sexta-feira, janeiro 05, 2018

GUIMARÃES ROSA, SARAMAGO, PLATÃO, CASCUDO, PACO DE LUCÍA, TOTO FRIMA, FELICJA BLUMENTAL, SIDNEY WANDERLEY & AIRTON MARINHO

É OU NÃO É, QUEM SABE – Imagem: arte do xilogravurista e artista plástico Airton Marinho.- De dia nem tudo é visível; de noite, o reino é das sombras. Eu saio e sei pronde vou. No meio do caminho tudo pode acontecer. Ontem apagou a luz; anteontem faltou água; semana passada um enxame de abelhas causou pânico. E a árvore centenária arriou, soltando maribondos e cupins. Na outra rua um paiol explodiu, correria. Teve até um atropelamento, incúria, vexame. Soube de uma boiada desgovernada. Negligência ao tanger. Avançou o sinal, displicência ao volante. Uma enxurrada e tudo alagou, duas ou três horas, quem sabe quatro, talvez cinco ou nada disso, destá. E assim uma cratera repentina, danou-se! Uma descortesia e caiu na boca de lobo, desatenção na calçada. Também, só enxerga o umbigo, o resto é coincidência. Quem dorme seu sonho de olhos abertos, olvida o dos outros. Quem anda na linha se arrisca a qualquer trem, ou nem aí, um local qualquer, uma ou outra hora, entre mágoas e ausências, raivas e espantos, inevitáveis surpresas. Depois da esquina ou daquela curva, o imprevisível. Abre o olho e pensa que vê; vai averiguar, é outra coisa. A falha é nossa, crédulos! E se temem os mortos, ignoram a cilada dos vivos. O receio vem com todo gato pardo na escuridão. Se bem, pelo que me lembre, nem sei se aconteceu. Talvez eu esteja apenas inventando, coisas sucedem, umas atrás das outras, feito notícia ruim, superpostas e enganchadas, isso pra descrença do crente, pra ira dos revoltados. A rigor, a vida não recua, segue até os confins dos dias. Não há como parar, retroceder e depois passar de novo, em câmara lenta, pra consertar ou emendar. Não há como. Foi. Agora é tarde, ou faz tudo de novo, ajeitando no tato e na perícia. Às vezes cola, muitas não. Quem sabe, pra tudo tem jeito. Eu mesmo, de certeza, só dúvidas. E duvido até do que sou. © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais aqui.

RÁDIO TATARITARITATÁ:
Hoje na Rádio Tataritaritatá especiais com o guitarrista espanhol de flamenco, compositor, produtor e violonista Paco de Lucía (1947-2014) no Festival Jazz Montreux, no Burghausen 2004 e interpretando o Concierto di Aranjuez; as Valsas de Chopin, Concert de Clementi C Major & Concerto p. 17 de Paderewsky com da pianista e compositora polonesa Felicja Blumental (1908-1991) & muito mais nos mais de 2 milhões de acessos ao blog. Para conferir é só ligar o som e curtir.

PENSAMENTO DO DIA - [...] É desta massa que nós somos feitos, metade de indiferença e metade de ruindade. [...] - Quantos cegos serão precisos para fazer uma cegueira. [...] A cegueira também é isto, viver num mundo onde se tenha acabado a esperança. [...] Psicologicamente, mesmo estando um homem cego, temos de reconhecer que há uma grande diferença entre cavar sepulturas à luz do dia e depois de o sol desaparecer [...] o difícil não é ter que viver com as pessoas, o difícil é compreende-las. [...]. Trechos extraídos da obra Ensaio sobre a cegueira (Companhia das Letras, 1995), do escritor, teatrólogo, jornalista e dramaturgo português José Saramago (1922-2010). Veja mais aqui.

MITO DA CAVERNA – [...] E agora, disse eu, permiti que vos mostre, numa imagem, até que ponto nossa natureza é iluminada ou não. Atendei! As criaturas humanas vivem numa caverna subterrânea que tem uma abertura para a luz, que se estende por todo o interior; ao estiveram desde a infância, com as pernas e os pescoços agrilhoados, de modo que não podem mover-se, podendo apenas olhar para diante, pois que as correntes lhes impedem de voltar a cabeça. Em cima e atrás deles, um fogo arde a distância e, entre o fogo e os prisioneiros, existe um muro baixo ao longo do caminho, comoa tela que os manipuladores de marionetes têm diante de si, e sobre a qual exibem seus bonexos. Eu vejo. E vedes, disse-lhes, homens que passam junto à parede, carregando toda a espécie de vasos, estatuetas e figuras de animais feitos de madeira, de pedra e de vários metais, e que aparecem do outro lado dela; vós me mostrardes uma estranha imagem, e eles são estranhos prisioneiros. Como vós próprios, respondi-lhes; e vêem somente suas próprias sombras ou as sombras dos outros, que o fogo projeta na parede oposta da caverna. [...]. Trecho extraído do livro VII da obra A República (Edições de Ouro, 1980), filósofo grego Platão (428/427–348/347 aC.). Veja mais aqui, aqui e aqui.

A MENINA ENTERRADA VIVAEra um dia um viúvo que tinha uma filha muito boa e bonita. Vizinha ao viúvo residia uma viúva, com outra filha, feia e má. A viúva vivia agradando a menina, dando presentes e bolos de mel. A menina ia sipatizando com a viúva, embora não se esquecesse de sua defunta mãe que a acariciava e penteava carinhosamente. A viúva tanto adilou, tanto adulou a menina que esta cabou pedindo que seu pai casasse com ela. – Case com ela, papai. Ela é muito boa e me dá mel! - Agora ela lhe dá mel, minha filha, amanhã ela vai lhe dar fel. - respondia o viúvo. A menina insistiu, insistiu. O pai, para satisfazê-la, casou com a viúva. Mas, obrigado por seus negócios, o homem viajava muito, e a madrasta aproveitou essas ausências para mostrar quem era. Ficou muito bruta e malvada, tratando a menina como se fosse um cachorro. Dava-lhe pouco de comer e botava-a para dormir no chão, em cima de uma esteira velha. Depois ordenou a menina fazer os trabalhos mais pesados da casa. E quando não havia coisa alguma para a menina fazer, a madrasta não a deixava brincar. Mandava-a vigiar um pé de figos que estava carregadinho, para os passarinhos não bicarem as frutas. A pobre menina passava horas e horas guardando os figos e, quando algum passarinho voava por perto, ela gritava: “Xô, passarinho!” Mas, numa tarde, a menina estava tão cansada que adormeceu. E, quando acordou, os passarinhos tinham picado todos os figos. A madrasta veio ver e ficou doida de raiva. Achou que aquilo era um crime. De tanta raiva, matou a menina e enterrou-a no fundo do quintal. Quando o pai voltou da viagem, a madrasta disse que a menina havia fugido de casa e andava pelo mundo, sem juízo. O pai ficou muito triste. Em cima da sepultura da órfã, nasceu um capinzal bonito. O dono da casa mandou que o empregado fosse cortar o capim. O capineiro foi pela manhã e, quando começou a cortar o capim, saiu uma voz do chão, cantando: Capineiro de meu pai, Não me cortes os cabelos. Minha mãe me penteou, Minha madrasta me enterrou, Pelo figo da figueira Que o passarinho picou. Xô! passarinho! O capineiro deu uma carreira, assombrado, e foi contar o que ouvira. O pai veio logo e ouviu as vozes cantando aquela cantiga tocante. Cavou a terra e encontrou uma laje. Por baixo, estava vivinha a menina. O pai, chorando de alegria, abraçou-a e levou-a para casa. Quando a madrasta avistou de longe a enteada, saiu pela porta afora, e nunca mais deu notícias se era viva ou morta. E, assim, o pai ficou vivendo muito bem com sua filhinha. Extraído da obra Contos tradicionais do Brasil para jovens (Global, 2008), do historiador, antropólogo, advogado e jornalista Luís da Câmara Cascudo (1898-1986). Veja mais aqui e aqui.

O APOCALIPSE DOS CAETÉS – Rompido o sétimo selo, o sétimo anjo / faz soar a sétima trombeta. / Eis chegado o Dia do Juízo: / o terceiro aí se anuncia. / Olinda, Carnaval de 1987. / Multidão, enxofre, cinzas. / Desce dos céus o Senhor em fúria revestido, / à mão direita a espada sedenta de humano sangue, / a barba interminável, eternamente por fazer. / Reinava entretanto um calor tão danado / que a febre de um frevo de Capiba / acabou por pegar a Deus de jeito, / e Ele caiu incoignito no passo da multidão pagã / - um pássaro desajeitado, diga-se entre travessões -, / abraçado e saracoteando com um tipo travestido de mulata / em cuja polpa da nádega esquerda / lia-se, sem esforço, / o número 666. / Adiara, por certo, o fim deste mundo / para uma quarta-feira de cinzas e melancolia. / O Carnaval, como os pássaros, não comporta ideologia. / Nele, Cristo e Anticristo, Deus e Belzebu / jogam no mesmo time, sambam no mesmo bloco. Extraído da obra Poemas post-húmus 1976-1991 (Maceió, 1991), do professor e poeta Sidney Wanderley. Veja mais aqui.

MAGMA DO ROSA
O poeta não cita: canta. Não se traça programas, porque a sua estrada não tem marcos nem destino. Se repete, são ideias e imagens que volvem à tona por poder próprio, pois que entre elas há também uma sobrevivência do mais apto. não se aliena, como um lunático, das agitações coletivas e contemporâneas, porque arte e vida são planos não superpostos mas interpenetrados, com ar entranhadp nas massas de água, indispensável ao peixe – neste caso ao homem, que vive a vida e que respira a arte. Mas tal contribuição para o meio humano será a de um órgão para um organismo: instintiva, sem a consciência de uma intenção, automática, discreta e subterrânea. Com um fosso fundo ao redor de sua turris ebúrnea, deixa a outros o trabalho de verificarem de quem recebeu informações ou influencias e a quem poderá ou não influenciar. E o incontentamento é o seu clima, porque o artista não passa de um místico retardado, sempre a meia jornada. Falta-lhe o repouso do sétimo dia. Não tem o direito de se voltar para o já-feiro, ainda que mais nada tenha por fazer. A satisfação proporcionada pela obra de arte àquele que a revela é dolorosamente efêmera: relampeja, fugaz, nos momentos de febre inspiradora, quando ele tatei formas novas para a exteriorização do seu magma intimo, do seu mundo interior. Uma tortura crescente, o intervalo de um rapto e um quase arrependimento. Pinta a sua tela, cega-se para ela e passa adiante. Se a surdez de Beethoven lhe tivesse trazido a infecundidade, seria um símbolo. Obra escrita – obra já lida – obra repudiada: trabalhar em colméias opacas e largar o enxame ao seu destino, mera aventura de brisas e de asas. Tudo isto aqui vem tão somente exaltar a importância que reconhecço ao estimulo que me outorgastes. Grande, inesquecível incentivo. O Magma, aqui dentro, reagiu, tomou vida própria, individualizou-se, libertou-se do meu desamor e se fez criatura autônoma, com quem talvez eu já não esteja muito de acordo, mas a quem a vossa consagração me força a respeitar. Sou-lhe grato, principalmente, pelo privilegio que me obteve de poder – sem demasiadas ilusões, mas reverente – levantar a voz, neste recinto, como um menino que dpõe seu brinquedo na superfície translúcida de uma água, para a qual a serenidade não é a estagnação, e cujo brilho da face viva nada rouba à projeção poderosa da profundidade [...].
Discurso proferido pelo escritor, médico e diplomata João Guimarães Rosa (1908-1967), por ocasião do prêmio concedido pela Academia Brasileira de Letras, ao livro de poesia Magma, publicado nos Anais da Revista da ABL, em 1937, extraído da obra Magma (Nova Fronteira, 1997). Apesar de premiada, a obra foi mantida inédita até esta publicação. Veja mais aqui.

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