fugidios pela mata. Léguas e léguas em fuga, deparamos com uma toca pela qual adentramos para nos esconder. E ali ficamos aos beijos, abraços e delírios de amor. Na boquinha da noite ouvimos o ronronar encolerizado com as pisadas intrépidas de Minarã à nossa caça e captura. Ele vasculhou a redondeza, explorou a toca e não nos viu. Sentimos o bafo embravecido de sua sede assassina e logo saiu sem que nos tivesse visto. Ali ficamos noites e dias até nos certificar de que ele estaria longe. E ela me pegou pelas mãos e me levou pela floresta até darmos no planalto de Guarapuava, seguindo pelos pinheiros de Ponta Grossa para descansarmos na ilha das Peças. Dali fomos pra baía de Paranaguá até chegarmos às belas paragens da ilha do Mel e lá nos envolvermos nos mais plenos beijos das querências, trocando juras de amor. Não podíamos ali ficar, tínhamos que percorrer caminhos para fugir e confundir Minarã pelo rio das Cinzas, atravessando Ribeira, Itararé, Cadeado, Itapirauã, Pardo, Araiponga, Taquari até darmos no rio Iguaçu e nos entocarmos na caverna das quedas d’água. Ali amamos além da conta até virar o dia e retomarmos a estrada pelas serras do Maracaju, Dourados, Ortigueira, fazendo pouso na de Piquiri, passeando pela de Chagu, Juquiá, Pitanga, Capanema, dos Cinco Irmãos pra Apucarana e daí pra Laranjinhas e Caeté. E fizemos o trajeto de Ourinho pra Guaíra, daí pra Foz do Iguaçu até Pato Branco, atravessando a serra Geral da Boa Esperança e por toda sua extensão demos de cara com a Serra Negra, apontando a direção pra Laranjeiras e Tagaçaba, até arrancharmos, enfim, na Serra do Mar. Ah, ela era a capitania de Santana: tudo dela se parecia com o mar. E o seu beijo antecipou os sonhos da noite e com o meu beijo amanhecido senti os tremores de suas duas luas sedutoras a me dar o eflúvio da flor do seu corpo de fêmea milenarmenete viva que arde perfumando os meus dias, curando minhas feridas e violando a minha pele, lambendo o meu sangue e me restituindo a vida quase perdida. Foi na sua lunação que pude sentir o seu gosto na minha língua e da sua pele nua de terra roxa recolhi suas volúpias de águas densas para o êxtase do que me fora dado por quinhão e posse. Ela ouviu meu coração e no seu a nudez de sua alma trazia o eco das minhas palavras. E incendiamos juntos como o nosso gozo e nosso fogo foi para todos da floresta, em festa queimando solidário pra felicidade de todas as nações indígenas. Agora todos podiam ter o fogo ao seu dispor, não mais exclusivo de Minarã. E na madrugada eu vi o seu olhar perdido na insônia com a promessa de ser feliz e na descoberta da mulher que amo e que é única aos meus olhos, do que fui e o que não sou quem sabe pra onde vou senão ao seu coração onde sou seu e ela é toda minha. (Luiz Alberto Machado). Veja mais aqui e aqui

Imagem: a arte do pintor, desenhista, escultor, professor e poeta Vicente do Rego Monteiro (1899-1970). Veja mais aqui e aqui.

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CRÔNICA DE AMOR POR ELA
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PATRICIA CHURCHLAND, VÉRONIQUE OVALDÉ, WIDAD BENMOUSSA & PERIFERIAS INDÍGENAS DE GIVA SILVA

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