TRÍPTICO DQC: O TRÂMITE DA SOLIDÃO – Ao som da Spring
waltz – Mariage d’amour, de Chopin,
na interpretação da pianista sul-coreana Sung
Chang. - Da janela a vida pulsa em todo canto e o mundo parece sereno. Não,
não está, foi mera impressão minha. Bastou apurar e lá longe o zoadeiro
indiferente: a farra de vizinhos nas bolhas espalhadas, a ladainha dos fieis
nos cultos acolali e alhures, filas de passantes proutras direções, as ruas
cheias de pernas e pisadas. Ah, olvidam do genocídio,
não estão nem aí; e o desgoverno se ocupa apenas de salvar a própria pele e dos
seus. O monstro invisível captura desavisados e precavidos: milhões infectados,
milhares sacudidos ao esquecimento. A impressão que tenho é que era uma vez um
país... Hoje tudo é tão falso e quase não reconheço o compatriota na atitude
selvagem, apesar do riso amigo e da aparência que não esconde a semelhança: são
tão estranhos quanto estúpidos, como se feras prontas para me estraçalhar. Lá fora
parece que não está acontecendo nada, isso entristece. No meu desolamento
solidário, a escritora uruguaia Tessa Bridal: Ainda somos governados por entidades poderosas das quais
não participamos de moldar ou controlar e, em lugar de poderes coloniais ou
religiosos, agora temos poderes comerciais. Temos que escolher o grau em que queremos nos tornar cientes da injustiça e
se e como estamos dispostos a enfrentá-la. Sim, tive sempre comigo ser imoral o desrespeito ao outro, mas como privar o faminto
de se saciar diante do fausto, mesmo se o que estiver disposto seja imundície
disfarçada; ou como coibir à porta escancarada à fuga do aprisionado, mesmo que
dê num precipício e jamais tivera outra opção, nunca se sabe, e escapar às
pressas se não quiser ficar no mesmo. Afinal está difícil viver e muito. Da
minha parte, não terceirizei a vida moral e corro sempre o risco do desafio
amoral, isso porque em mim doem disfarçadas dores alheias, afinal minha raça é
todo mundo.
DOIS: OUTRA SOLIDÃO NO PAÍS DO FECAMEPA...- Imagem:
da artista britânica Josie Beszant, ao som de Carnival of the
Spirits (EMI, 1975),
de Moacir Santos - O doutor Zé Gulu não sai mais às ruas, se muito chega à porta, toma um gole, espia pros
lados, saúda conhecidos e some lá para dentro. Que foi que houve, homem? Está
tudo repleto de inocentes macunaímas
de mãos dadas com os das qualidades de Musil,
de supostos e midiáticos heróis infames e cultores do QAnon com seguidores de
algoritmos e evangélicos, afora bichos outros não identificáveis. Como é que é?
Ele hesita todo dia em por os pés fora de casa: Não me sujeito a essa
correnteza desvairada. Ora, ora, distanciamento social pela pandemia? Não só, era
uma vez um país... Hem? Tanta lei, interesses escusos; serviço público, só
corrupção; tantas mortes, tanto faz, tanto fez: quem se livrar que viva, o
resto que se dane! Não me vejo mais humano, vivo entre feras e eu vitimado com o
complexo do Samsa de Kafka. Pode se
explicar melhor? Não existe mais o que se possa chamar de povo, só desvalidos;
não há como se socorrer, a Nação ruiu à desordem e ao desperdício. Calma,
doutor, hoje é segunda-feira, está começando a semana, se anime, homem! Você
não deu fé da calamidade ainda, escute Mário Palmério: João
Soares estava com a razão: política só se ganha com muito dinheiro. A começar
com o alistamento, que é trabalhoso e caro: tem-se que ir atrás de eleitor por
eleitor, convencê-los a se alistarem e ensinar tudo, até a copiar o
requerimento. Cabo de enxada engrossa as mãos — o laço de couro cru, machado e
foice também. Caneta e lápis são ferramentas muito delicadas. A lida é outra:
labuta pesada, de sol a sol, nos campos e nos currais. Ler o quê? Escrever o
quê? Mas agora é preciso: a eleição vem aí, e o alistamento rende a estima do
patrão, a gente vira pessoa. Sim,
sim, e daí? Marcial que o diga: É já tarde começar a viver hoje: o sábio
começou ontem. As alegrias não ficam; voam e fogem. Não
entendo. Ora, escute o Robert Lowell:
A luz no fim do túnel é apenas a luz de um trem que se aproxima.
No final, não há fim. E se ainda houver tempo é a hora do poema dele Escola de Hipócritas: converse
com seu filho sobre amizade / converse com seu filho sobre respeito / converse
com seu filho sobre autoestima / converse com seu filho sobre compaixão / e
mande seu adolescente para a guerra. O senhor está
muito negativo, doutor! Vivo do jeito que posso e sei, pra você: se for por
falta de adeus, inté.
TRÊS: DAS MEMÓRIAS & SONHOS - Ao som
da Fantaisies symphoniques nº 6, do
compositor tcheco Bohuslav Martinů (1890-1959). - Daquela vez, quase inesquecível: ela Alma no meu sonho obsessivo de Kokoschka - a paixão a pleno vapor. No meio
da traquinagem ela se fez Pasifae e
me quis Touro indomável por tardes,
noites e dias. E queria mais, muito mais. Assim eu&ela, ela&eu, bocas,
mãos e sexo. Ao sair, eu me vi nos labirintos de Borges; e porque não mais voltou, restou-me o dédalo de García Marquez. A ausência e as minhas
mãos vazias, coração em chamas, cabeça desencontrada. A solidão e a arte, a
busca e o desejo, um projeto de estátua artesanal e nenhum segredo: ela Galateia da minha vida Pigmalião e tornou-se mais que real ao
me abraçar, me beijar, dançar comigo e já até vontade própria: quer assim e
assado, discorda de tudo e, depois de muito chorar aborrecida de tudo, diz que
me ama e me faz feliz. Até parece jamais, fez-se carne e o meu ideal. Até mais
ver.
AS RAÍZES ÁRABES, NA TRADIÇÃO POÉTICO-MUSICAL DO SERTÃO NORDESTINO
[...] Alguns
estudiosos das tradições literário-musicais sertanejas, têm apontado serem
possiveis certas influências árabes. Todavia, o comentário é feito quase sempre
de passagem e às pressas, o nome dos árabes sendo mais um, na lista sumária dos
virtuais contribuintes. Tudo o que até aqui levamos dito, no entanto, tende a
demonstrar que esta influência foi muito mais do que isto: ela foi
preponderante sobre todas as restantes. [...].
A obra As raízes
árabes, na tradição poético-musical do sertão nordestino (Universitária –
UFPE, 1978), violinista catalão Luis
Soler Realp (1920 -
2011), quando o mesmo lecionou no Centro de Artes e Comunicação da Universidade
Federal de Pernambuco (UFPE). Veja mais aqui, aqui & aqui.